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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Acreditar ou não na arte

To believe or not in art

 

Eduardo Figueiredo Vieira da Cunha*

 

*Brasil, artista visual e professor. Bacharelado em Artes Visuais (UFRGS, 1982), Master of Fine Arts (Brooklyn College, EUA, 1989) e Doutorado (Université de Paris-I Panthéon-Sorbonne, 2001).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos, 248 CEP 90020-180 – Centro – Porto Alegre, RS, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo analisa uma série específica da produção em desenho do artista Gil Vicente ( Brasil, 1958) intitulada "Inimigos Públicos". Trata-se de uma reflexão sobre o processo de recepção da obra, quando o repertório imagético envolve a crença na imagem e toca limites tênues entre arte, transgressão e crime, além de política, arte pública e fracasso.

Palavras chave: desenho / simulacro / fracasso, arte pública / política.

 

ABSTRACT

This paper surveys about the specific series of drawings by Gil Vicente (Brazil, 1958) named "Public Enemies". It is a reflection about the process of reception of his work when it involves a relation of trust in the image, and the limits between art, crime, transgression, political and public art.

Keywords: drawing / simulacrum / failure / political art / public art.

 

Introdução

Em que condições a imagem pode funcionar como um discurso fundamentalmente religioso entre aquele que produz a imagem e aquele que a vê? A escolha de temas políticos ou panfletários, e a procura por novos espaços de exposição, como as ruas de uma cidade, poderiam intensificar essa relação de crença na imagem? E poderia o artista antecipar-se ao que o observador deva compreender em seu trabalho, lançando dúvidas sobre a capacidade transformadora e política da arte? Fracassam os líderes mundiais, assim como fracassa o artista em diversas fases de seu trabalho, ou fracassa o crítico, na expectativa de antecipar-se ao observador e estabelecer o préjulgamento, assim como também fracassam os censores da obra? Este artigo tenta responder a estas perguntas analisando uma série específica do trabalho de Gil Vicente.

Nascido em Recife, no estado de Pernambuco, Brasil, Gil Vicente é desenhista e gravador. Em 2009, realizou uma intervenção pública com reproduções da série Inimigos Públicos em Campina Grande, no estado da Paraíba. E participou em seguida da Bienal de São Paulo de 2010 com os desenhos originais da mesma série, ocasião em que foi rotulada de "apologia ao crime" pela Ordem dos Advogados do Brasil. Nela, o próprio artista aparece em autorretratos com arma em punho, matando políticos e pessoas públicas como o ex-premier de Israel Ariel Sharon, os ex-presidentes brasileiros Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio da Silva, o Lula, e a rainha Elizabeth II, da Inglaterra, entre outros líderes mundiais. A série causou controvérsia e problemas com outros representantes da sociedade de São Paulo que também a consideraram apologia ao crime. Como são obras que tratam de questões políticas e transgressoras, se situam no limite da ilegalidade e nos levam a uma reflexão sobre a capacidade de separar as coisas entre a arte, a realidade a e ficção.

A metodologia empregada neste artigo utiliza-se da dialética para trabalhar com duas abordagens possíveis da questão: a primeira, em forma de parábola, busca em O Efeito Pigmailão, de Victor Stoichita (Stoichita, 2012) questões sobre a criação de simulacros por parte do artista, onde a procura pela mímese e a criação de um duplo ultrapassaria a percepção da realidade, provocando uma confusão entre o criador e o receptor da mensagem contida na obra ao tratar da questão do fracasso. E a segunda, utiliza Jacques Rancière e sua obra O Espectador Emancipado (Rancière,2012), para aproximar arte e política, no sentido de reconfiguração do mundo, da valorização da dimensão estética da política e de nossos fracassos, além da procura por novos espaços expositivos e de tratar da posição do observador.

 

1. O simulacro

A questão da autenticidade do acontecimento que inicia a história (o gerador das imagens trabalhadas pelo artista) é explorado por Gil Vicente de forma ambígua: um desejo oculto do artista, transformado em imagem, despertaria o mesmo ato de fé e de incitamento à atitude por parte do observador? A função eminentemente política da arte não seria aquela de subverter a ordem do que é real e o que é ficção? O fracasso que motiva o crime é o fracasso das figuras públicas ou é o fracasso do próprio artista?

E o artista teria o direito, com seu discurso e sua busca por espaços espositivos não tradicionais como as ruas, de direcionar e limitar a leitura de sua obra apagando os limites entre realidade e ficção, ou de profanar (Agambem, 2007) instituições? Os desenhos da série Inimigos, de Vicente, são elaboradamente realistas. Poderíamos começar estabelecendo aqui a fábula do artista como um Pigmalião, personagem do poeta romano Ovídio, que viveu no início da era cristã, e que escreveu sobre o escultor que se apaixona pela estátua que criou. Vicente, tal qual o personagem de Ovídio, transformaria o seu desejo, uma indignação com certos personagens da cena política que para ele fracassaram, criando simulacros extremamente realistas no ato de extermínio. E o artista, que torna-se o próprio autor do crime cujo motivo é o fracasso, não estaria tratando do fracasso de suas próprias expectativas, tanto na concepção e nos erros do processo de trabalho como na sua recepção?

Poderíamos justapor o discurso do artista, onde ele reforça sua posição política afirmando que a motivação de seu trabalho foi a eliminação dos desafetos em destaque por seus fracassos: "Nesse caso quis uma mensagem explícita. Tomei o cuidado de fazer o desenho de forma realista. Não queria estilizações". (Vicente, 2009) E continua dizendo que a série surgiu devido a decepções e indignação com a política mundial: "...tive uma decepção muito grande com Lula. Esse trabalho é fruto de minha indignação com a forma como esses caras conduzem o mundo"(Vicente, 2009). É interessante notar aqui a presença do elemento fracasso, tão comum ao campo da arte. O artista convive com o fracasso em diversas fases de seu trabalho: fracassos de perspectiva e de planejamento da obra, fracasso provindo do erro no processo. Pode-se dizer de modo geral que o fracasso vem de espectativas não atingidas, e o ato de falhar apresenta-se no discurso de Vicente de forma política como uma fábula crítica em relação a um sistema. Inserido na sociedade onde o modelo é o sucesso a todo o custo, o fracasso como crítica é incorporado ao processo do próprio artista. Tal qual Pigmalião, o artista fracassa na mímese perfeita porque o resultado é apenas um simulacro, um fantasma.

Ao utilizar-se de imagens miméticas, o objetivo do artista por certo não era o de apologia ao ato criminoso. Ele também não pretendia que o observador imitasse sua posição. A questão arte e crime perfeito é permanende na história da arte. Seu desejo, aquele que o movimentava por um ato de substituição, sublimava a violência do tiro com o gesto calculado do traço, do risco sobre o suporte do desenho. A atitude artística sempre envolve algum risco, até mesmo o do fracasso. O gesto de Vicente é ousado porque externa a vontade de eliminar a idolatria, tratando a personalidade política pelo viés iconoclasta, castigando-a pelo suposto fracasso. Utilizando-se de referências fotográficas, Vicente estaria, segundo

Marie-José Mondzain (Mondzain, 2000) alimentando-se do ícone como em um processo de transubstanciação, transformando-o em pura reflexão sobre seu próprio processo. Uma consagração não sacramental do sacrifício e do fracasso. Ao optar pelo mimetismo fotográfico no desenho, o artista estaria, ainda na visão da fábula, trabalhando seus próprios fantasmas (de fracasso). Se esta atitude for considerda transgressora ou perigosa, não é por culpa do artista, nem do público, mas de alguém que não tem conhecimento do processo de catarse que se envolve o artista. Toda a forma de arte poderia ser transgressora ou perigosa, no limite da capacidade de separação entre a fábula do artista e a realidade.

Apesar de realistas e miméticas, as imagens de Gil Vicente são extremamente teatrais. Há um exagero na encenação, que por si só as denunciariam como falsas, principalmente se não fossem desenhos e sim apenas montagens fotográficas. É o ponto que Michael Fried (Fried, 2008) trata quando afirma que toda a arte existe para e em função do observador. A representação, a absorção dos personagens, o realismo dos fatos, primeiro impeliriam o observador a ser absorvido pela obra de Vicente. Esta mesma imagem mostraria, em um segundo tempo, o próprio artista absorto no ato criminoso. Nova dialética se estabelece: se os gestos ou as imagens provocam uma absorção do espectador, o desenho, e o autorretrato do autor o remeteriam para o exterior, para fora do quadro. O ato de crer e não crer na imagem se sucederiam, como teatralidade e antiteatralidade (Figura 1, Figura 2).

 

 

 

 

Aprendemos no início a crer nas imagens, principalmente nas imagens fotográficas. Há essa relação de teísmo criada desde que a fotografia era considerada como um documento. Testemunho ocular da história, o fotojornalismo reforçou essa tese . Mais recentemente, e principalmente com o advento da fotografia digital, a crença nas imagens passou a ser abalada pela possibilidade de manipulação. Hoje, com o advento da imagem digital e do photoshop, nossa reação passou a ser a de uma desconfiança perante a imagem. Entretanto, a escolha pela linguagem do desenho extremanente realista, quase que fotográfico, talvez tenha ajudado a apagar essa tênue linha que separa a realidade da ficção, pelo menos para a Ordem dos Advogados do Brasil. Tomando o lugar do observador, os censores fracassaram como representantes da sociedade ao mostrar que não sabem separar arte e crime, e não possuem capacidade de abstração, pois não conseguem realizar a leitura de uma obra sem o distanciamento crítico necessário. Neste mesmo raciocínio, eles poderiam muito bem censurar Pigmalião, quem sabe por atentado au pudor ou atitude libidinosa com a estátua, não sabendo distinguir entre o duplo a obra que o escultor criou, e a mulher que o criador imaginava e desejava.

 

2. A questão política

De outro lado, as atitudes de repúdio ao poder implícitas nos trabalhos públicos de Vicente poderiam ser lidas como atitudes políticas no sentido de um desejo do artista de devolver à arte algum tipo de função social que foi perdida. Uma espécie de interpenetração entre formas de arte e formas de vida, e entre a estética e a política. O que poderia ser político na arte de Vicente? Na verdade, não há uma definição única. Poderia ser aquela que implica no desejo, por parte do artista, de expor uma injustiça ou de afirmar a necessidade de mudanças profundas na sociedade. Ou poderia ser aquela do fracasso: as expectativas não foram atingidas, assim como acontece no processo do artista. Falha-se, em diferentes fases do processo. Essa noção parte da suposição de que exista um único tipo de público, de observador, sobre o qual agiriam as intenções do artista. Pode-se falhar até mesmo nestas expectativas de recepção.

No mundo de hoje não é possível fazermos previsões sobre as consequências que vão ter um trabalho artístico, o que certamente aconteceu com Vicente quando concebeu sua série Inimigos Públicos. Isto porque o artista certamente sabe que a arte não é apenas um meio de transmitir noções sobre a vida, mas sim uma forma de vida ela mesma.

Me parece que o compromisso político de Vicente está baseado na investigação de um determinado aspecto da realidade em que ele está enquadrado, para transformá-lo na tentativa da devolvê-lo à realidade sensível. Assim, a arte não seria uma pedagogia ou explicação do mundo, mas uma transformação do mundo sensível. O tema fracasso pode ultrapassar o sentido de temática para transformar-se em uma estratégia incorporada ao seu próprio de trabalho.

 

Conclusão

Vicente não estaria interessado em "matar" os inimigos públicos para denunciar desigualdades, mas para trabalhar seus próprios fracassos, e tornar as pessoas sensíveis ao universo da arte, restituindo a força do pensamento crítico. Seu objetivo talvez seja o de romper os espaços tradicionais da obra de arte, e falar da cisão que existe entre a arte e a sociedade. Ao usar figuras reconhecíveis que, segundo o artista, fracassaram, ele estaria realizando um trabalho de "desarquirização"(Rancière, 2012) no sentido de Jaques Rancière, utilizando-se de figuras e espaços públicos não para antecipar-se ao que o observador deva ver ou compreender em seus desenhos, mas para lançar dúvidas sobre a capacidade da arte e do artista de trabalhar suas possíveis falhas. Referir-se ao fracasso é falar sobre o hiato que existe entre intenção e realização, entre concepção e recepção. Trata-se de promover a emancipação do observador. Podemos dizer que o observador é convidado a colaborar com sua liberdade e seus fracassos ao trabalho de Vicente, abrindo seu significado.

 

Referências

Fried, Michael (2008) Why photography matters as art as never before. New Haven, EUA: Yale University Press.         [ Links ]

Mondzain, Marie-José (2000) Image, Icone, Economie. Paris, France, Plon.         [ Links ]

Rancière, Jacques (2011 ) O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Vicente, Gil (2010) "Gil Vicente comemora repercussão gerada com a oposição da OAB. Entrevista à Maria Carolina Maia." Veja nº276, de 29/9/2010. São Paulo, Abril.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 17 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro de 2014.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ecunha@cpovo.net (Eduardo Vieira da Cunha)

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