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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS

DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES

Apontamentos sobre Paulo Nazareth como um "locatário da cultura"

Notes on Paulo Nazareth as a "culture's lessee"

 

Maria do Carmo de Freitas Veneroso*

 

*Par académico externo da Revista Estúdio. Professora universitária e artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, Departamento de Artes Plásticas. Escola de Belas Artes. Av. Antônio Carlos, 6627. Campus Pampulha. Belo Horizonte, Minas Gerais. Cep: 31270-901. Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O objetivo desse artigo é refletir criticamente sobre obras do artista brasileiro Paulo Nazareth, considerando sua atuação artística como uma prática cultural e relacional, e aproximando o artista do etnógrafo. Andarilho, performático, saindo do bairro Palmital, periferia de Belo Horizonte (MG), Brasil, o artista já percorreu vários caminhos que o levaram à Índia, África, Américas e Europa.

Palavras chave: Estética relacional / etnografia / andarilho.

 

ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect critically on works by Brazilian artist Paulo Nazareth, considering his artistic work as a cultural and relational practice, and approaching the artist of the ethnographer. Wanderer, performative, leaving the neighborhood Palmital outskirts of Belo Horizonte (MG), Brazil, the artist has traveled various paths that led him to India, Africa, the Americas and Europe.

Keywords: Relational Aesthetics / Ethnography / wanderer.

 

Aprender a habitar melhor o mundo

Pode-se aproximar o trabalho do artista Paulo Nazareth daquele de um etnógrafo, pois ambos realizam suas investigações aproximando-se do seu objeto de estudo, sendo que o conjunto de obras resultantes procura abranger uma determinada realidade, por mais multifacetada que ela se apresente. Multifacetada é também a origem de Nazareth: brasileiro, nascido em 1977 na cidade de Governador Valadares, Minas Gerais, ele traz em sua herança familiar traços do negro, do índio, do branco, um caboclo – o Outro. Esses traços aparecem em seu trabalho, em uma busca pela sua própria identidade multifacetada, multicultural.

Paulo é um artista andarilho, performático, e é também um contador de histórias. Desde que começou a caminhar, não parou mais, e é desse caminhar que surge seu trabalho. Paulo é curioso. Persegue aquilo que o intriga. Assim, saindo do bairro Palmital, em Belo Horizonte, já percorreu vários caminhos, que o levaram à Índia, a vários pontos da África, das Américas, da Europa.

O trabalho desenvolvido por Paulo Nazareth aproxima-se da "estética relacional" de Nicolas Bourriaud, proposta pelo autor não como teoria da arte, porque sua preocupação não é a busca de uma origem e de um destino, mas como uma teoria da forma. O crítico discute o conceito de forma como uma "unidade estrutural que imita um mundo. A prática artística consiste em criar uma forma capaz de 'durar', fazendo com que entidades heterogêneas se encontrem num plano coerente para produzir uma relação com o mundo" (Bourriaud, 2009: 149). Nesse sentido, a forma, na arte contemporânea, estaria além de sua forma material, sendo antes de tudo um amálgama, um princípio aglutinante, só adquirindo existência real a partir das interações humanas: "cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito" (2009: 31). Nesse sentido, a arte atual, de tendência relacional, se inspiraria nos processos que regem a vida cotidiana, não havendo um suporte dominante, pois o meio escolhido seria apenas o modo mais apto para formalizar certas ações, certos projetos.

 

Cadernos de África

Buscando sua identidade, em Cadernos de África (2013) Nazareth decidiu retraçar a rota dos escravos, percorrendo vários milhares de quilômetros de Joanesburgo a Lyon. No dia a dia ele criou uma obra de arte como um relato de viagem, pintando a "pele com suco de Genipapo azul-preto como um Blackman antes de ir para a África". Nazaré combina os talentos de artista, artista de rua, poeta e antropólogo. Ele realiza atos simples, ordinários, descobrindo-os através do contato com as pessoas que encontra pelo caminho.

No projeto Cadernos de África, Nazareth declara como objetivos (Figura 1):

SABER O QUE TEM DE AFRICA EM MINHA CASA [KNOW WHAT THERE IS FROM ÁFRICA IN MY HOME] – PALMITAL A, setor 7, SANTA LUZIA / MG – BRASIL – CONHECER AFRICA ANTES DE CHEGAR A EUROPA – SABER O QUE HÁ DE MINHA CASA EM EUROPA – SABER O QUE TEM DE AFRICA EM EUROPA [KNOW AFRICA BEFORE TO GO TO EUROPA --KNOW WHAT THERE IS FROM AFRICA IN MY HOME --KNOW WHAT IS IN EUROPA FROM MY HOME --KNOW WHAT THERES IS FROM AFRICA IN EUROPA --KNOW WHAT THERE IS IN AFRICA FROM MY HOME] SABER O QUE TEM DE MINHA CASA EM AFRICA

 

 

Quando realizou sua "viagem", não sabia o que iria encontrar. O resultado dessa improvisação intencional foi uma espécie de mapa que traçou do seu percurso, através de rótulos de garrafas de água mineral que foi recolhendo pelo caminho. A água, de uma certa maneira, conecta todos os povos por ser um elemento essencial para a sobrevivência, sendo que cada qual a trata de uma forma diferente, baseada na sua abundância ou escassez. Com essa obra, Nazareth trata da memória cultural dos lugares por onde andou, trazendo na sua bagagem signos que foi coletando pelo caminho, ressignificando-os a partir do seu olhar e das relações entre eles.

Os rótulos de garrafas de água foram instalados diretamente sobre o chão de uma sala na Bienal de Lyon, formando uma espécie de mapa, mas seguindo uma ordem ditada por afinidades entre eles, segundo o artista (Figura 2). Também tampas de garrafas de água e um galão azul escuro fazem parte da instalação. Azul é a cor predominante no trabalho, que remete aqueles de outros artistas, como Lotus Lobo, Jac Leirner, Andy Warhol e Damien Hirst, nos quais rótulos ocupam papel central, e todos eles ligados a uma linhagem de artistas que se apropriam de materiais impressos de segunda mão, incluindo Kurt Schwitters, Marcel Duchamp, Max Ernst, Robert Rauschenberg, entre outros.

 

 

A apropriação de imagens e materiais preexistentes é uma estratégia que tem caracterizado grande parte dos trabalhos produzidos desde a década de 1960, época em que a arte culta e a cultura de massa estabeleceram um diálogo que teria muitos desdobramentos. A prática da apropriação é aproximada, por Hal Foster, do conceito de "mito" de Roland Barthes: "[O mito] é construído a partir de uma cadeia semiológica que já existia antes: é um sistema semiológico de segundo grau. Aquilo que é signo... no primeiro sistema se torna um mero significante no segundo" (Barthes apud Foster, 1996: 221). É através desse jogo entre significante e significado que artistas como Lotus Lobo produzem suas obras.

Lotus apropria-se de rótulos e marcas da estamparia litográfica industrial mineira (Figura 3), em trabalhos que remetem a uma memória cultural, já que as marcas e os rótulos, produzidos na primeira metade do século XX em Minas Gerais, eram desenhados num "disaim caipira", termo usado pelo pesquisador e artista Márcio Sampaio, para se referir a um tipo de design que mistura um gosto caipira e formas cultas, engendrando imagens brasileiríssimas. Segundo Sampaio, "sobrepondo-se à categoria do kitsch, essas imagens correspondem a um dos aspectos mais interessantes do processo antropofágico, que mais uma vez se manifesta no quadro da arte mineira" (s/d), referindo-se também ao trabalho dos entalhadores que decoravam altares e retábulos das igrejas coloniais mineiras. Nelas, eram usadas referências provenientes de álbuns de repertório visual barroco e rococó, trazidos da Europa. Também os desenhistas das oficinas litográficas partiam de modelos das escolas bávaras e italianas (com resseonâncias neoclássicas e rococós, art-nouveau, estilo império e góticas) que eram por eles assimiladas e transformadas, na criação de um estilo local (Sampaio, s/d). Através de um processo de apropriação, foi nascendo um estilo híbrido que unia a arte culta a uma visualidade nitidamente popular na criação dos rótulos e das embalagens litográficas.

 

 

Os trabalhos de Lotus Lobo com as marcas da estamparia litográfica industrial mineira, tal qual os ready-mades assistidos de Marcel Duchamp, ilustram a proposta de que o trabalho de um artista consiste essencialmente na montagem de materiais preexistentes, que podem perfeitamente ser prefabricados (Wilson, 1975: 6). "A recriação desses rótulos, através de repetições, de superposições, da transformação das cores e das formas litográficas, constitui a maior inovação artística de Lotus Lobo" (Ribeiro, 1997: 217). Através das suas impressões, Lotus discute a linguagem gráfica, e também a linguagem da gravura: são impressões de impressões, já que as marcas, que eram originalmente criadas para serem rótulos de produtos, foram mais tarde apropriadas por Lotus, transformando-se em obras de arte.

Também Jac Leirner lançou mão de material impresso de segunda mão, ao criar a instalação "Nomes" na 20a Bienal de São Paulo, em 1989, um acúmulo de sacolas plásticas coletadas durante suas viagens por diferentes países, trazendo marcas comerciais impressas. As sacolas foram costuradas umas às outras e revestidas com espuma acrílica, recobrindo todo o cômodo de 1150 x 495 centímetros. São signos da cultura cotidiana do consumo, poetizados por ela, e que envolvem o espectador, que "entra" na instalação. Guy Brett comenta, no catálogo da 20a Bienal de São Paulo, que a artista "não está juntando coisas para chegar a uma uma imagem finita e preexistente, ou a uma sensação estética 'abstrata' [...]", mas que ela "propõe uma nova definição da poética, um tipo de intervenção que modifica os padrões de espaço e de tempo em que nós, e os objetos, nos movemos. Uma nova maneira pela qual a vida pode vitalizar a arte ou a arte revelar a vida" (1989: 169).

Tanto os trabalhos de Lotus Lobo quanto aqueles de Jac Leiner remetem à obras de Andy Warhol, como a emblemática Brillo Box. Arthur Danto comenta que "nada precisa marcar externamente a diferença entre a Brillo Box de Andy Warhol e as caixas de Brillo do supermercado" (2006: 16). O que as diferencia é a intenção do artista, que ao escolher a caixa de Brillo, remete ao ready-made duchampiano, ou seja, à "arte como ideia" e não como produto visual. A prática da apropriação está presente também na obra de Damien Hirst, quando o artista lança mão de embalagens e rótulos de medicamentos na obra Pharmacy Wallpaper, de 1998, criado para o restaurante Pharmacy, em Londres. Hirst adota uma atitude provocativa ao associar textos oriundos da Bíblia, que formam os títulos sob os quais se encontram embalagens de medicamentos, pílulas e comprimidos.

Paulo Nazareth bebeu nessa mesma fonte, e como "locatário da cultura" que é, lançou mão de rótulos preexistentes, para com eles compor seu "mapa" da água. Essa sua ênfase no cotidiano aponta para o fato de que "hoje, o cotidiano se apresenta como terreno mais fecundo do que a 'cultura popular' – forma que só existe em relação e oposição à 'alta cultura'" (Bourriaud, 2009: 65). Com essa colocação Bourriaud constata que a antiga oposição entre alta cultura e cultura popular pode estar sendo ultrapassada pela arte atual, na sua ênfase no cotidiano. Ou seja, nesse contexto talvez já não haja nenhuma contradição entre alta e baixa cultura, já que os artistas têm abarcado, de uma maneira mais ampla, a cultura, sem preocupações dessa natureza.

O autor afirma ainda que se ontem o artista se interessava pelas relações internas do mundo artístico, "numa cultura modernista que privilegiava o 'novo' e convidava à subversão pela linguagem", hoje, a ênfase recai sobre as relações externas numa "cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao rolo compressor da 'sociedade do espetáculo' (2009: 43). Discutida por Guy Debord, a "sociedade do espetáculo" seria uma "sociedade em que as relações humanas não são mais 'diretamente vividas', mas se afastam em sua representação 'espetacular' (Bourriaud, 2009: 12). Porém, Bourriaud discute o pensamento de Debord, pontuando que

ao contrário do que pensava Debord, para quem o mundo da arte não passava de um depósito de exemplos do que se devia 'realizar' concretamente na vida cotidiana, hoje a prática artística aparece como um campo fértil de experimentações sociais, como um espaço parcialmente poupado à uniformização dos comportamentos (2009: 12-13).

Seria uma questão de "aprender a habitar melhor o mundo, em vez de tentar construí-lo a partir de uma ideia preconcebida da evolução histórica" (Bourriaud, 2009: 18). Ou seja, "as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram construir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista" (Bourriaud, 2009: 18). As obras de artistas como Paulo Nazareth podem ser aproximadas dessa ideia, onde o artista torna-se uma espécie de locatário da cultura, termo usado por Michel de Certeau, quando o autor discute a "invenção do cotidiano" (1994).

 

Conclusão

Acima de tudo, é, pois, através da relação do artista com o cotidiano e com o outro que os trabalhos de Nazareth podem ser lidos, produzindo significados. Trata-se de um indivíduo que em seus caminhos pelo mundo busca resposta às suas indagações e nos oferece um material poético e político instigante, decorrente dessa busca por signos que façam sentido nesse "melting pot" contemporâneo em que vivemos. Sua contribuição para a arte contemporânea é relevante, já que o artista atua em um nível ordinário, cotidiano, estabelecendo contatos com o outro, e buscando sensibilizá-lo para questões presentes no mundo atual.

 

Referências

Bourriaud, Nicolas (1989) Estética Relacional. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009. Catálogo da XX Bienal Internacional de São Paulo. Fundação Bienal de São Paulo.

Certeau, Michel de (1994) A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Danto, Arthur C. (2006) Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Edusp, Odysseus.         [ Links ]

Foster, Hal (1996) Recodificação. Arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista.         [ Links ]

Ribeiro, Marília Andrés (1997) Neovanguardas: Belo Horizonte – anos 60. Belo Horizonte: C/Arte.         [ Links ]

Sampaio, Márcio. (s/d.) "Primeiríssima qualidade (anotações sobre a Litografia em Minas Gerais)." In Memória da Litografia em Minas Gerais.         [ Links ]

Taylor, Diana (2013) O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Trad: Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG.         [ Links ]

Wilson, Simon (1975) A Arte Pop. Barcelona: Labor.         [ Links ]

 

Artigo completo enviado a 20 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: mcfv@ufmg.br (Maria do Carmo Veneroso)

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