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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Ficções em torno da paisagem

Fictions about the landscape

 

Paula Cristina Somenzari Almozara*

*Brasil, Artista visual, professora e pesquisadora (linha de pesquisa: Linguagens Poéticas/ Artes Visuais). Doutorado em Educação, na Área de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte, Universidade Estadual de Campinas, unicamp. Mestrado em Artes, unicamp. Licenciatura e Bacharelado em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas, unicamp. http:// www.paulaalmozara.art.br

AFILIAÇÃO: Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Faculdade de Artes Visuais. Centro de Linguagem e Comunicação. Campus I – Prédio Administrativo II, Rodovia D. Pedro I, km 136, Parque das universidades – Campinas – SP, CEP: 13086-900, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo pretende estabelecer uma reflexão sobre a paisagem de modo a explorar o conceito de ficção associado ao processo de construção poética do artista mexicano Sebastián Romo em sua residência artística na 8ª Bienal do Mercosul em 2011.

Palavras-chave: paisagem / ficção / fronteira / instalação / Sebastián Romo.

 

ABSTRACT

This article aims to establish a reflection on the landscape in order to explore the concept of fiction associated to the poetic construction process of the Mexican artist Sebastián Romo during his artistic residency in 8th Mercosul Biennial in 2011.

Keywords: landscape / fiction / frontier / installation / Sebastián Romo.

 

Introdução

"Definir a paisagem, em função apenas da ideia de sítio ou lugar, como tradicionalmente se fixou, limita demasiadamente as perspectivas de análise" (Silvestre, 2007: 19). Portanto, a paisagem na arte contemporânea não é simplesmente mais um gênero ou uma categoria ligada à representação de uma vista natural, mas afirma-se como um potente detonador de experiências (Maderuelo, 2008) a partir do qual o artista explora sua relação com o mundo e com os elementos historicizados (Bourriaud, 2009).

Assim contextualizada, a paisagem pode ser pensada como "a manifestação do movimento interno do mundo" (Besse, 2011: 112), em que a atitude estética não se fixa no caráter de realidade ou representação das coisas dispersas na natureza exterior ou mesmo no conhecimento científico sobre essas coisas, mas se entretém na multiplicidade de situações potenciais que cada sujeito, detentor de um repertório, é capaz de perceber e submeter a um livre jogo de ligações que, afinal, conferirá unidade, coerência e significação a uma imagem mental:

percorrer um lugar ou uma fotografia, pelo menos em determinadas ocasiões, deveria ser um ato consciente e ativo a partir do qual se constrói a própria experiência, sobretudo se partirmos da ideia de que a paisagem, real ou representada, está no olhar de quem contempla ou transita e não no lugar que motiva em si esse pensamento (Bleda & Rosa, 2007: 177).

A utilização do conceito de "ficção" – ressignificado para o contexto das poéticas visuais – pretende, nesse sentido, amplificar as possibilidades de reflexão sobre as relações simbólicas e formais que estão presentes na maneira como lidamos com a constituição polissêmica do termo paisagem, na qual a mimeses cede lugar às experiências sígnicas.

A ficção evoca a constituição de uma nova realidade que parte de especulações imaginativas, levando em conta a exacerbação das experiências pessoais, históricas e culturais, considerando que a realidade está vinculada, segundo C. G. Jung (2000), ao que nós próprios entendemos ou sentimos como tal.

 

1. Cadernos de viagem: supor te ficcional/documentos de percurso

O termo "ficção", como um constructo, também remete às narrativas de viagens fantásticas e a um certo paralelismo entre a história da arte e literatura, colocando em pauta as viagens de estudo dos artistas, as narrativas sobre lugares imaginários e o papel do deslocamento como metáfora para transformação, além de evocar a paisagem como base na elaboração de um ideário estético sobre territórios desconhecidos. Viajar, descobrir novos sítios e sobretudo registrar a experiência, se converte em um ponto fundamental na constituição de documentos de percurso e na elaboração do lugar como um potente espaço ficcional.

Nesse caso, a expressão "cadernos de viagem" é um elemento importante na análise dos processos e poéticas relacionados à construção da paisagem. Historicamente, os "cadernos de viagem" são suportes que acompanham os artistas em seus percursos, sendo meios tradicionais de registro de experiências e descobertas, caracterizando-se como uma espécie de arquivo, feito por desenhos, anotações escritas, fragmentos de materiais bidimensionais coletados (como plantas), fotografias instantâneas etc. e que são contentores mnemônicos associados a images de pensée (Carräes; Marchand-Zanartu, 2011).

Sugestivamente, "cadernos de viagem" foi o título utilizado para um dos componentes da 8a Bienal do Mercosul (2011), sob coordenação da curadora chilena Alexia Tala, que convidou vários artistas para realizarem viagens de residência artística ao extremo sul do Brasil, desenvolvendo projetos pessoais em torno do binômio paisagem-deslocamento.

Entre eles, interessa-me particularmente, o trabalho do artista mexicano Sebastián Romo (1973, Cidade do México), justamente pelo modo como ele articula a ideia de ficções em torno da paisagem, elaborando visualmente situações paradigmáticas que colocam, lado a lado, as diversas noções abstratas que se referem ao conceito de fronteira, seja o disseminado pela categorização de processos, de linguagens, de produtos, ou o determinado por meio de associações mais primárias, presentes nas relações entre as palavras: "ficção-cinema", "barreira-passagem", etc.; abordando finalmente, no caso da Bienal do Mercosul, o conceito geopolítico de fronteira.

No trabalho de Romo, os "cadernos de viagem" são uma espécie de ateliê portátil – segundo a própria concepção do artista – e usados sistematicamente em sua produção, ocupando um lugar central, não apenas nos percursos, mas principalmente nas exposições realizadas por ele.

Nos cadernos desse artista é possível observar que a imagem fotográfica impressa (de jornais, postais ou revistas) e a fotografia instantânea (Figura 1) realizada com uma câmara Polaroid são aforismos que contribuem para que os registros gerados e observados in loco sejam arquivados nos cadernos no momento exato em que foram vivenciados nos percursos, nas viagens e/ou situações específicas de trabalho.

Com tais recursos o artista explora, a partir dos cadernos, os pequenos "frames" (Figura 1) temporais sugeridos em cada instantâneo fotográfico, exacerbando o princípio fílmico do "quadro a quadro" e das técnicas relacionadas aos antigos aparelhos cinematográficos.

 

 

Em geral, Romo trata intermitentemente em sua obra de uma alusão à história dos processos tecnológicos primordiais da apresentação de imagens em movimento. Seu interesse pelos aparelhos antigos como o zootrópio (máquina estroboscópica criada em 1834 por William George Horner), o cinematógrafo (patenteado em 1895, pelos irmãos Lumière), determina incisivamente os relacionamentos histórico-conceituais entre fotografia e audiovisual presentes em diversas de suas obras.

Não é por acaso que, no trabalho final realizado para a 8a Bienal do Mercosul, o artista tomou o cinema como referência explícita, para ressaltar a ideia de fronteira como uma ficção relativa à paisagem do Sul do Brasil, na região de Santana do Livramento e Rivera (Uruguai).

 

2. Máquina aceleradora de ficções

Considerando o percurso, as anotações dos cadernos bem como a relação de Romo com a fotografia e o cinema em conexão com a paisagem do extremo Sul do Brasil, a instalação "Máquina aceleradora de ficções" (Figuras 2, Figura 3) marca decisivamente a experiência do artista em sua residência do componente "Cadernos de viagem" da 8a Bienal do Mercosul (2011).

O projeto da obra em questão (Figura 2) apresenta uma instalação que está dividida em duas seções por uma parede:

De um lado há uma coisa que corresponde a um "set" fílmico e o outro lado corresponde a um atelier de um artista, e nesta seção estão todos os materiais que se usaram para a pesquisa durante a viagem em Livramento, onde se podem ver as polaróides, os mapas topográficos, os cadernos, uma série de notas e papéis, fotografias em grande formato e ao abrir esta porta (Romo aponta para o centro do esboço) aparece esta casa que supostamente seria do guarda da fronteira, que num ato de reflexão diante da paisagem e do espaço aberto descobre que a fronteira era somente uma invenção dos homens e decide abandonar a casa (Atelier Romo, 2011)

 

 

"Máquina aceleradora de ficções" (2011) investe em um conjunto intermitente de narrativas que estão conectadas por relações simbólicas, na forma como a paisagem foi sentida e experimentada pelo artista, e também relações históricas, e que, nesse caso, não evocam apenas a história relativa à região – embora a partida aparentemente seja essa –, mas a história relacionada a todos os processos e aparatos usados na instauração da obra (Figura 3).

 

 

É possível ressaltar tais relações, por exemplo, no uso que Romo faz do "matte" (Figura 4), nome técnico de uma pintura utilizada pelo cinema nos anos de 1950 em substituição às custosas locações em sítios específicos. Esse processo de pintura em vias de extinção (como é [ou era] o filme instantâneo) é recuperado pelo artista na construção das diversas camadas de leituras propostas pela obra:

Eu comecei a trabalhar nos "mattes" porque me pareceram uma coisa muito, muito interessante, porque é uma pintura conhecida dos anos 50, quando houve uma crise econômica nos estúdios de cinema e então as produções cinematográficas já não podiam viajar a locações naturais para filmar as películas e a solução que encontraram foi a de pintar paisagens ou locações [...] a pintura "matte" toma o nome de "matte" porque tem que ser opaca para poder ser fotografada. E eu creio que esta é uma das características desse tipo de pintura que me parecem como a mais interessante, porque é uma pintura que está intrinsecamente relacionada a tradição da paisagem e por outro lado está relacionada ao muralismo, porque sempre há de ter formatos muito grandes para poder atuar dentro dela. Pretende imitar a realidade, mas sem ser nunca pretender ser hiperrealista, porque é um tipo de pintura que foi concebida para ser fotografada e não é uma pintura que foi concebida para ser vista (Romo, 2012 [manteve-se o tom coloquial da entrevista])

 

 

Por meio dessas relações, Romo leva a termo a ideia exacerbada de ficção impondo uma conexão explícita com o cinema ao pensar em uma parte da estrutura de sua instalação como um set de filmagem contrapondo-a a uma outra parte que representa uma espécie de simulacro do atelier do artista no qual os documentos de processos estão colocados, criando, dessa forma, um desdobramento espacial dos cadernos de viagem.

A fronteira como uma construção ficcional perpassa todo o conjunto; vai da metáfora da separação estabelecida entre o trabalho de atelier e trabalho de campo até a construção cenográfica e realística da casa de um guarda de fronteira que, na "história" elaborada pelo artista, abandona seu posto após perceber que o conceito de limite entre territórios e nações é uma questão firmada apenas por uma convenção, por uma invenção humana, na qual a fronteira é uma ilusão imposta por estruturas de poder e produção.

 

Conclusão

A ficção, nesse caso, tem o poder de potencializar os aspectos imaginativos ligados à ideia de paisagem, interferindo no campo de relações mnemônicas e emocionais associadas ao repertório geográfico, que está, bem ou mal, impregnado em nosso imaginário ou inconsciente.

Sob esse contexto, o percurso do artista constituiu-se como uma experiência fundada na realidade, mas cujas conexões e projeções simbólicas, imaginativas e culturais criaram camadas de significados que estão além de dados meramente perceptivos. A ideia de ficções em torno da paisagem estrutura-se como um detonador ou gerador de possibilidades poéticas vinculadas ao repertório do observador e do artista, a partir das quais a paisagem é a geografia emocionalmente reconhecida (Dardel, 2011), contentora de manifestações poéticas, políticas e históricas.

 

Referências

8a Bienal do Mercosul (2011). Porto Alegre. [Consult. 2013-03-30]. Disponível em http://bienalmercosul.siteprofissional.com/        [ Links ]

Atelier Romo (2011). Depoimento de Sebastián Romo sobre seu trabalho para "Cadernos de Viagem" na 8a Bienal do Mercosul.Vídeo. Ano: 2011. [Consult. 2012/01/05]. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=943lBGF834u        [ Links ]

Besse, Jean-Marc (2011). "Geografia e Existência, a partir da obra de Eric Dardel". In: Dardel, Erik (2011). O homem e a terra, natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva. ISBN: 978-85-273-0924-0.         [ Links ]

Bleda & Rosa (2007). "Un paseo pola memoria ou como pensar a paisaxe." IN: Paseantes, Viaxeiros, Paisaxes. Xunta de Galicia: Centro Galego de Arte Contemporánea. ISBN: 978-84-453-4506-1.         [ Links ]

Bourriaud, Nicolas (2009). Pós-produção, como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 978-85-61635-11-4.         [ Links ]

Caraës, Marie-Claude; Marchand-zanartu, Nicole (2011). Images de pensée. Paris: Editions de la Réunion des musées nationaux. ISBN: 978-2-71185804-0.         [ Links ]

Dardel, Erik (2011). O homem e a terra, natureza da realidade geográfica.São Paulo: Perspectiva. ISBN: 978-85-273-0924-0.         [ Links ]

Jung, Carl Gustav (2000). Memória, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. ISBN-13:9788520904510.         [ Links ]

Maderuelo, Javier (2008). La Construcción del paisaje contemporráneo. Huesca, Espanha: CDAN. ISBN: 978-84-612-3759-3.         [ Links ]

Romo, Sebastián (2012). Entrevista de Sebastián Romo por motivo de sua participação na exposição: Alrededor de algo que nos piensa, alrededor. San Carlos Centro Cultural. Mexico DF, 2012. [Consult. 2013-07-30]. Disponível em http://vimeo.com/47452811        [ Links ]

Silvestre, Federico López (2007). "Introdución: Por unha filosofia nómade da paisaxe". In: Paseantes, Viaxeiros, Paisaxes. Xunta de Galicia: Centro Galego de Arte Contemporánea. ISBN: 978-84-453-4506-1.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: almozara@puc-campinas.edu.br (Paula Almozara)

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