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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Hein Semke: Fé, Certeza, Erro ou Necessidade?

Hein Semke: Faith, cer tainty, error or certainty?

 

Joanna Latka*

*Polónia, artista plástica, investigadora de gravura. Mestrado em Educação das Artes Plásticas no Instituto das Artes, na universidade de Pedagogia em Cracóvia, Polónia, (2003), Pós-graduação em Ilustração pelo ISEC (2006).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa. Faculdade de Letras. Instituto de História da Arte. Alameda Universidade 1600-214 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Pretende-se neste artigo apresentar o projecto de Hein Semke "Fé – Certeza – Erro Ou Necessidade?", e sobretudo o seu livro de artista "Der Gekreuzigte und ich" (O Crucificado e eu), onde o artista debate a questão da fé e da sua possibilidade no mundo moderno. Semke expressa as suas reflexões sobre o problema não só através de imagens (monotipias/aguarelas), mas também de palavras (textos filosóficos).

Palavras-chave: Hein Semke / Monotipia / Livro de artista / Deus / Fé.

 

ABSTRACT

The aim of this article is to present Hein Semke's project "Faith – Certainty – Error Or Need?" and especially his artist's book "Der Gekreuzigte und ich" (The Crucified and I), where the artist discusses the issue of faith and its possibility in the modern world. Semke expresses his reflections on the subject not only in images (monotypes/watercolours), but also in words (philosophical texts).

Keywords: Hein Semke / Monotype / Artist's book / God / Faith.

 

1. O Crucificado e eu...

Pretende-se neste artigo referir o projeto Fé – Certeza – Erro Ou Necessidade? e sobretudo o livro de artista Der Gekreuzigte und ich (O Crucificado e eu), de um escultor estrangeiro residente em Portugal: Hein Semke (1899, Hamburgo – 1995, Lisboa). Este artista místico, alemão domiciliado em Lisboa (Valdemar, 1966), abordou frequentemente desde o início da sua carreira a problemática de Deus. Criador e pensador profundo, desenvolveu ao longo da vida um diálogo muito pessoal e próprio com Deus, uma reflexão artística e filosófica, a partir das experiências, algumas bem dolorosas, da sua existência: morte da mãe, Primeira Grande Guerra (combatente na Ucrânia, França e Flandres), revoluções políticas, seis anos de prisão solitária, graves problemas de saúde, emigração, entre outros. Diálogo que documentou falando quase sempre unicamente como artista da forma, como um indivíduo que todos os dias precisa de nova matéria moldável para poder exprimir o que está em constante – renovação – . (Semke, 1969). As suas obras foram realizadas em diversas modalidades plásticas, tais como: a Escultura, a Cerâmica, a Pintura, a Gravura e o Livro de Artista. Tais manifestos artísticos, no entanto, nem sempre foram (ou são) compreendidos conforme a intenção do escultor. Lembramos que Semke (educado na fé luterana) centrava a sua atenção na figura de Cristo sobretudo como exemplo moral.

A criação de dogmas à volta do = Crucificado = só é importante no sentido negativo de um endurecimento e portanto de uma neutralização do desejo fundamental deste Crucificado. Ele, o Crucificado, não queria uma hierarquia – não queria senhores – nem súbditos. Ele, o grande irmão de todas as coisas e de tudo o que acontece, queria apenas realizar a grande fraternidade humana que ainda hoje continua a ser uma utopia. (Semke, 1969)

 

2. Quando Deus criou o homem...

Um dos mais fortes testemunhos desta maneira de pensar do artista ficou patente ao público português na exposição que intitulou Fé – Certeza – Erro Ou Necessidade?, realizada no Palácio Foz, em Dezembro de 1967, fruto de um trabalho de cerca de trinta meses. A produção, apoiada durante um ano pela Fundação Calouste Gulbenkian, somou setenta e sete obras, a maioria de grandes dimensões: colagens escultóricas sobre madeira, pinturas e monotipias (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4).

 

 

 

 

 

 

 

 

Nesta mostra, que considerou resultado de uma tentativa de autocrítica humano-artística, Semke apresentou a sua visão da religião: quer usando o simbolismo cristão como suporte da narrativa autobiográfica, quer revelando a sua interpretação mística do mundo e da arte.

Primeiro que tudo há que fixar o que é arte: Quando Deus criou o homem deu-lhe uma pequeníssima partícula da sua centelha divina ou força de renovação. Esta centelha do vivamente criador que se manifesta com enorme variedade, é o que nos liga a Deus. Cada pessoa traz dentro de si esta centelha. E é dentro dela, que nos lembramos do tempo em que Deus criava do Nada. E é assim, que o artista também tem que dar forma ao que não existiu até agora, ao que até aí não fora criado. (Semke,1953, s/p).

Posteriormente, em 1969, Semke decidiu reunir algumas tiragens das monotipias expostas no Palácio Foz no livro de artista Der Gekreuzigte und ich (O Crucificado e eu). Sob este título arrogante – como observa na introdução –, juntu aos elementos gráficos e pictóricos um texto alemão manuscrito onde tenta esclarecer os leitores.

Certo é que as referências ao = Crucificado =, que hoje se designa por = Jesus Cristo =, só surgiram quase 100 a 150 anos depois dele. Quantas alterações da verdade não poderão ocorrer num período de 150 anos em que todos os nossos actuais métodos de registo e de verificação eram desconhecidos? (Semke, s/p, 1969)

Neste prefácio o escultor aborda as questões principais da nossa existência e da consciência humana e interroga-se sobre se no mundo de hoje ainda é possível acreditar:

O problema se hoje em dia nós (eu) ainda podemos acreditar, as ideias desta procura, fixaram-se na questão, no motivo da dúvida ou da fé em Cristo, o Crucificado. – Não no Crucificado que os depoimentos lendários dos apóstolos e de Paulo rotularam deliberadamente como Deus. Mas no = Crucificado = que como personalidade consciente e autoconsciente tentou e conseguiu a = harmonia = entre um tu e o outro tu. E por isso teve de morrer na cruz como um criminoso. – Como indivíduo isolado – como irmão de todos – ele rompeu todas as castas – raças – vínculos étnicos ou nacionais. Como indivíduo isolado – como irmão – agiu contra os privilégios do domínio e do poder de uma sociedade há muito estabilizada que respondia, ou melhor, punia, qualquer tentativa de influência (boa ou má, justa ou injusta) com a aniquilação radical. (Semke, 1969, s/p)

A terminar, longe de estar com isto a criar um dogma – a erigir uma torre do universalmente válido (Semke, 1969), o artista conclui a título pessoal sobre a necessidade da "fé".

O livro compõe-se de 30 gravuras de 100 x 70 cm (páginas ímpar), realizadas em 1967, e de 30 aguarelas de iguais dimensões (páginas pares), pintadas em 1969, montadas em forma de livro. A técnica das gravuras é a monotipia, e a utilização de tintas de offset, com a sua consistência e espessura específicas, permitia a Semke fazer mais do que uma impressão. O artista conseguia deste modo obter entre 3 e 5 provas diferentes e únicas da mesma matriz.

Penso menos na chamada verdade histórica – que nunca é comprovável em absoluto – do que no = possível = que a minha vivência artística pessoal me mostra. Sei que nas imagens explicativas que se seguem se aponta para coisas historicamente = incomprováveis =, mas será o historicamente = comprovável = a verdade que revela os reais fundamentos de um acontecimento? (Semke, 1969)

Foram exatamente as gravuras que "sobraram" da exposição, que Semke aproveitou para criar este seu livro. Nas provas gráficas podemos observar interessantíssimos efeitos das texturas, muito ricas e originais, resultantes da manipulação da tinta com diluente, secante e petróleo. Semke aproxima-se assim esteticamente da sua produção em cerâmica, disciplina a que se dedicou maioritariamente até 1963, quando teve de abandoná-la devido a uma silicose. Visualmente as gravuras mostram uma paleta cromática intensa, associada a uma forte linguagem de cariz expressionista – que sempre foi uma das marcas características de Semke e que nestas monotipias nos parece ainda mais acentuada e com um traço mais livre. O mesmo acontece com as aguarelas.

Planeei acrescentar a cada uma das gravuras do Crucificado algumas palavras sobre a minha posição. Depois de ordenar as páginas impressas, como me propusera, verifiquei que as palavras nem sempre exprimiam aquilo que eu vivi – senti – experimentei quando fiz as gravuras do Crucificado. – Peguei no pincel e tentei através da cor e da forma aproximar-me, fazer justiça ao conteúdo das gravuras. Se o consegui, quem as vir que decida. (Semke, 1969)

 

3. Ele, o grande irmão de todas as coisas e de tudo o que acontece

Para finalizar lembramos que o nosso objetivo não foi apenas fazer uma contextualização da temática da obra "religiosa" de Hein Semke. Gostaríamos de chamar à atenção para o projeto Fé – Certeza – Erro Ou Necessidade? e sobretudo para o livro Der Gekreuzigte und ich (O Crucificado e eu), que revela, para além do lado filosófico do artista, a sua grande riqueza em áreas menos conhecidas da sua atividade como a Gravura e o Livro de Artista (Semke produziu ao todo 34 livros). Esperamos despertar assim o interesse dos leitores para estas obras, sem dúvida merecedoras de maior atenção.

Como artista – como artista estreitamente circunscrito ao individual, apontarei só a minha verdade, a que surgiu dentro de mim, que é, pode ou devia ser mais autêntica do que qualquer chamada verdade histórica. Só existe uma verdade autêntica, a do nosso próprio eu, a da nossa própria vivência – a do meu exclusivo reconhecimento do que acontece dentro de mim. (Semke, 1969, s/p)

Desejo agradecer à Dr.ª Teresa Balté ter-me facultado a informação necessária à elaboração deste artigo e por toda a sua preciosa ajuda.

 

Referências

Balté, Teresa (2009) A Coragem de Ser Rosto, 2ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. ISBN: 978-972-27-1640-6.         [ Links ]

Balté, Teresa (s/d) Ficha técnica: tradução completa – Der Gekreuzigte und ich (O Crucificado e eu), (s, n), Arquivo de Teresa Balté         [ Links ].

Semke, Hein (1969) Der Gekreuzigte und ich (O Crucificado e eu), Livro de artista. Hein Semke.         [ Links ]

Valdemar, António (1966), "Um encontro com Hein Semke o artista que expôs no Palácio Foz uma centena de monotipias síntese das várias modalidades plásticas que praticou ao longo da sua carreira," Diário de Notícias. (3/3/1966).         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 7 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: jolatka@gmail.com

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