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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Paisagem e espaço: elucubrações sobre o sagrado e o sublime

Landscape and space: reflections about the sacred and the sublime

 

Paula Cristina Somenzari Almozara*

*Brasil, Artista visual, professora e pesquisadora da Faculdade de Artes Visuais da Pontifícia universidade Católica de Campinas, Brasil. Doutorado em Educação, na Área de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte, unicamp. Mestrado em Artes, unicamp, 1997. Licenciatura e bacharelado em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas, unicamp.

AFILIAÇÃO: Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Rodovia D. Pedro I, km 136, Parque das Universidades, Campinas – SP. CEP: 13086-900, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O artigo realiza uma reflexão sobre as questões do sagrado e sublime a partir de relações metafóricas associadas à paisagem e ao espaço, por meio da paradigmática obra do artista brasileiro Marcelo Moscheta (1976).

Palavras-chave: Paisagem / espaço / sagrado / sublime / Marcelo Moscheta.

 

 

ABSTRACT

The paper develops a reflection about the concept of the sacred and the sublime through metaphorical relationships associated with the landscape and the space from the paradigmatic work of Brazilian artist Marcelo Moscheta (1976).

Keywords: Landscape / space / sacred / sublime / Marcelo Moscheta.

 

Pensar a paisagem como um "constructo", como afirma Maderuelo (2006: 17), implica em considerar que aquilo que determinamos hoje como questões eminentemente paisagísticas estão ligadas a diversas outras possibilidades culturais, sociais, estéticas e antropológicas e, em épocas mais remotas, a "uma primitividade da paisagem" que "precede toda uma instituição" e na "qual estamos no quadro de uma experiência muda, 'selvagem'" (Besse, 2006: 80), uma expressão da espiritualidade primitiva associada às relações simbólicas e às imanentes entre homem e natureza (Armstrong, 2005).

Não se pretende, no entanto, imprimir a ideia de paisagem como sinônimo restrito de natureza ou mesmo de espaço, mas determinar a possibilidade de ligações metafóricas que abarcam situações estéticas concentradas no e pelo constructo "paisagem", tomando para isso o princípio de alteridade e de manifestações do sagrado e do sublime que permeiam nosso inconsciente coletivo e que são revisitados na arte por estratégias e construções poéticas que se valem, não apenas de elementos presentes na natureza, mas que utilizam a ideia de experiências de deslocamentos sígnicas "como um espaço objetivo de existência" (Besse 2006: 21).

Desse modo, as relações entre paisagem/homem, espaço/experiência são mecanismos por meio dos quais há condições de se pensar sobre a emanação do "sagrado", ou manifestação de um elemento supra real, no qual "Deus" torna-se uma ideia abstrata, implícita, e que pretende determinar uma incessante busca de entendimento da condição de vida humana e de suas idiossincrasias vitais.

Dentro dessa discussão, o "sublime", que se caracteriza como um elemento aparentemente anacrônico, está presente de uma forma elementar para ressaltar como certos processos artísticos valem-se do deslocamento e do embate com o espaço/lugar como estratégia de criação, colocando o ser humano diante de uma situação geográfica especial, capaz de provocar sensações de arrebatamento e finitude, suplantando a premissa de um mundo completamente conhecido, dominado, seguro e delimitado.

Quando observa-se a paradigmática obra do artista brasileiro Marcelo Moscheta (1976) tem-se, nos detalhes, uma exata medida das conexões significativas imbricadas entre paisagem e ser, espaço e devir e as estratégias poéticas criadas. Essas que operam por meio de referências nas quais elementos da paisagem natural são constantemente explorados, segundo o próprio artista, como forma de "medir" a si mesmo "em relação à paisagem, na escala das coisas" (Moscheta, 2013: 88) Moscheta é um viajante incansável, seu trabalho visa ao processo de criação diante da possibilidade de transformar o mundo (ou uma visão de mundo) por meio da reordenação das coisas vistas. Aqui, a ideia do sagrado apoia-se em um processo de sacralização – impelido pela reordenação – na qual objetos aparentemente banais são transmutados em contentores mnemônicos. O artista explora ainda a grandiosidade dos espaços percorridos, evocando a insignificância do ser humano perante a paisagem e o arrebatamento diante do desconhecido como potências expressivas que impelem a uma relação imanente entre espaço e homem.

Trata-se de um esforço de observação subjetiva e empírica do lugar, que determina uma tentativa de pertencimento e que é, em um primeiro momento visualmente marcada, no trabalho do artista, por uma situação de investigação, na qual processos eminentemente científicos, como anotações de coordenadas, recolha de espécimes, inscrições e relatos em cadernos/diários, são convertidos em processos de mediação dialógica – em uma luta silenciosa, interna e articulada – entre emoção e razão. Essa impressão é sustentada pelo modo como Moscheta sutilmente se vale das histórias dos lugares em que ele se encontra e de formas simbólicas associados a elementos como as nuvens, as montanhas, as árvores, as pedras, e que são igualmente formas primitivas conectadas a uma expressão material que aspira ao sagrado.

Suas obras realizadas em residências artísticas e sites specifics ressaltam, como afirma o artista (e como é observado de modo geral em sua obra), a "função das ambiguidades da qual somos formados, terra e paraíso, o bem e o mal" em um espaço que estabelece "o diálogo profundo entre o motivo e o locus" (Moscheta, 2014).

Pode-se considerar nesse caso a existência de estratégias poéticas que determinam uma situação na qual "o espaço é um híbrido de forma e conteúdo" (Santos, 2012: 24):

visto em sua própria existência, como forma-conteúdo, isto é, como uma forma que não tem existência empírica e filosófica se a considerarmos separadamente do conteúdo, e um conteúdo que não poderia existir sem a forma que o abrigou (Santos, 2012: 24).

 

Contra.Céu (Figura 1), site specific realizado em 2010 na Capela do Morumbi na cidade de São Paulo (Brasil) revela como esse diálogo "entre o motivo e locus" é entendido pelo artista. Neste trabalho, a predominância de um dos elementos mais caros ao artista, o desenho de nuvens, estabelece a ideia fundamental de representação da transitoriedade e da irrefreável passagem do tempo a qual o ser humano é submetido, revelando por conseguinte sua pequenez diante do que, possivelmente, seria a própria descoberta de sua humanidade no embate com elementos da natureza.

 

 

O desenho feito em grafite sobre chapa de PVC, aparentemente frágil e efêmero (Figura 2), concentra em sua materialidade e na forma escolhida, algo essencial, uma epifania – como constantemente ressalta o artista – e provocada, antes de mais nada, pela experiência de proximidade das coisas, pois a composição desvela em sua estrutura (Figura 2, Figura 3) a tensão entre duplos, não apenas conceituais, mas materiais. O desenho colocado na parte superior da estrutura e construído por um laborioso e paciente processo manual converte-se em um reflexo visualizado por meio do metal polido, sólido e perene, colocado em ângulo e, assim, criando um simulacro da imagem original que paira sobre a cabeça do observador. Embora perfeita, a imagem projetada é tão somente um reflexo por si imaterial, intocável, inconspurcável.

 

 

 

 

Deliberadamente, o artista "oferece" sua obra ao espaço do sagrado e ao da comunhão: o altar principal da antiga capela. Aqui "a paisagem é o espaço do sentir, ou seja, o foco original de todo o encontro com o mundo" (Besse, 2006: 80).

Marcelo Moscheta, em sua trajetória, determina, de modo contundente sua vocação como artista-viajante. Seu interesse pelas grandes expedições do passado parece convergir para questões vitais sobre os limites possíveis e impossíveis ao ser humano diante do desconhecido. O artista expressa visualmente tais inquietações, que são por si problemas existenciais, no esforço de entender o desejo humano pelo enfrentamento de uma natureza avassaladora, procurando uma aproximação com a ideia de sublime, como força extrema e transcendente diante do incomensurável.

Nesse contexto, Moscheta participa em 2011 do programa anual "The Arctic Circle" e empreende uma viagem ao Arquipélago de Svalbard no Polo Norte. Tal experiência é narrada em um diário de bordo que se transforma depois em livro e em exposição (Figura 4).

 

 

Troco o conforto do meu ateliê, em Campinas, pela dificuldade de estar longe do que é controlável. Lá, na paisagem, não detenho controle do tempo e do espaço e deixo-me, assim, aberto à experiência do maravilhamento com o entorno, para o encontro com a essência do lugar (Moscheta, 2013: 9).

Essa situação extrema provocou em sua narrativa de diário de bordo a constante menção as sensações de avassalamento, de ampliação da percepção pelo silêncio profundo, pela transfiguração das cores e dos reflexos causados por uma luminosidade abissal, "o espanto da alma" que "começou com o vento congelante no rosto" (Moscheta, 2013: 9), ali o artista-viajante transformou-se em um "discípulo tardio" dos corajosos desbravadores do passado (Figura 5). Em sua estratégia de construção poética, Moscheta meticulosamente estudou toda a história (Figura 6, Figura 7) do lugar refazendo e percebendo os "métodos exploratórios conectando presente e passado" (Moscheta, 2013: 16).

 

 

 

 

 

 

As relações implicadas no uso que o artista faz de referências e até de procedimentos científicos dialoga habilmente com aspectos subjetivos. O artista se debruça sobre o modo como a cultura científica pode ser manipulada, para eliminar uma objetividade racional e ascender ao plano emocional.

Talvez o trabalho mais emblemático apresentado a partir da experiência de viagem ao Circulo Polar Ártico seja o conjunto "à Deriva".

O artista elege um elemento da paisagem para que este seja uma espécie de contentor de memórias, assim, o processo é estabelecido a partir de fotos de icebergs.

Moscheta acaba por determinar um caminho que o leva à elaboração de um conjunto tridimensional, pautado por uma laboriosa modelagem das imagens dos icebergs em esculturas de isopor® (esferovite) que são segmentadas em uma espécie de escaneamento topográfico manual e reconstruídas finalmente em acrílico, luz e ferro (Figura 4, Figura 8).

 

 

A escolha dos icebergs revela não apenas seu contato com essas formações, mas uma questão importante dentro da poética do artista: a eleição de um elemento que por essência é potencialmente simbólico.

O elemento escolhido revela-se, pois, conectado à ideia de sacralização, ou seja um "objeto" que é retirado de seu contexto ordinário e alçado de modo representativo a uma nova categoria que lhe confere possibilidades de digressões metafóricas, para não dizer míticas.

Assim, o significado do conjunto é um detonador de conceitos em torno da própria constituição formal do iceberg como um elemento dual, composto, por uma "pequena" parte visível na superfície e uma grande parte submersa, desconhecida, invisível.

Na materialidade desses trabalhos, o artista determina, enfim, o vínculo entre o que está na superfície – o que é consciente, o que é tangível – e o que está na profundidade inalcançável, no inconsciente, na imaginação.

A experiência paisagística, nesse caso, é uma experiência que transcende a ordem do racional, na qual "o ser humano pode se apoderar das relações secretas que o unem ao cosmo, e sentir sua existência, por assim dizer, justificada" (Besse, 2006: 28)

 

Considerações finais

As elucubrações sobre o sagrado e o sublime a partir de relações metafóricas ligadas à paisagem e ao espaço na obra do artista Marcelo Moscheta podem muito bem servir-se da máxima, atribuída a Aby Warburg, na qual "Deus está no detalhes" e cuja a vontade é exprimir o inexprimível, uma vez que:

a paisagem significa participação mais que distanciamento, proximidade mais que elevação, opacidade mais que vista panorâmica [...] não há paisagem sem a coexistência do aqui e do além, coexistência do visível e do oculto, que define a abertura sensível e situada do mundo (Besse, 2006: 80).

 

Referências

Armstrong, Karen (2005). Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN: 85-359-0731-9.         [ Links ]

Besse, Jean-Marc (2006). Ver a terra: seis ensaios sobre paisagem e geografia. São Paulo: Perspectiva. ISBN: 85-273-0755-3.         [ Links ]

Maderuelo, Javier (2006). El paisaje, génesis de un concepto. Madrid: Abada Editores. ISBN: 84-96258-56-4.         [ Links ]

Moscheta, Marcelo (2011). Marcelo Moscheta. São Paulo: BEI. ISBN: 978-85-7850-067-2        [ Links ]

Moscheta, Marcelo (2013). Norte. Rio de Janeiro: Ímã Editorial. ISBN: 978-85-64528-53-6        [ Links ]

Moscheta, Marcelo (2014). Marcelo Moscheta. [Consult. 2014/05/07]. Disponível em: http://www.marcelomoscheta.art.br        [ Links ]

Santos, Milton (2012). A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp. ISBN: 978-85-314-0713-0        [ Links ]

 

Artigo submetido a 07 setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: almozara@gmail.com

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