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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Paisagem é uma paisagem é uma paisagem é uma paisagem

A landscape is a landscape is a landscape is a landscape

 

Carlos Correia*

 

*Portugal, artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas (ESAD, Caldas da Rainha). Mestrado em Artes Visuais/Intermédia (Universidade de Évora).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa. Faculdade de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes,1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo pretende identificar uma certa ideia de paisagem num ponto específico da obra de João Jacinto, ponto esse onde a presença da paisagem será, porventura, menos evidente. Pelo caminho, tecemos algumas considerações sobre as possibilidades da pintura contemporânea, a relação desta com a imagem digital e com a sua rica tradição.

Palavras-chave: Pintura / paisagem / virtual / corpo / tradição.

 

ABSTRACT

This article seeks to identify a certain idea of landscape at a specific point of the work of João Jacinto, a point where the presence of the landscape is perhaps less obvious. Along the way, we make some considerations about the possibilities of contemporary painting, its relationship with the digital image and its rich tradition.

Keywords: Painting, landscape, virtual, body, tradition.

 

1. Introdução

O título deste artigo é tomado de empréstimo a Gertrude Stein, sendo que a Rosa foi trocada pela Paisagem. Pretendemos falar da obra de João Jacinto, usando a paisagem enquanto pretexto para mostrar que uma pintura fala sempre, antes de qualquer outra coisa, de si mesma. Nascido no ano de 1966 em Mafra e a trabalhar actualmente no Monte Estoril, João Jacinto é também Professor na Universidade onde se formou, a FBAUL. Tem realizado exposições com regularidade, em Portugal e no estrangeiro, desde a década de oitenta do século passado. O seu trabalho encontra-se representado nas mais prestigiadas colecções públicas do nosso país e faz igualmente parte de algumas colecções estrangeiras de enorme prestígio. Sobre as suas pinturas e desenhos escreveram alguns dos mais relevantes críticos de Portugal, bem como alguns outros de países como a Alemanha, Bélgica e Suíça, lugares esses onde o trabalho deste pintor português tem encontrado uma assinalável receptividade. Para além de textos críticos produzidos por ocasião das diversas exposições que tem vindo a realizar, o trabalho de João Jacinto foi igualmente alvo da publicação de diversas monografias.

 

2. Pinturas sem rótulos

Se tomarmos a obra de João Jacinto como um todo, o tema da paisagem não chega a ser uma das subdivisões nas quais o artista arruma habitualmente o seu trabalho. Assim, os rótulos que servem esse propósito de organização são os seguintes: pinturas; flores; auto-retratos; casas (referimo-nos ao sítio que alberga o trabalho do artista: www.joaojacinto.eu). Contudo, na sua mais recente exposição individual (Neve Derretida, que teve lugar na Galeria Giefarte em Lisboa, 2013), a paisagem tem uma presença que se manifesta de um modo mais directo, isto é, nestas pinturas existe de facto uma referência directa ao que habitualmente se entende por paisagem (Figura 1). Como se pode ler no texto que acompanha a exposição: "Modalidades de pintura da Natureza: paisagem, construída e não-construída e natureza-morta" (Pinharanda, 2013).

 

 

Temos, então, que a paisagem enquanto tema não é uma constante na obra de João Jacinto, ainda que por vezes se faça sentir de um modo quase impositivo. Ora, o que nos move para a realização do presente artigo é um ponto de vista praticamente oposto; afirmamos que a paisagem (ou, se quisermos, uma certa ideia de paisagem) é um tema recorrente na pintura do artista e que a presença desta se faz sentir de forma consistente, mesmo nas obras isentas de referências aos elementos habitualmente associados à paisagem; mais concretamente, nas pinturas abstractas (lembramos aqui que, no sítio atrás referido, o artista agrupa esta obras sob a designação de Pinturas).

Antes de prosseguirmos, convém esclarecer qual é o ponto de vista por nós adoptado e qual a prespectiva sob a qual as pinturas abstractas de João Jacinto serão aqui analisadas. Para tal, voltamos ao início deste artigo, precisamente à afirmação segundo a qual "uma pintura fala sempre, antes de qualquer outra coisa, de si mesma". Num primeiro olhar, pode parecer que pretendemos encarcerar a pintura de João Jacinto (e, por conseguinte, toda a pintura contemporânea) na vetusta perspectiva auto-referencial propagada pelo Modernismo. Ora, ainda que julguemos que boa parte dessas premissas continuam a fazer sentido nos nossos dias, não é essa a cartilha que subscrevemos. Ao dizermos que a pintura fala sempre de si mesma, não estamos a fechar o leque de possibilidades temáticas, mas antes a abri-lo; contudo, o certo é que, qualquer que seja o ponto de partida, fonte, modelo, etc. no qual uma pintura se ancora, ela não deixa de ser uma pintura. O assunto, digamos assim, é sempre ela mesma, bem como as condições da sua existência. Tomemos a título de exemplo, uma pintura (contemporânea) sobre a guerra: ora, esta fala sobre a possibilidade de a pintura poder continuar a falar sobre a guerra, antes de tecer qualquer outro comentário sobre a guerra em si. O simples (?) facto se ser pintura implica uma reflexão (ou, no mínimo, uma proposta de reflexão) sobre a sua natureza de pintura. Desta forma, nos nossos dias, o tema ou assunto de uma pintura é sempre, antes de mais, antes de qualquer outra coisa, um pretexto para continuar a testar as suas possibilidades precisamente enquanto pintura.

 

3. Uma certa ideia de paisagem

Voltando a João Jacinto, podemos afirmar que o seu corpo de trabalho (considerado como um todo) testa as condições de existência da pintura, antes de o fazer sobre a pintura de paisagem, a pintura de natureza-morta ou a pintura da auto-representação. Evidentemente, um auto-retrato não diz o mesmo que uma paisagem ou que uma natureza-morta; não defendemos a uniformização do discurso pictórico por via da irrelevância ou da falência que os diferentes géneros pictóricos apresentam nos nossos dias; o que queremos dizer é que para além da especificidade com que cada pintura se apresenta, existe uma natureza comum que prevalece sobre as diferenças; essa natureza consiste, pura e simplesmente, no facto de serem pinturas.

Esticando um pouco mais o fio condutor deste artigo, podemos dizer que, se a pintura de João Jacinto é, antes de mais, sobre A Pintura (e não sobre a paisagem, o auto-retrato ou a natureza-morta), então qualquer uma das suas obras é passível de encerrar uma certa ideia de paisagem. E em que consiste ou o que caracteriza essa certa ideia de paisagem? Independentemente da especificidade da pintura, qualquer pedaço de tela ou de papel pintado, quando isolado do todo, apresenta-se como um conjunto de manchas. Este exercício pode ser realizado mesmo sobre a mais exímia pintura foto-realista: se pegarmos numa espécie de moldura (de modestas dimensões, obviamente) e a fizermos deambular sobre a superfície de uma pintura, é altamente provável que, mais cedo ou mais tarde, comecem a surgir manchas disformes que, dispensando um grande esforço da imaginação, se assemelham a paisagens. Já Leonardo da Vinci (concordando com Sandro Botticelli) nos alertou para as infinitas possibilidades que uma simples mancha na parede pode encerrar: " (...) simplesmente atirando a uma parede uma esponja embebida numa variedade de cores, formar-se-á nessa parede uma mancha na qual se pode ver uma bonita paisagem. " Ora, o curioso é que, provavelmente, essas hipotéticas paisagens facilmente se nos apresentam, também, como pedaços de pintura abstracta. Ora, as pinturas abstractas de João Jacinto dispensam todo este exercício, pois é precisamente com essa ideia de paisagem que o espectador se vê confrontado. Assim, adoptando este ponto de vista, é nas pinturas abstractas que essa ideia de paisagem encontra uma manifestação mais consistente.

Uma vez esclarecido o nosso ponto de vista e o objecto geral a analisar, vamos um pouco mais longe na especificação, identificando dentro do grande conjunto que são as pinturas abstractas, quais as obras que de forma mais eficaz servem os nossos propósitos, a saber: as pinturas abstractas de maiores dimensões (Figura 2, Figura 3), nas quais facilmente adivinhamos vistas aéreas que em tudo (ou quase tudo) se assemelham às paisagens oferecidas por dispositivos como por exemplo o Google Earth; e as pinturas exageradamente matéricas, de pequenas dimensões (Figura 4, Figura 5 e Figura 6), que, não deixando de estabelecer pontos de contacto com as já referidas vistas aéreas, as contradizem pela excessiva manifestação da presença física da matéria que as constituí, fazendo como que um violento protesto pela prevalência do corpo em detrimento do virtual.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Podemos daqui depreender que algumas pinturas abstractas de João Jacinto, para além de convocarem uma certa ideia de paisagem, comportam igualmente a possibilidade de evocar, colocando-os em confronto directo, dois universos distintos: a imagem digital e a matéria. Tudo isto, sem deixarem de (poder) ser paisagens e, antes de mais, pinturas. Esta infindável capacidade de evocar e confrontar universos distintos, bem como a infinita capacidade de absorver e transformar a novidade sem contudo esquecer a sua rica tradição será, porventura, uma das características que fazem com que a pintura continue a apresentar-se como uma prática plena de pertinência e actualidade.

 

4. Conclusão

À laia de conclusão, podemos dizer que o artigo pretende identificar uma ideia de paisagem num ponto específico da obra de João Jacinto, ponto esse onde a presença da paisagem será, porventura, menos evidente. Pelo caminho, tecemos considerações sobre as possibilidades da pintura contemporânea, abordando a auto-referencialidade bem como a sua abertura ao exterior, mas também o confronto entre o material e o virtual. Num artigo com estas características, é muito mais o que fica por dizer do que o que é dito. Ainda assim, esperamos ter contribuído para outras linhas de investigação sobre a pintura contemporânea em geral e sobre a obra de João Jacinto em particular.

 

Referências

Da Vinci, Leonardo (edited by Martin Kemp)(2001) Leonardo On Painting. New Haven and London: Yale University Press.         [ Links ]

Pinharanda, João (2013) João,... de um curso de pintura. Lisboa: Giefarte.         [ Links ]

Pinharanda, João (2002) João Jacinto – Uma Antologia [1986-2002]. Badajoz/ Cascais: Fundação D. Luís I / MEIAC.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: corrcarlos@gmail.com (Carlos Correia)

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