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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Escuta e voz: sobre o ato de confissão no trabalho 'Escuto histórias de Amor' de Ana Teixeira

Listening and talking: about confession in ar twork 'Escuto Histórias de Amor' of Ana Teixeira

 

Cláudia França*

*Brasil, artista visual e docente universitária. Graduação em Artes Plásticas, Escola de Belas Artes da universidade Federal de Minas Gerais (uFMG). Mestrado em Artes Visuais, Instituto de Artes da universidade Federal do Rio Grande do Sul (uFRGS). Doutorado em Artes Instituto de Artes da universidade Estadual de Campinas (uNICAMP).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de Artes. Campus Santa Mônica, Av. João Naves de Ávila, 2160, Bloco 1I, Cep: 38400-902, Uberlândia, MG, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Análise de "Escuto Histórias de Amor", da artista brasileira Ana Teixeira. Ação realizada em cidades do Brasil e outros países, de 2005 a 2012. Com duas cadeiras, um estandarte escrito: "Escuto histórias de amor" e um manto vermelho de tricô (em processo), a artista designa um território no espaço público, convidativo para que outra pessoa sente-se e lhe revele segredos e histórias de amor. Espécie de confessionário secular instalado a céu aberto, nele Ana Teixeira se coloca como ser de escuta. Utilizamos considerações de Michel Foucault sobre o ato da confissão e de Walter Benjamin sobre a narração.

Palavras-chave: arte contemporânea / confissão / subjetivação.

 

ABSTRACT

Analysis of "Escuto Histórias de Amor", from Brazilian artist Ana Teixeira. She presented it in several cities of Brazil and abroad, from 2005 and 2012.With two chairs, a banner with the artwork's title and a knitted red cloak (a work in process), Teixeira outlined a territory at public space. Such composition "invited" anyone to sit down and to reveal secrets and his love stories to the artist. We understand this artwork as a kind of secular confessionary, built under the sun, by which Ana Teixeira features herself as a listening person. This analysis is based on thoughts of Michel Foucault about confession and Walter Benjamin's considerations about narration.

Keywords: contemporary art / confession / subjectivity.

 

Considerações iniciais

"Escuto Histórias de Amor" é uma ação realizada pela artista brasileira Ana Teixeira, residente em São Paulo (SP). O trabalho ocorre em espaços públicos de cidades brasileiras e no exterior, entre 2005 e 2012 (Ana Teixeira, 2014). A artista se vale de duas cadeiras, um estandarte com o enunciado "Escuto histórias de amor", que nomeia a ação. Porta ainda um manto vermelho em tricô, em processo de execução. Ao escolher um trecho de rua ou praça, a artista delimita um espaço virtual pela disposição das cadeiras e do estandarte e põe-se à espera de um interlocutor que queira lhe contar alguma história de amor. Enquanto espera pelo outro, o manto é tecido. No entanto, não interrompe o tricô se alguém chega e se senta. Ana Teixeira se dispõe como um ser de escuta: ouve, faz perguntas, demonstra empatia, atenção, sem deixar de lado a fatura do trabalho manual (Figura 1, Figura 2).

 

 

 

 

Embora o verbo do enunciado do título e da ação seja "escutar", acreditamos que o concernente ao outro seja narrar e confessar. Se narrar é contar histórias de certo modo atemporais, demonstrar sabedoria e fornecer conselhos a quem ouve (Benjamin, [1936], 1994), na confissão, além da coincidência de sujeitos – o que enuncia o discurso é o mesmo objeto desse discurso – ocorre também uma relação de poder (Foucault, [1976]1999). Nesta relação, o parceiro que requer a confissão "impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar..." (Foucault, 1999: 61). Desse modo, "a enunciação em si, independentemente de suas conseqüências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, promete-lhe a salvação" (Ibidem).

No entanto, a artista, em sua postura, não julga, pune, retém ou transmite o conteúdo da fala do outro. Em depoimentos informais em seu site, ela diz mesmo não se lembrar das histórias que lhe foram contadas. Trata-se, de qualquer modo, de uma enunciação ao outro que beneficia o próprio enunciador, já que para dizer, é necessário articular ideias e desejos, reconstruir os fatos acontecidos e os segredos. Três elementos pertinentes à ação nos importam: o ato confessional do outro, o esquecimento do teor dessa confissão pela artista, e ainda o manto vermelho em elaboração. O presente texto é o tecido formado por esses três aspectos de "Escuto Histórias de Amor".

 

1. A confissão e a perda da capacidade de narrar

Walter Benjamin ([1936]1994) percebe a força da narração de grandes fatos, em que o narrador se esmera em aconselhar e demonstrar sua sabedoria na prática da oralidade. Presente em culturas não marcadas pelo individualismo, a narração permite a transmissão de experiências e a explicação dos fatos para a preservação de costumes, tradições e ensinamentos. Ela estabelece uma interação singular entre o narrador e sua audiência, pois o relato, por mais distante que esteja no tempo, atualiza-se nos ouvintes. Vinculamos a narração com a confissão, originalmente pública. Michel Foucault (1999: 58 et seq) aponta que a autenticação de um indivíduo dava-se por seus laços sociais: família e vizinhança forneciam-lhe proteção e, acrescentamos, uma noção de identidade e pertença. Por meio da confissão pública, havia uma perspectiva de salvação de um grupo, não somente de um indivíduo.

No entanto, segundo Benjamin, na passagem para a modernidade o indivíduo passa a questionar valores da tradição e mesmo sua condição de ser exemplar para os outros. Com o domínio da imprensa, as práticas de aconselhar e de transmitir ensinamentos, próprias da narração e da confissão pública, perdem força, permitindo que o livro se torne a ligação entre a solidão do romancista e a solidão do leitor. A oralidade cede espaço à leitura solitária, destacando-se o romance, cuja escrita

[...] significa levar o incomensurável ao auge na representação da vida humana. Em meio à plenitude da vida e através da representação dessa plenitude, o romance dá notícia da profunda desorientação de quem a vive (Benjamin, 1994: 201).

Complementamos com Foucault (1999: 59):

[...] de um prazer de contar e ouvir, dantes centrado na narrativa heróica ou maravilhosa das "provas" de bravura ou de santidade, passou-se a uma literatura ordenada em função da tarefa infinita de buscar, no fundo de si mesmo, entre as palavras, uma verdade que a própria forma da confissão acena como sendo o inaccessível.

Dá-se assim, um longo processo de constituição da privacidade do indivíduo. O movimento interno de comparação e observação do entorno permite-lhe emitir juízos; mas para isso, é necessário o recolhimento para algum espaço privado e o consequente distanciamento dos outros.

Daí também, essa outra maneira de filosofar: procurar a relação fundamental com a verdade, não simplesmente em si mesmo – em algum saber esquecido ou em um certo vestígio originário – mas no exame de si mesmo que proporciona, através de tantas impressões fugidias, as certezas fundamentais da consciência. (Foucault, 1999: 59)

Em meio a esse movimento, a confissão privada consolida-se como um modo de "poder-saber" (Foucault, 1999: 57), adquirindo papel central nos procedimentos religiosos e civis. Instituída no século X (1215) durante o Concílio de Latrão (convocado pelo Papa Inocêncio), a confissão seguida da penitência é considerada um dos mais importantes rituais dentro da Igreja Católica.

O sacramento ocorre no confessionário. Este geralmente é uma pequena arquitetura em madeira que abriga o membro do clero que procederá ao ritual; o confessor coloca-se em espaço contíguo ao sacerdote; entre ambos, uma treliça de madeira lhes resguarda a individualidade, permitindo também que o diálogo seja discreto e fluente. O padre escuta os segredos do indivíduo; coloca-se sob o juramento de manter em segredo tais testemunhos, sendo também incumbido de ministrar penitências compensatórias aos "pecados" confessados.

Grande parte dos conteúdos confessados relaciona-se a práticas sexuais e seu teor de abjeção, o que faz Foucault constatar que a experiência da sexualidade, no Ocidente, se dá por meio da elaboração de um discurso de produção de verdades, instituído inicialmente pela Igreja, mas posteriormente assumido pela Pedagogia, pelo Direito e finalmente pelas Ciências Médicas. Foucault percebe o homem como um "animal confidente". O ato de dizer de si torna-se onipresente. Confessa-se nos lugares: "na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes". Todos os conteúdos são confessáveis: "os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias". Confessa-se com "a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito" e por fim, confessa-se privada ou publicamente, "aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros" (Foucault, 1999: 59).

O ato de dizer de si avança para a modernidade do século XIX. A confissão deixa de ser um ritual exclusivo da Igreja, secularizando-se e difundindo-se entre alunos e pedagogos, pais e filhos, doentes de corpo e de alma, marginais e suspeitos e médicos e policiais. Assume diversos modelos, como os interrogatórios, as consultas médicas, cartas e diários.

Nesse deslocamento do ritual confessional de seu lócus originário, a prática sofistica-se ainda mais nos exames médicos e na área científica em geral por meio de tecnologias e modos de se "extorquir" uma verdade. O conteúdo sexual submete-se a uma classificação dos prazeres eróticos, constituindo um enorme acervo de confissões sobre deficiências, erros, ingenuidades, sintomas, desvios, distúrbios, entre outras evocações da prática sexual, passíveis de vínculos com distúrbios de caráter, crimes e índices de normalidade do corpo – tais classificações podem indicar como o poder nivela o indivíduo em um ideal de "normalidade".

A medicina usa a confissão do doente para compreender o funcionamento do corpo; a psiquiatria e a psicanálise usam a confissão do angustiado como modo de se constituir uma "ciência do sujeito". Desse contexto para a contemporaneidade, desfazemos ainda mais os limites da confissão – ritual religioso e método investigativo – tornando-a ação corriqueira. Com a popularização de câmeras digitais, programas computacionais, meios de produção e captação de imagens – divulgadas em sites de relacionamento, por exemplo – a representação de si pela confissão deixou de vincular-se a um segredo, podendo ser vista e conhecida por qualquer um. Dispositivos de estetização, vigilância e representação de nossos corpos potencializam ainda mais nossa constante visibilidade ao olhar do outro, a uma constante "pose", em que o dizer de si não passa necessariamente pela fala confessional, mas pela prova documental de que se fez algo, de que se esteve ali e com quem. Vivemos uma "hipertrofia do eu na cultura moderna" (Barcellos, 2002: s.p.). A prática confessional contemporânea dissolve a relação um-a-um que resguardava a revelação de um segredo. Um selfie ou uma confissão em rede provêm de um único sujeito para inumeráveis pessoas, sem garantia de reverberação. Parece que a confissão

[...] já está tão profundamente incorporada a nós que não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage; parece-nos, ao contrário, que a verdade, na região mais secreta de nós próprios, não "demanda" nada mais que revelar-se... (Foucault, 1999: 60).

 

2. O esquecimento e o manto vermelho

Diferentemente, Ana Teixeira busca restaurar o encontro um-a-um. Em uma confissão, o sacerdote determina penitências a serem cumpridas como compensação das faltas relatadas. Em uma consulta, espera-se um laudo técnico ou até mesmo uma suposição como resposta ao enunciado do sujeito confessor. Na situação urbana oferecida pela artista não se prevê julgamento, parecer ou penitência. Mesmo que interaja ou pergunte, há o silêncio no que respeita uma destinação da fala do outro.

O esquecimento do teor específico das confissões problematiza a função da artista como lugar de parada e permanência da mensagem emitida pelo outro. O idioma torna-se um problema na efetivação de um diálogo real. Embora tenha construído um estandarte "Escuto Histórias de Amor" no idioma de cada cidade-visita, até que ponto o diálogo entre os sujeitos foi potente? Como eles se deram? Outro aspecto a ser pensado é a cena pública da relação fala-escuta. O espaço da cena pode ser pensado como "não-lugar" (Augé, 1994), onde não haveria chance de construção de uma relação identitária e memorialista entre os sujeitos e o sítio. Diferentemente do confessionário, em que tudo contribui para a concentração mental dos envolvidos, no espaço público, a relação fala/ escuta é paralela a inúmeros outros fatos, os quais podem distrair os interlocutores. Acreditamos que a cena pública e as dificuldades eventuais com o idioma tenham sido promotores do deliberado esquecimento, pela artista.

Ao fim do período de "reapresentações" da ação, Teixeira portava um manto de quase cinco metros de extensão. Qual o sentido dessa materialização de uma ação contínua, paralela ao ato de escutar histórias de amor? Para Walter Benjamin, é a capacidade do narrador em elaborar sínteses que permite a memorização do ouvinte. No entanto, a "distensão psíquica" é necessária ao processo de assimilação do conteúdo.

Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. (Benjamin, 1994: 205)

A partir do exposto, nos perguntamos sobre o esquecimento da artista. Isto porque, em se tecendo enquanto escuta e experimentando o "tédio" necessário à assimilação das diversas histórias, Ana Teixeira teria construído a situação ideal para converter-se na ouvinte que transmitiria os conteúdos apercebidos. A extensão do manto supostamente confirmaria o quanto ouviu, interagiu e se lembrou de cada uma das histórias contadas. O manto vermelho seria a contraprova do esquecimento. Seria ele, e não a artista, o real anteparo das palavras ditas pelo outro e que, em sua materialidade, consubstanciaria o "tecido" de tantos segredos de amor.

 

Considerações finais

"Escuto Histórias de Amor" pode ser um jogo de lembranças, falas, esquecimentos e silenciamentos. A cena pública e as eventuais dificuldades de compreensão da língua dificultariam a concentração dos interlocutores, contribuindo para o esquecimento da história confessada. Mas pensando com Foucault no homem como "animal confidente", a necessidade de confessar e dizer de si suplanta diversos obstáculos e se instaura, em quaisquer lugares, com qualquer um, para além dos consultórios e dos templos religiosos. Diversos "não-lugares" estão repletos de "confessionários" informais e efêmeros, em que pequenos jogos de poder são instaurados a céu aberto. Podemos pensar que Ana Teixeira "esquece" o teor da confissão, (con)fiando um tecido vermelho como elemento simbólico de escuta em sete anos de trânsito. A artista se pôs a construir uma lembrança material desse longo período de deslocamentos. O manto é, em si, um grande vestígio vermelho que atesta a nossa necessidade dos encontros, para confessarmos nossas ações, reações e inações na cena do "discurso amoroso". Objeto de acolhida, ao mesmo tempo em que a memória da paixão é tecida. Espécie de registro universal das componentes do amor: espera, distúrbios de comunicação, esquecimento. Língua – vermelha como o órgão, potente como o idioma – o manto pode ser pensado como "língua" construída no entre-dois.

Em depoimentos informais, Ana Teixeira diz de si como "Penélope". No mito, Penélope constrói a mortalha de Laerte durante o dia e a desfaz à noite, para ganhar tempo, esperando por Ulisses. Pensamos que essa analogia é relativa: Ana-Penélope só se visualiza durante a espera do interlocutor ou quando tece o manto, na escuta. No entanto, quando a artista desfaz sua mortalha? Talvez não seja no desfazimento do tricô, mas na deliberação de esquecer o que ouviu nas confissões.

 

Referências

Ana Teixeira (2014) [Consult. 2008-05-29] Disponível em: http://www.anateixeira.com        [ Links ]

Augé, Marc. (1994). Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus. ISBN 85-308-0291-8        [ Links ]

Barcellos, José Carlos. (2002). Julien Green: espaço autobiográfico e fé cristã. [Consult. 2008-05-29] Disponível em: http://www.uff.br/ichf/anpuhrio/Anais/2002/Comunicacoes/Barcellos%Jose%Carlos.doc        [ Links ]

Benjamin, Walter. (1936); (1994). "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In.: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, p.197-221. ISBN 85-7316-191-4        [ Links ]

Foucault, Michel. (1976); (1999). História da Sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. ISBN 978-85-775…3294-0        [ Links ]

 

Artigo submetido a 7 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: claudiamfsg@yahoo.com.br

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