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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa Dec. 2013

 

DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS

DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES

Petrit Halilaj, Poisoned by men in need of some love: Uma exposição de histórias que contam a história de um País

Petrit Halilaj, Poisoned by men in need of some love: An exhibition of stories telling the History of a country

 

Luísa Santos*

 

*Portugal, designer de comunicação e curadora. Licenciada em Design de Comunicação pela Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes e Mestre em Curating Contemporary Art pelo Royal College of Art, Londres. Frequenta o Doutoramento na European university Viadrina.

AFILIAÇÃO: Frequenta doutoramento na European university Viadrina, Faculty of Social and Cultural Sciences & Humboldt-Viadrina School of Governance , CCCPM (Cross-Cultural Complex Project Management. Main building, HG 057, Grosse Scharrnstrasse 59, 15230 Frankfurt (Oder), Alemanha.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Como é que uma exposição ou um trabalho artístico pode ser social e político? Nos anos 70, Joseph Beuys introduziu o conceito de escultura social que proclamava que os espectadores se tornariam os catalisadores para a transformação da sociedade. Este artigo pretende descobrir as preocupações artísticas em relação à sociedade através do trabalho de Petrit Halilaj na sua mais recente exposição.

Palavras-chave: Petrit Halilaj, crítica social, política, arte relacional, narrativa.

 

ABSTRACT

How can an exhibition or an artwork be social and political? In the 1970s, Joseph Beuys coined the term social sculpture, which proclaimed that spectators would become the catalists for social transformation. This paper intends to discover the artistic preocupations towards society through the work of Petrit Halilaj in his most recent exhibition.

Keywords: Petrit Halilaj, social critique, politics, relational art, narrative.

 

Introdução

Petrit Halilaj (n. 1986, Kostërrc, Kosovo) segue uma tradição de arte contemporânea que demonstra preocupações sociais e políticas que tem raízes históricas como a missão utópica de Joseph Beuys de "construir um organismo social enquanto trabalho artístico" e de transformar arte no "único poder evolucionário e revolucionário" (cf. citado em Bishop, 2006: 125). Esta missão de Beuys tem um contexto histórico, enraizado na cultura e ambiente social do Pós-Guerra da Segunda Guerra Mundial na Alemanha. O contexto de Halilaj é a queda do Comunismo e a dissolução do estado Socialista depois de 1989 na ex-Jugoslávia, caracterizados por conflitos étnicos, tensões culturais, e uma guerra civil que levou um país e um povo fragilizados, bem como as suas tradições, instituições e museus a um caos trágico.

Este artigo começa por contextualizar historicamente as circunstâncias sociais e políticas do trabalho de Petrit Halilaj como forma de localizar as suas ideias e respostas em relação à sociedade que o rodeia. Estas ideias são o tema do artigo, que pretende, no seu desenvolvimento, começar por observar o contexto histórico das preocupações e criticas sociais na arte contemporânea em geral. De seguida, pretende-se olhar para estas inquietações, de um modo mais concreto, através do trabalho de Halilaj, no exemplo especifico da sua mais recente exposição, no Museu WIELS, em Bruxelas, de 7 de Setembro de 2013 a 5 de Janeiro de 2014. Ao longo do artigo, em termos de método científico, percebe-se o uso do método narrativo (Boje, 2001), escolhido pelas características do trabalho do artista e para permitir uma leitura subjectiva e aberta, em vez de uma leitura dogmática. No entanto, para os objectivos deste texto, não há um capítulo dedicado à metodologia. O artigo conclui com uma breve reflexão sobre o possível papel social da arte contemporânea.

 

1. Contexto histórico no Kosovo: queda do Comunismo, dissolução do socialismo, depois de 1989

Em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial, a República Socialista Federativa da Jugoslávia foi formada enquanto Estado socialista dirigido por Josip Broz Tito. Tito diminuiu a influência dos dois maiores grupos étnicos da época, os sérvios e os croatas, para proporcionar uma maior representatividade para todos os outros, reforçando a diversidade étnica nos Balcãs. Tito desobedeceu a Stalin, escolhendo a sua própria visão de socialismo, independente dos parâmetros impostos pelos soviéticos no leste europeu, através das democracias-populares. Tito era reconhecido e respeitado pelo povo pela enorme valorização das diversidades étnicas que incluíam diferenças religiosas e idiomáticas (dois idiomas com alfabetos diferentes). Ao ignorar e desafiar as ordens de Hitler e, mais tarde, de Stalin, conseguiu manter a Jugoslávia em paz durante a Guerra Fria.

Depois da morte de Tito, em 1980, uma crise constitucional instaurou o nacionalismo em todas as repúblicas e províncias. A maioria albanesa no Kosovo exigiu o estatuto de república enquanto que a Sérvia começou a exercer controlo sobre suas províncias autónomas e exigiu que todos os governos fossem todos de um único partido político. Com a morte de Tito, morreu também a defesa pela diversidade étnica nos Balcãs.

Em Janeiro de 1990, foi convocado o 14º Congresso Extraordinário da Liga dos Comunistas da Jugoslávia, composto, em grande parte, pelas delegações eslovenas e sérvias. A delegação sérvia, liderada por Milošević, insistiu em privilegiar a população mais numerosa, os sérvios. Os eslovenos, por seu lado, com o apoio dos croatas, propuseram uma reforma da Jugoslávia que daria mais poder às repúblicas, numa continuação do enfoque dado por Tito à diversidade cultural, mas foram derrotados na votação. Como resultado, as delegações eslovena e croata abandonaram o Congresso, e o Partido Comunista da Jugoslávia foi dissolvido.

Cerca de um ano e meio mais tarde, no dia 25 de Junho 1991, a Eslovénia e a Croácia declararam independência da Jugoslávia. Na Eslovénia, a Defesa Territorial Eslovena, uma organização paramilitar estabelecida na constituição de 1974, delimitou as fronteiras Jugoslavas com a Áustria e a Itália. Paralelamente, Milošević, presidente da Sérvia e Tudjman, presidente da Croácia, assinaram o acordo de Karađorđevo que veio dividir a Bósnia (em emergente independência) entre sérvios e croatas. No mesmo ano, rebentou a Guerra de Independência da Croácia. Os sérvios étnicos criaram seu próprio estado, a República Sérvia da Krajina, em regiões maioritariamente habitadas por sérvios. A Croácia, negou-se a reconhecer tais entidades, e a guerra foi declarada entre a recém formada República da Croácia e os dissidentes servo-croatas.

No Kosovo, ao longo da década de 1990, a liderança da população albanesa adoptou técnicas de resistência sem recurso a violência. Em 1996, os albaneses radicais formaram o Exército de Libertação do Kosovo, que tomou medidas com uso de força e armas na província meridional da Sérvia. A Jugoslávia respondeu com uso indiscriminado de força contra populações civis, e originou a existência de muitos refugiados albaneses étnicos. Depois do fracasso da Conferência de Rambouillet no início de 1999, que pretendia estabelecer a paz entre os representantes da Jugoslávia, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) começou a bombardear a Sérvia e o Montenegro por cerca de três meses, até que o governo de Milošević retirou as suas forças do Kosovo. Desde Junho de 1999, a província tem sido governada por forças de paz da OTAN e, até 2003, também por forças militares da Rússia.

Depois de uma série de conflitos que se seguiram à Guerra de Independência Croata (1991-1995), à Guerra da Bósnia (1992-1995) e à Guerra de Kosovo (1998-1999), formaram-se sete países a partir da antiga Jugoslávia. O Kosovo é administrado pelas Nações Unidas, apesar de ter declarado unilateralmente a sua independência em 2008. Estes conflitos de quase três décadas deixaram mais de 30.000 mortos e 10.000 feridos e marcaram o fim da Jugoslávia e das suas características culturais diversas, defendidas por Tito até à sua morte, em 1980.

 

2. A Arte Contemporânea e as suas preocupações sociais, uma contextualização histórica

A produção de arte é considerada um comportamento humano universal, inata à comunicação pessoal e interpessoal (Malchiodi, 2007). Em décadas recentes, os artistas têm vindo a alargar as fronteiras da arte, em tentativas de tocar a vida em diálogos entre o conforto do quotidiano e a estranheza do desconhecido e entre a observação analítica e o observação e acção críticas. O pluralismo de representações da arte e as suas interpretações neste processo de alargar fronteiras, tem como ponto comum a observação critica e a tentativa de intervenção na sociedade e na sua cultura.

No Manifesto para uma Revolução Independente da Arte, assinado por André Breton e Diego Rivera (1938) (acredita-se que Trotsky e André Breton escreveram o Manifesto apesar de ter sido assinado por Rivera e Breton), sob os efeitos sociais do fascismo Alemão e do estalinismo Russo, defendiam que a arte só poderia ser revolucionária e ter um efeito na sociedade sendo independente de quaisquer construções sociais:

A verdadeira arte, que não se satisfaz em fazer variações de modelos existentes mas que insiste em expressar as necessidades interiores do homem e da humanidade no seu tempo – a arte verdadeira não pode não ser revolucionária, não aspirar a uma reconstrução radical da sociedade (Breton e Rivera, 1938).

O conceito de Breton e Rivera, quanto à independência da arte, afirmava então que a arte se for verdadeira, teria que ter um papel na cultura e na sociedade. O Manifesto opunha-se ao reacionário:

A arte revolucionária independente tem que juntar as suas forças para a luta contra a perseguição reacionária. Tem que proclamar alto pelo seu direito de existir. Uma união de forças deste tipo é o objectivo da International Federation of Independent Revolutionary Art (Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente) que acreditamos ser agora necessária à forma (Breton e Rivera, 1938).

O Manifesto teve seguidores como Herbert Marcuse que, nas suas cartas para os Surrealistas de Chicago (Marcuse, 1971), citou esta parte do Manifesto (Marcuse, 1971) para clarificar a sua posição de que a arte não é revolucionária por fazer pedidos à classe trabalhadora e por juntar as massas para se manifestarem nas ruas. Para ele, numa sociedade capitalista, a classe trabalhadora seria sempre manipulada e, como tal, a revolução seria um trabalho da arte que poderia subverter a realidade instrumentalizada e dar poder à imaginação.

Nos anos 70, a relação da arte com a sociedade surgiu quase sempre conotada com o termo Escultura Social, um conceito inventado pelo artista alemão Joseph Beuys (1921 – 1986) com uma série de seminários públicos no inicio dos anos 70, a que chamou de "Energy Plan for the Western Man". O termo escultura social era dirigido a um tipo de arte que acontecia no domínio social e, para ser completo, precisava de participação de uma audiência (Kuoni, 1990). Beuys acreditava que os espectadores tornavam-se participantes e, assim, catalisadores para uma escultura social que transformaria a sociedade pela libertação da criatividade popular.

Nos anos 90, as referências ao papel da arte na sociedade surgiram quase sempre ligadas ao termo prática social. Este termo aparece repetido à exaustão em textos de artistas e críticos de arte contemporâneos nas suas reflexões sobre arte que pede participação do público. Acção, arte enquanto espaço público e arte enquanto interacção e participação tornaram-se ideias associadas ao termo.

No livro Estética Relacional (1998), Bourriaud observou a "arte enquanto lacuna social" (cf. citado Bishop, 2006: 160). Composto por uma colecção de ensaios, o livro de Bourriaud elevou uma então nova forma de produção artística, colocando o foco em trabalhos artísticos que tomavam como seu "horizonte teórico o mundo das interacções humanas e o seu contexto social em vez de uma afirmação de um espaço privado e simbólico" (Bourriaud, 1998: 14). Nesta colecção de ensaios, Bourriaud apresentou uma sustentação teórica para práticas de arte de artistas como Rirkrit Tiravanija, Philippe Parreno, e Vanessa Beecroft que mostravam preocupações com o dia-a-dia e com comportamento humano e produziam espaços de convívio que encorajavam e forçavam relações inter-humanas e de comunicação (Bourriaud, 1998). Bourriaud defendeu que a arte relacional era um reinvestimento na prática artística enquanto meio de aprender a viver no mundo de uma melhor forma. Para Bourriaud, a arte relacional seria uma iniciativa para lutar contra os problemas da alienação e da normalização dos mundos moderno e contemporâneos. Segundo o autor, esta luta poderia ser facilitada com micro-utopias temporárias que promoveriam novos modelos de participação democrática (Bourriaud, 1998).

Muitas das exposições, dos textos e dos programas académicos feitos sob as ideias de prática social e estética relacional têm tentado encontrar raízes históricas paralelas, e muitos escolheram colocar a prática social ao lado da arte comunitária e de um novo género de arte pública. Experiências em alternativas – desde jardins comunitários iniciados por Museus (como o Tate Modern Community Garden, Londres, 2001) a refeições comunitárias em espaço público (como o projecto "Há Mesa", de Luísa Alpalhão, 2012) e publicidade gratuita para pequeno comércio (como o projecto "Shop Local", de Bob and Roberta Smith, Londres, 2006) – tornaram-se uma forma e prática comum nas artes.

Num texto para Living as Form (2011), catálogo da exposição com o mesmo nome, a curadora Maria Lind descreveu prática social como

ao contrário dos seus predecessores de avant-garde como o Construtivismo Russo, o Futurismo, o Situacionismo, a Tropicalia, o Fluxus e o Dadaísmo, a arte com preocupações sociais não é um movimento artístico. Ao contrário, estas práticas culturais indiciam uma nova ordem social–modos de vida que enfatizam a participação, desafiam o poder e habitam entre disciplinas diversas como o planeamento urbano, o trabalho comunitário, o teatro e as artes visuais (Lind, 2011: 19).

Lind defende que os "artistas há muito que desejam que a arte entre na vida" (Lind, 2011: 21) enfatizando corelações entre arte, cultura, quotidiano e sociedade. No mesmo texto, Lind fala de uma arte com preocupações políticas. Há uma enorme variedade de projectos artísticos a mostrar um interesse sustentado em impacto, em termos sociais e políticos. Este interesse é demonstrado de maneiras diversas, desde passar uma mensagem de um modo analítico ou documental até pedir participação, que em alguns casos, significa tomar acções políticas (Lind, 2011).

Enquanto a esfera social continua a ser um tema recorrente na prática artística, a história da arte, os programas académicos, e os historiadores e críticos de arte, vêm urgência em compreender e localizar a fronteira da integração da arte na sua relação com o social (Larsen, 2011).

 

3. Petrit halilaj, "Poisoned by men in need of some love", ou como uma exposição de histórias conta a história social e política de um País

Petrit Halilaj cresceu nos momentos que seguiram a queda do Muro de Berlim, em 1989, e marcaram o que viria a ser conhecida como ex-Jugoslávia, pautados por conflitos étnicos, guerra, exílio forçado, corrupção e perda. Durante o conflito no Kosovo, viveu com a família num campo de refugiados. O corpo de trabalho de Halilaj reflecte uma visão critica perante o seu contexto histórico e social.

Com uso recorrente a materiais como terra, borracha, madeira, animais e desenhos delicados, evoca um mundo pessoal ao mesmo tempo que revela as realidades de um mundo maior correspondente a uma esfera sociopolítica. A visão de Halilaj de casa e identidade nacional não é documental nem romântica mas também não é assumida e cruamente crítica. Habita subtilmente num território entre memória e presente, real e ficcionado, pessoal e experiência partilhada.

Na sua primeira exposição na Bélgica, e maior exposição individual até à data, sob o título "Poisoned by men in need of some love", a decorrer ao mesmo tempo que a sua representação no Pavilhão do Kosovo na Bienal de Veneza, Halilaj mostra a sua investigação contínua no Museu de História Natural na capital do Kosovo, Pristina, um museu notável e amado antes dos nacionalismos desintegrarem o que foi uma vez chamado de Jugoslávia. No WIELS, em Bruxelas, Halilaj apresenta uma grande e nova instalação composta por uma série de animais esculpidos a partir de animais empalhados em degradação profunda doados pelo Museu de História Natural da Pristina, um filme e um conjunto de documentos e fotografias. Há vários anos que Halilaj tem procurado perceber o destino dos animais empalhados que costumavam estar expostos no Museu.

Vários animais de diversas espécies entraram para a colecção do Museu de História Natural entre 1951 e 1971. O conteúdo da colecção, apesar de não corresponder na totalidade ao período de governo de quase 30 anos (entre 1953 e 1980) de Tito, demonstra muito dos seus interesses como a preocupação em mostrar a diversidade étnica do povo. Nesses anos, a instituição foi crescendo como um lugar apreciado pela população, com mais de 1 800 animais empalhados, incluindo 850 espécies de insectos, 27 espécies de peixes, 11 anfíbios, 20 répteis, 36 mamíferos, 577 animais com asas, e 49 esqueletos de outras espécies. A colecção incluía algumas espécies raras extraordinárias e uma mostra rica em vida animal apresentada em dioramas feitos manualmente ou em vitrines espalhadas ao longo do museu.

Com a queda do Comunismo e a dissolução do Socialismo depois de 1989, vieram o conflito étnico, as tensões culturais, e uma guerra civil que deixou o país, o seu povo e as suas instituições destruídos e imersos em caos. Quando a guerra acabou, surgiram novas prioridades para a nação. Em 2001, um decreto oficial ordenou que toda a colecção de animais do Museu fosse removida e armazenada de um modo arbitrário, em caixotes, sem quaisquer cuidados, em caves cheias de humidade, enquanto o Museu que os tinha albergado durante anos se tornava cenário para uma exposição de herança de tradição popular. O gesto foi demonstrativo de um esforço de mostrar um sentido claro de uma identidade nacional do Kosovo, de distingui-la dos seus vizinhos etnicamente diversos.

Antes de serem colocados em caves, os animais foram fotografados em cerca de oitenta imagens que documentam o último momento em que estavam intactos. Sujeitos a humidade e temperaturas não controladas, os animais da colecção ficaram destruídos.

Mais de uma década depois do final da guerra, o Kosovo (produto dos nacionalismos fragmentados da Jugoslávia) ainda luta por apresentar-se como uma entidade e identidade e por fazer paz com a sua história. Se o inicio da história do museu reflectia a nação próspera do tempo em que foi construído, a sua presente história reflecte as consequências da guerra no país. Não foi por acaso que Halilaj escolheu este museu enquanto metáfora da identidade e das possibilidades de futuro do seu país.

Quando entramos na sala de exposições do WIELS, somos cumprimentados por um grupo de quatro mochos, castanhos, aparentemente feitos de terra, que nos observam de uma espécie de escadaria metálica na parede frontal (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4). Ao nosso lado esquerdo, é difícil não notar a presença de um pequeno canário amarelo que se destaca por ser dos poucos elementos de cor que encontramos no espaço. Ao longo do espaço começamos por encontrar várias espécies de animais livres em posições observantes e dialogantes, depois vemos também vitrines vazias mas com vestígios de presença de animais que já lá estiveram encaixotados, pelas penas e pelo colados à madeira. Tanto os animais (ou os que restava deles antes de serem reinterpretados por Halilaj) vieram do mesmo Museu de História Natural da Pristina.

 

 

 

 

 

 

 

 

Uns animais parecem observar-nos com a devida distância, a partir do tecto, outros parecem estar à conversa, um pato com o pescoço encostado a uma vitrine fechada parece tentar escutar o que se passará lá dentro. Um urso está deitado dentro de uma arca, como que a dormir.

As histórias possíveis multiplicam-se ao longo do espaço em que ficamos entre a surpresa e estranheza ao encontrar animais castanhos, feitos de terra e de dejectos, que, só depois de uma leitura atenta e de ver o filme do segundo piso, confirmamos serem os animais empalhados do Museu de História Natural. A escolha da terra para cobrir e refazer os animais não terá sido arbitrária nem inocente, remete para a guerra territorial que deixou o museu mas também o seu país e o seu povo em desgraça. Alguns detalhes no espaço não são visíveis num primeiro olhar, como os documentos museológicos de classificação em dois idiomas (Albanês e Sérvio) numa parede que parecem estar em espelho com os documentos da outra parede, nas mesmas cores de papel e tipo de letra. No entanto, numa das paredes só encontramos um dos idiomas, o Albanês, que passou a ser a única língua oficial depois da guerra, silenciando o Sérvio.

No final da sala, encontramos umas escadas estreitas de metal, apresentadas à entrada por um veado e habitadas na parte de cima por dois pássaros, que conduzem a um piso superior onde está o vídeo produzido por Halilaj como documento da abertura das caves. Depois de ver os animais na primeira sala, dispostos com base nas fotografias tiradas ao último momento antes da colecção ser escondida em caves, a sensação é uma mistura de surpresa com absurdo e afecto. Perante o vídeo, com três projecções em três paredes da pequena sala do piso superior, a sensação é diferente. Reconhecemos os animais da primeira sala, que poderiam ser apenas representações mas afinal são os animais de uma colecção que foi negligenciada e a sensação é uma mistura de tristeza, empatia e revolta.

Halilaj filmou todo o processo de abertura das caves, fechadas por mais de dez anos e de primeiro encontro dos técnicos e do primeiro diretor, hoje resignado a funções meramente administrativas, com a colecção arruinada. A tentativa de Halilaj de gravar e prestar homenagem à velha colecção aponta para as consequências das prioridades da nova nação de mostrar uma cultura à custa do silêncio de outra.

Ficamos com uma sensação de dor e de empatia por aquelas pessoas que vêm, como Halilaj, pela primeira vez, uma colecção em ruína. Naquele momento, a história da colecção e do povo são uma e a metáfora de Halilaj torna-se clara. O povo, tal como a colecção, foi negligenciado e silenciado, deixou de poder manifestar as suas diferenças em particularidades, à primeira vista simples, como a possibilidade de falar e escrever em dois idiomas.

 

Conclusão: o possível papel social da ar te, uma breve reflexão

As perspectivas na história da arte em relação com o seu papel social formam uma panóplia diversa. Para nomear algumas, enquanto a UNESCO afirma que o que faz a arte contemporânea tornou-se dependente das ideologias e dos conflitos políticos (UNESCO, 1976), para Breton e Rivera a arte só poderia ser revolucionária e ter um efeito na sociedade sendo independente de quaisquer construções sociais (Breton e Rivera, 1938). A visão utópica de Beuys, nos anos 70, clamava por uma arte que, para ser completa, precisava de participação de uma audiência (Kuoni, 1990). Já para Bourdieu (1984), a produção de arte poderia ser observada como meio para exclusão. Uma visão posterior mostrava uma perspectiva diferente, e colocava a arte enquanto lugar de produção de encontros e relações sociais (Bourriaud, 1998).

Na senda para tentar perceber se a arte pode ter um papel de mudança social, é possível encontrar muitos textos críticos que defendem que a arte pode ter um papel na sociedade. Algumas referências, tanto de textos como de trabalhos artísticos, avançam que a arte não só pode como deve ter um papel social. Apesar de haver uma grande variedade de textos e trabalhos artísticos que defendem o papel activo da arte na sociedade, este papel não é sempre visto à mesma luz e usado da mesma forma. Enquanto alguns artistas preferem pedir a participação activa, que muitas vezes é traduzida em acção política, outros artistas, como Petrit Halilaj, mostram-nos uma alternativa ao pedido de participação activa como o conhecemos. Sem pedir, directamente, acção, deixa-nos a reflectir, com um incómodo latente perante uma realidade social que demonstra problemas sérios.

As consequências de observar, de conhecer, de reflectir sobre um conhecimento visto à luz de uma observação que conta histórias reais e, no caso de Halilaj, a História de um povo, mantêm-se em aberto. Mesmo que não tenha mudado nada na realidade do público que viu a exposição no WIELS, mudou o microcosmos daquele Museu de História Natural. Naquele momento, em que abriram a colecção e perceberam a realidade, muitas conversas foram documentadas por Petrit que revelam uma reflexão profunda sobre os momentos que viveram e os que vivem. Poderá não ser uma mudança tão ambiciosa como uma revolução mas tem o valor de uma reflexão. O seu poder equivale ao poder que dá a quem nela participou e a quem a observa de decidir o que fazer com ela, seja a nível individual ou de grupo.

 

Referências

Bishop, Claire (2006). Participation (Documents of Contemporary Art). London: Whitechapel Gallery editions.         [ Links ]

Boje, David (2001). Narrative Methods for Organizational and Communication Research. London: Sage.         [ Links ]

Bourriaud, Nicolas (1998). Relational Aesthetics. Paris: Les Presses Du Reel edition.         [ Links ]

Bourdieu, Pierre (1984). Distinction: A Social Critique of the Judgment of Taste. Harvard: Harvard University Press.         [ Links ]

Breton, André, Rivera, Diego (1938) Manifesto for an Independent Revolutionary Art. [Consult. 20130831] Disponível em http://www.marxists.org/subject/art/lit_crit/works/rivera/manifesto.htm        [ Links ]

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Artigo completo enviado a 24 de setembro e aprovado a 27 de setembro 2013.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: luisa.santos@network.rca.ac.uk (Luísa Santos)

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