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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Povos Indígenas em Quadrinhos: o olhar etnográfico-semiótico do artista brasileiro Sérgio Macedo

Indigenous people in Comics: the ethnographic-semiotic look by the Brazilian artist Sérgio Macedo

 

Cláudia Matos Pereira*

 

*Brasil, artista plástica, professora de Artes e Desenho. Mestre Ciência da Religião pela Universidade federal de Juiz de Fora (UFJF-2007). Professora assistente em Desenho de modelo vivo. Graduada em Artes pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em Licenciatura Plena e Bacharelado (UFJF).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Belas Artes, Programa de pós-graduação em Artes Visuais. Av. Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Rio de Janeiro – RJ, CEP 21941-901, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Para Clifford Geertz o conceito de cultura é semiótico em sua essência. O presente artigo tem como objetivo revelar o olhar etnográfico-semiótico, imerso na cultura indígena, do artista e desenhista Sérgio Macedo em seu livro: "Povos Indígenas em Quadrinhos." Não se trata apenas de uma sequência de narrativas visuais, mas sobretudo de um manifesto que dá voz aos indígenas, mediante a linguagem artística da história em quadrinhos.

Palavras chave: imagem e cultura / arte brasileira / história em quadrinhos / povos indígenas / etnografia.

 

ABSTRACT

For Clifford Geertz, the concept of culture is semiotic in its essence. This article aims to reveal the ethnographic semiotic look, immersed in the Indigenous culture, by the artist and designer Sergio Macedo in his book: "Indigenous people in Comics books." It is not just a sequence of visual narratives, but mostly of a manifesto that gives voice to indigenous through artistic language of comics books.

Keywords: image and culture / brasilian art / comics / indigenous people / ethnography.

 

1. Introdução

Nasce em 1951, na cidade de Além Paraíba, estado de Minas Gerais, aquele que nos anos de 1970, viria a ser o primeiro autor brasileiro a publicar Histórias em Quadrinhos na 'Revista Grilo', que, até então, só publicava artistas estrangeiros: Sérgio Macedo. Inicia os primeiros desenhos com dois anos e meio de idade e, com quatro anos e meio, desenha sua primeira página de HQ, ao copiar uma página do clássico "O Último dos Moicanos."

Em 1973, publicou o primeiro livro de HQ brasileiro, "O Karma de Gargoot". Em 1974, foi para a França e depois viveu por 25 anos no Taiti. Nos EUA, seu livro "Lakota: An Illustrated History", foi premiado com o Benjamin Franklin Award como a melhor obra multicultural de 1997. Em 2007, recebeu no Brasil o troféu HQ Mix, categoria Grande Mestre e lançou em 2008 o álbum 'HQ Xingu!'. Em 2012 lançou o livro que é tema deste artigo.

Segundo Levi-Strauss (1986: 49), "a etnografia é uma das raras vocações autênticas" e o homem pode descobri-la dentro de si próprio sem nunca tê-la aprendido. Em sua trajetória, Sérgio Macedo (2014) afirma: "o motor essencial da obra foi o contato direto com os povos indígenas que conheci." Sua vocação se constrói intuitivamente, mediante o olhar etnográfico-semiótico e a paixão pela arte. Ao acreditar, como Max Weber, que o ser humano é um animal entrelaçado à teia de significados tecida por ele mesmo, Clifford Geertz (2008:4) fundamenta seu conceito de cultura como semiótico e afirma que "as formas culturais podem ser tratadas como textos." Sérgio Macedo expressa na arte sequencial a experiência do contato cultural em 'textos visuais.'

 

2. Processo de criação dos Quadrinhos

Segundo o artista, décadas de trabalho se fizeram necessárias na elaboração deste livro. Utilizou vasta bibliografia, artigos da imprensa nacional e estrangeira, relatórios e publicações da Funai (Fundação Nacional do Índio), dissertações e teses de antropólogos, filmes, documentários e DVDs. Este livro é uma síntese que condensa um conhecimento intelectual e que se concretiza a partir do encontro com o contexto real indígena.

Passa a ser um "narrador" que conta "histórias de trechos da vida" (Eisner, 2005:40) desde a formação das primeiras sociedades indígenas no país, chegando ao período considerado "Descobrimento do Brasil" (introdução) e a seguir, as histórias em sequência: Yanomami; Xavante (1700-1993); Xingu (1960-1990); Kayapó; Suruí (1960-1988) e Panará (1968-1989). Seu livro (Figura 1) é uma graphic novel, onde os personagens são pessoas reais, o que requer um trabalho mais sofisticado em que ele, artista, é um ilustrador-narrador-roteirista.

 

 

Nos anos de 1980, Sérgio Macedo não possuía scanner e nem computador. Afirma que procurou realizar uma História em Quadrinhos 'documentária', e que privilegiou o realismo naturalista nos desenhos. Todos os Quadrinhos, (com exceção de três imagens realizadas em desenho digital), foram pintados com acrílico sobre papel, pincel e aerógrafo. Há riqueza e fidelidade nos detalhes, tanto nas paisagens, quanto na retratação dos índios, das pinturas corporais, adereços, arte plumária, como nas atividades cotidianas, rituais e místicas das tribos, circunstâncias conflitantes e difíceis sofridas por eles. Muitas imagens foram criadas a partir de fotografias publicadas pela imprensa e por fotografias enviadas a ele, quando residia no Taiti – local em que ampliou seu olhar multicultural, ao conviver durante vinte e seis anos com a cultura Ma'ohi.

Em 1987, deixa o Taiti, e juntamente com sua esposa taitiana, dirige-se ao norte do Mato Grosso, no Brasil, para viver alguns meses na aldeia Kayapó Metyktire. O contato com os lideres: Ropni (muito conhecido como cacique Raoni), Lobal, Kremoro e Krumare marcou definitivamente a sua vida e trajetória. Neste período de 'aprendizado' e influência desenvolveu um novo olhar, novo escutar e sentir – uma imersão visual, cromática, sonora, aromática, cotidiana, de partilhas de crenças, conceitos, num universo integrado à natureza.

Os quadrinhos deste livro apresentam transições predominantemente como 'ações distintas' ao buscar movimento dinâmico de avanço do roteiro. Em várias páginas percebe-se "momentos dentro de momentos centrais" (McCloud, 1993: 37) ou cenas maiores, com ritmos que demonstram maturidade na elaboração visual de cada página. A formatação e a composição dos quadrinhos são diversificadas. Há harmonia cromática, cuidado visual com o tratamento da cor, seja na obtenção de contrastes, como no equilíbrio e peso visual do layout das páginas. Os textos, segundo Sérgio Macedo, são inseridos com propósitos histórico, social e político, informativo, mas principalmente, retratam o ponto de vista dos índios (Figura 2).

 

 

É uma obra de não ficção. Busca estabelecer uma empatia, o 'contrato' entre narrador/público (Eisner, 2005:51-53). Há habilidade narrativa que combina história, ação, aventura e dinâmica entre textos do narrador e balões com falas dos personagens. A linguagem é de fácil acesso ao leitor. Algumas palavras típicas dos nativos são preservadas e contém a tradução para o português. Will Eisner, além de considerar as Histórias em Quadrinhos – arte – "por muito tempo advogou o potencial dos quadrinhos de não ficção" (McCloud, 1993:37-38).

 

3. Percurso do artista na construção das narrativas visuais

"Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias" (Geertz, 2008:16). Antes de chegar à aldeia, Sérgio Macedo relata ter passado semanas na sede da Funai, em Brasília, a fim de obter autorização oficial para entrar em terras indígenas. Manteve contatos inesquecíveis com os Xavante e depois com as etnias Kamayurá, Yawalapiti, Kayapó, Xavante, Kuikuro, Panará e outras.

às margens do rio Xingu, conheceu índios Tapirapé, Kayabi, Kayapó e Panará. Ficou dois meses na aldeia dos Kayapó Metuktire, onde viviam famílias de índios Tapayuna, alguns Panará, alguns Suyá, índios de outros grupos Kayapó e de outras etnias passavam como visitantes. Segundo o artista, foi uma ocasião fabulosa para conhecer a vida desses povos. Visitou igualmente a aldeia Panará, cujo primeiro contato com os brancos se dera em 1974.

Sérgio Macedo (2014) não promove um discurso unilateral: suas narrativas gráficas se constroem a partir dos relatos indígenas. Ele comenta ter agido de forma respeitosa, antecipadamente, à entrega dos originais à editora: "antes da publicação, mostrei as histórias e desenhos às lideranças de cada povo nele retratado, os índios gostaram e aprovaram." As páginas amplamente ilustradas representam a voz destes povos, suas mitologias, lendas passadas de geração a geração pela oralidade. Palavras de Mayalú Waurá Txucarramãe, ativista indígena e filha do cacique Megaron e sobrinha (neta, pelos conceitos indígenas) do grande cacique Raoni quando as lideranças receberam o livro publicado:

Oi Sergio recebemos sim, eu mostrei para meu avô Raoni e para um grupo de lideranças que estavam no Instituto Raoni e eles adoraram e ele pediu que eu perguntasse se tinha como o senhor enviar mais para dar deixar em cada aldeia e muita gente está querendo, até mesmo os não indígenas que vão ao Instituto estão querendo [...] as crianças aqui se encantaram, assim como os mais velhos também. Parabéns nós aqui adoramos (Txucarramãe, 2012).

Para Walter Benjamin, (1985:204) a narrativa é uma forma artesanal de comunicação. "Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso."

 

4. Um olhar antropológico-etnógrafico intuitivo?

Sob o ponto de vista acadêmico pressupõe-se que um etnógrafo possua um arcabouço teórico capaz de selecionar variáveis para construir seu objeto de estudo, que faça recortes para delimitá-lo, vá a 'campo', recolha anotações, diários, relatos, imagens, etc, para depois organizá-los e sistematizar a pesquisa, contextualizando-a. Observa-se que, muitas vezes, o resultado vai mais além que o 'trabalho de campo'. Não nos cabe neste breve estudo aprofundarmos questões sobre a antropologia, a antropologia interpretativa e os percursos teóricos da antropologia pós-moderna, nem tampouco discutir a evolução dos estudos etnográficos. Diante deste universo, pode-se dizer que Sérgio Macedo dedicou-se primeiramente ao conhecimento de seu objeto de estudo, mediante pesquisa bibliográfica, foi a 'trabalho de campo,' manteve convivências com etnias indígenas, recolheu relatos e imagens, a fim de realizar seu projeto, de forma intuitiva. Percorreu um caminho semelhante ao do investigador científico, porém constrói um ideário que culmina na realização de 'textos visuais.' Trata-se de um trabalho artístico, em que prevalece a imagem como linguagem. "O etnógrafo 'inscreve', o discurso social: ele o anota" (Geertz, 2008:14). Sérgio Macedo 'inscreve' por meio de desenhos – 'inscreve' através da arte.

 

Conclusão

Segundo Sérgio Macedo (2014), a criação dessa obra foi um 'ato de amor.' A arte é o seu vocabulário para expressar a sensibilidade com os problemas dos povos indígenas:

O conhecimento da beleza e riqueza da sua cultura e, infelizmente, das atrocidades cometidas contra esses povos, resultado da falta de consciência e da ganância do homem branco, responsável por um verdadeiro genocídio e pela extinção de muitas etnias, precisa ser divulgado (Macedo, 2014).

Ele elabora um manifesto visual, uma intervenção, uma denúncia de tudo aquilo que permeia a luta destes povos pela sobrevivência. Percebe-se uma militância estética e a busca em conscientizar o leitor para algo que deve ser preservado: o respeito pela diversidade, pelo espaço e pela tradição de cada cultura. Em etnografia, o dever da teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo – isto é, sobre o papel da cultura na vida humana" (Geertz, 2008:19).

 

Referências

Benjamin, Walter (1987) Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Eisner, Will (2005) Narrativas gráficas. São Paulo: Devir.         [ Links ]

Geertz, Clifford (2008) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. LCT.         [ Links ]

Levi-Strauss, Claude (1986) Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

McCloud, Scott (1993) Reinventando os quadrinhos. São Paulo: M. Books.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 27 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro de 2014.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: claudiamatosp@hotmail.com (Cláudia Matos Pereira)

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