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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

EDITORIAL

EDITORIAL

Arriscar: performance, intervenção, hibridação

At risk: performance, intervention, hybridism

 

João Paulo Queiroz*

 

*Par académico interno / diretor da Revista :Estúdio. Artista Visual e professor universitário.

AFILIAÇÃO: Portugal, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

A hibridação é um processo de mistura que justapõe diferenças e funde singularidades criando novas espécies. As suas instâncias podem ser mitológicas, religiosas, (Eliade, 1965), poéticas (Ovídeo), lendárias (Propp, 2003), oníricas, históricas, culturais (Hall, 1992; Bhabha, 1994), artísticas. E também se atualiza no que concerne à cultura pós moderna, cultura de massas e de supressão de privilégios, no contexto multicultural do Pós colonialismo (Bahbha, 1994) e da crítica do orientalismo (Said, 2001).

A Revista Estúdio adensa-se na pluralidade de contributos e referências (Portugal, Espanha, Brasil, Argentina, Peru, Colômbia, Uruguai, Venezuela) e com esta pluralidade entretecem-se testemunhos artísticos de interpelação, descoberta e, inevitavelmente, hibridação.

O artigo "Berna Reale: a importância do choque e do silêncio na performance," de Susana Rocha (Portugal), apresenta uma performer, Berna Reale (n. 1965, Brasil) que utiliza a intervenção urbana com uma forte intuição cenográfica radical: ossadas humanas, o corpo exposto na vulnerabilidade dos corvos, o corpo morto, o corpo açaimado mas poderoso: para além dos discursos de género há um posicionamento político de confronto teatral onde os adereços são tão reais quanto a cidade.

As cidades são o suporte para os grupos de arte de rua de Buenos Aires e San Pablo que Julio E. Pereyra & Valeria Lepra (Uruguai), apresentam no artigo "Prácticas artísticas colectivas: en[tre] el arte y la política." Os grupos F3F e GAC assumem a biopolítica (Foucault, 1994) como área crítica de intervenção, nomeadamente quanto ao segregacionismo. As mensagens são impressas em cartazes, financiados com os 2.400 euros da participação na Bienal de Veneza.

O texto "Acreditar ou não na arte," de Eduardo Vieira da Cunha (Rio Grande do Sul, Brasil), transporta a intervenção para a representação. Os desenhos polémicos de Gil Vicente em que o artista justapõe ações dos média com figuras dos média, cria inversões de sentido que mostram na sua superficialidade, a superficialidade dos sentimentos mediatizados. O artista transforma-se na sua peça, ou a peça ganha risco de vida, como Pigmaleão nas metamorfoses de Ovídeo.

Mariana Piñar & Fernanda García, em "Instantes, intuición e interpretación en la obra de Concha Romeu" (Espanha), apresentam a obra de Concha Romeu, peças que desafiam classificações, entre o objeto e o livro de artista, onde 50 mulheres, 100 mulheres, se aglomeram no anonimato, fazendo-se materiais.

O artigo "Universos mínimos: La poética de Liliana Porter puesta en escena" de María Silvina Valesini (Argentina), transporta-nos aos pequenos universos da artista argentina radicada nos EUA há 50 anos, Liliana Porter (n. 1941). Através de práticas combinatórias e deslocamentos de escala consegue apresentar mundos encantados que ocultam a violência através das escalas.

Teresa Matos Pereira, em "Kiluanji Kia Henda: Ficção, Ironia, Desconstrução" (Portugal), apresenta o trabalho do angolano Henda, que através de fotografias como Balas e satélites (Huambo), ou as séries fotográficas que condensam numa só imagem diversas camadas de sentido histórico e identitário, desvelando um certo tipo de orientalismo desajustado no mesmo sentido em que Edward Said (2001) o critica.

Também é um sentido de crítica orientalista que é visitada pelo artigo "Un lugar para las imágenes. El cuerpo como enunciación en la obra Selknam (yo / el otro) una fotoperformance de Juan Carlos Romero," de María Guillermina Valent (Argentina), onde se discutem as séries fotográficas de Juan Carlos Romero. As suas auto representações ficcionadas tomam a miscigenação, a multiculturalidade e a hibridação como tema de questionamento identitário, revisitando o povo Elknam, nómadas da Terra do Fogo.

Cláudia Matos Pereira (Rio de Janeiro, Brasil), no artigo "Povos Indígenas em Quadrinhos: o olhar etnográfico-semiótico do artista brasileiro Sérgio Macedo" toma o trabalho de Sérgio Macedo (n. 1951) que publica o primeiro livro de histórias em quadradinhos brasileiro, "o Karma de Gargot." Os seus trabalhos documentam os povos indígenas, ouvindo as suas histórias e apresentando-as com um desenho apurado usando, nos anos 80, meios como o aerógrafo, meios hoje tornados obsoletos pelas aplicações informáticas.

O texto "Semiosis antropófaga e hibridación cultural en la obra de Ana de Orbegoso," de Mihaela Radulescu de Barrio de Mendoza & Rosa Gonzales (Peru) debate também o olhar etnográfico e a hibridação etnocultural. Ana Obregoso revisita, através de fotomontagens, imagens religiosas de virgens da escola de Cuzco, Peru, (autores como Diego Quispe, Basilio Pumacallao, Diego Cusi, entre outros) tornadas, na sua aparência, nativas, introduzindo a questão do género e da ancoragem local à teologia da libertação, forma de discurso pós colonial.

Isabel de Albuquerque (Portugal), no artigo "O Corpo como suporte privilegiado de Ornamento" introduz formas mais radicais de joalharia, onde a marca na pele passa a ser significante: as escarificações, cicatrizes, piercings, queimaduras, passam a integrar a linguagem da joalharia contemporânea, na obra de Inês Nunes, Tiffany Parbs, Madeleine Furness, e Teresa Milheiro. O corpo é, mais que hibrido, suporte plástico significante.

O artigo "Acácia Maria Thiele: Territórios interditos no feminino" de Luís Herberto Nunes (Portugal) introduz as micronarrativas e autorrepresentações de Acácia Maria Thiele (n. 1964) que expõem de modo assertivo temas da condição humana, e do feminino enquanto discurso (Butler, 2006)

Marta Negre, no texto "Los territorios de la imagen" (Espanha) introduz o trabalho desenhado, fílmico e fotográfico de Patricia Dauder (n. 1973), que explora a não forma ou a não narração como recursos expressivos construindo um universo consistente e envolvente.

O texto "Impresiones de plata: Discurso e imagen en la obra del pionero de la fotografía Colombiana, Melitón Rodríguez," por Véronique Mondéjar (Colômbia), apresenta a obra do fotógrafo Melitón Rodríguez (1875-1942) com influências eruditas dentro da tradição picturalista, explorando luzes, texturas e suportes, assim como cenografias cuidadas, com o recurso a duplas exposições de efeito mais ou menos didático, moralista e edificante.

Paulo Gomes, em "Os 15 Pincéis de Ema M" (Rio Grande do Sul, Brasil) debate a obra da pintora Ema M / Margarida Prieto.. Esta reflexão de um artista brasileiro sobre uma autora portuguesa é um dos resultados visíveis dos Congressos CSO e das revistas entretanto publicadas, como a Estúdio. O trabalho de Ema M revisita o tenebrismo dos assuntos barrocos, quer espanhóis, quer franceses. Os objetos são alegorias ao seu potencial expressivo e ao seu conhecimento, e aguardam, depois de terem sido estudados, utilizados, ou aguardam também uma possível utilização. Entretanto, os objetos esperam o pensamento e a ação, com os homens, na sua vaidade. A arte é uma alegoria da superação da morte, que vence os seus materiais.

O artigo "Ressonâncias: a pintura interventiva de Rui Macedo," por Zalinda Cartaxo (Rio de Janeiro, Brasil), apresenta, também pela mão de uma autora brasileira, um autor português, Rui Macedo, com obra prolífica e provocadora, plena de metalinguagens sobre a arte e o discurso legitimador da arte, instalando e disfarçando as suas obras nos museus. O discurso estatizante do museu napoleónico é submerso por mecanismos pictóricos de trompe l'oeil, num labirinto de metamorfoses em que a obra se transforma em obra, outra instância de Pigmalião, outra incursão de Ovídeo.

Carlos Rojas & Paco Lara-Barranco, no artigo "Paco Pomet: la 'restauración' de la mirada en la pintura" (Espanha), debate a obra do granadino Paco Pomet (n. 1970) que importa para a sensualidade pictórica os universos monocromos da televisão e dos seus absurdos figurativos e narrativos, ora documentais, ora ficcionais.

Neide Marcondes & Nara Martins, no texto "Da América Latina para o mundo global contemporâneo: as obras intrigantes de Claudia Casarino" (São Paulo, Brasil), apresentam as foto performances e instalações sobre o discurso da moda e do género de Claudia Casarino: o corpo feminino veste-se de noiva e desempenha trabalhos domésticos com elegância. Os seus vestidos sem corpos apresentam-se como utilidades potenciais e ao mesmo tempo vestígios de atividades, revisitando o tema dos problemas de género (Butler, 2006).

Na secção dos contributos por convite da direção editorial da revista Estúdio, são apresentados 11 artigos originais.

O artigo "Apontamentos sobre Paulo Nazareth como um 'locatário da cultura'," por Maria do Carmo Veneroso (Minas Gerais, Brasil), apresenta o trabalho de um artista viajante, Nazareth (n. 1977), que coloca em prática uma estética relacional (Bourriaud, 2009), nos seus percursos através de continentes, como nos "cadernos de África" em que um percurso entre a África do Sul e a cidade de Lyon na França, é empreendido. A autora estabelece ligações entre este percurso, onde os rótulos das garrafas de água consumida no percurso são coligidos, com as apropriações ready made de Lotus Lobo ou Jac Leirner.

Ronaldo Oliveira (Paraná, Brasil), em "O Sentido Dialógico e Transformador da Obra de Mônica Nador" estabelece uma ligação entre o legado de Paulo Freire (1987) e a obra interventiva junto dos bairros informais de Mônica Nador (n. 1958) naquilo que é aqui designado por "estética conectiva" definida como aquela que "busca estabelecer relações com o outro de modo a torná-lo visível para si e para muitos outros." O tecido social é o suporte, a relação, e o sentido.

O texto "Custodia del vacío: la negación de la imagen en la obra de Irma Álvarez Laviada," por Juan Carlos Meana (Espanha), ausculta, sob o ângulo de uma "estética da negação," a obra de Irma Álvarez (n. 1978). Questionando ora a vertente formalista, ora a vertente processual, o autor incorpora os termos lacanianos de real, objeto, vazio, prazer, desejo. O olhar será uma variante corporal do objeto, e a arte um discurso que reprime, ou substitui a fractura entre os olhares – o do sujeito, e o espelho que a obra acaba por constituir.

Marilice Corona (Rio Grande do Sul, Brasil), em "Adriana Maciel: arquiteturas da pintura." Toma como assunto as representações de Adriana Maciel (n. 1964) e especificamente os vazios arquitetónicos, percorrendo a estética do espaço enquanto suporte retórico ou mnemónico, ou enquanto ilusão pós renascentista.

O artigo "A Coisa em Si do Viver a Arte de Oriana Duarte," por Orlando Maneschy (Amazónia, Brasil), revisitamos as performances de Oriana Duarte executadas em lugares de grande circulação e significado comunitário, como A sopa de pedras, ou A coisa em si, no Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, Pará, para depois serem apropriadas e deslocadas através do seu registo, para dispositivos expositivos.

Joaquín Escuder (Espanha), em "La epidermis de lo intangible: los registros de grafía lumínica de la obra de Inma Femenía," debruça-se sobre as instalações meta-linguísticas de Inma Femenía: a pele, a marca, o brilho, o ecrã, e o aprisionamento da imagem são debatidos em torno do desafio da materialidade da luz.

O texto "Tipo.PT e Portuguese Small Press Yearbook," de Catarina Cardoso & Isabel Baraona (Portugal), apresenta um projeto de plataforma em torno da temática do livro de artista, tema que foi já tomado como objeto em um dos números anteriores da Revista Estúdio (nº6, de dezembro de 2012). O projeto articula um anuário de auto-edição e livro de artista, e um arquivo online, que conta já com c. de 280 fichas técnicas disponíveis correspondentes a objetos situáveis neste campo.

O artigo "As xilogravuras de Amilton Damas e seu processo de formação," de Ronaldo Oliveira (Paraná, Brasil), parte da metodologia desenvolvida no Brasil por Cecília Salles, a crítica genética (uma aplicação da semiótica aqui dotada de uma dimensão temporal), para debater a obra em xilogravura polícroma de Amilton Damas (n. 1979). As suas matrizes precárias, reutilizadas,

Agora no campo da litografia, Maristela Salvatori (Rio Grande do Sul, Brasil), no texto "Obra gráfica de Paulo Chimendes: produção e inserção de 1971 a 1984" toma a obra de Chimendes (n. 1953) como instância para o estudo influência maior de Iberê Camargo junto dos grupos artísticos do Sul do Brasil.

O artigo "Un paseo en la modernidad Suramericana: Relaciones y situaciones en el trabajo de Jaime Gili," por Josep Montoya (Espanha), estabelece ligações entre as longitudes latinoamericanas, tomando as abstrações neomodernas inseridas nos contextos urbanos informais de Caracas, do artista venezuelano Jaime Gili (n. 1972).

José Cirillo (Espírito Santo, Brasil), no texto "Chumbo em Anos de Chumbo: o lirismo combate a ditadura" aborda a influência que os anos mais duros de ditadura militar exerceram na obra de Raphael Samú (n. 1929), especificamente analisando sob o prisma da crítica genética um dos seus painéis de cerâmica, aquele que marca o campus da UFES, Universidade Federal de Espírito Santo.

A Revista Estúdio começa a apresentar, ela mesma, alguns marcantes sinais de hibridação, no melhor dos seus sentidos: há aqui artistas e autores que estabeleceram, ao longo dos últimos cinco anos de publicação ininterrupta, teias de conhecimentos e cumplicidades com milhares de quilómetros de distância. São relações novas e inesperadas: brasileiros debruçam-se sobre jovens criadores portugueses, espanhóis debruçam-se sobre artistas venezuelanos, entre outras novas afinidades. É este um dos aspetos fundadores do projeto Estúdio. Nascidas desta aventura artística, a Revista Estúdio é uma nave que transporta ideias, testemunhos, e perspetivas, trilhando novos horizontes.

 

Referências

Bhabha, Homi K. (1994) The Location of Culture. London: Routledge.         [ Links ]

Bourriaud, Nicolas (2009) Estética Relacional. São Paulo: Ed. Martins Fontes.         [ Links ]

Butler, judith (2006) Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge. ISBN 978-0415389556        [ Links ]

Eliade, Mircea (1965). Rites and Symbols of Initiation: the mysteries of birth and rebirth. Harper & Row.         [ Links ]

Foucault, Michel (1994) História da sexualidade I: A vontade de saber. Relógio d'Água. ISBN 9789727082407        [ Links ]

Freire, Paulo (1987) Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, ISBN: 85-219-0005-8        [ Links ]

Hall, Stuart (1992) 'New Ethnicities' in James Donald, James, & Ali Rattansi (eds.) Race, Culture and Difference (London: Sage) pp. 252-259.         [ Links ]

Ovidio Publio (2002) Metamorfosis. Traducción de Ana Pérez Vega . Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes [Consult. 2014-03-18] Disponível em http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12257292019032617210213/index.htm        [ Links ]

Propp, Vladimir (2003) Morfologia do conto. Lisboa: Vega.         [ Links ]

Said, Edward (2001) Orientalism. Western Conceptions of the Orient. London: Penguin Books.ISBN 9780143027980.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: joao.queiroz@fba.ul.pt (João Paulo Queiroz)

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