SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número8Reconocer el territorio: escollos de la representaciónFicções em torno da paisagem índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O Rio do Ouro: uma ideia de paisagem

The idea of landscape at "Rio do Ouro"

 

Manuela Bronze*

*Portugal, artista plástica e figurinista. Artes Plásticas, Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP); Master of Fine Arts in Costume Design, Boston University, EUA; Doutorada em Artes, Fac. Belas Artes, Pontevedra, Universidade de Vigo, Espanha.

AFILIAÇÃO: Instituto Politécnico do Porto, Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo (ESMAE). Rua da Alegria, nº 503, 4000-045, Porto, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo visa abordar a singularidade de alguns aspectos relacionados com a paisagem, em planos de O Rio do Ouro, 1998, filme realizado Paulo Rocha (PR). Selecionadas algumas sequências, são caracterizados os planos cinematográficos que, se tornam, assim, mais próximos da ideia de pinturas, sobretudo para explorar a abordagem ao pitoresco, no âmbito do conceito de paisagem.

Palavras-chave: Pitoresco / cinema / pintura / narrativa / enquadramento.

 

ABSTRACT

This article aims to address the uniqueness of some aspects of the landscape, from the plans of O Rio do Ouro, 1998, a film directed by Paulo Rocha (PR). Once chosen some sequences, the film plans that become thus closer to the idea of paintings, will be characterized especially to explore the picturesque approach within the concept of landscape.

Keywords: Picturesque / cinema / painting / narrative / framing.

 

Introdução

O Rio do Ouro, filme realizado por Paulo Rocha (1935-2012) conta a história de um grande e horrível crime (Guimarães, 1998). Uma narrativa melodramática situada na província, entre o Douro e o Porto, que convoca paixões funestas sublinhadas pela força telúrica das margens do Rio Douro.

O que neste filme se deve à paisagem depende do facto de o próprio título convocar – o rio – elemento material, constitutivo do reportório de identificação na pintura de paisagem.

Conhecendo-se o Douro, identificam-se alguns panoramas seja pela pertença, seja porque se o atravessa, em deambulações mais ou menos turísticas.

Ora, as escolhas de PR, sempre em cenário real, constituíram um enorme esforço de busca por um lugar onde o acesso, tendo sido particularmente difícil de descobrir, seria ainda de difícil permanência. Perante tão limitadas condições de filmagem, a garantia de um ponto de vista jamais utilizado é factor determinante, por oposição ao do reconhecimento. Tal condição vai proporcionar ao espectador uma experiência fílmica de mudança na forma de percepcionar o espaço; como se a salvaguarda do ponto de vista fosse da inteira responsabilidade individual do realizador. É assim que estas imagens do lugar se transformam numa verdadeira paisagem cultural, pari passu com a própria narrativa, funcionando em desdobramentos de poéticas da memória, perante uma identidade geográfica e perante a própria pintura.

A natureza que fala para a câmara de filmar não é a mesma que fala para os olhos (Benjamin, 1992: 86)

Se as margens do Douro são grandiosas e sublimes enquanto paisagem, não foi ao encontro disso que PR foi, nos dias de répérage. O que lhe interessava era encontrar algo que se aproximasse, enquanto enquadramento, daquilo que se pode considerar uma dominante pictórica. Desde logo uma dominante que, dada a circunstância provinciana da narrativa, radica na paisagem e vai ganhar expressão, enquanto categoria, à luz das teorias académicas da pintura, nomeadamente, as que precederam a modernidade. A paisagem do realizador seria aquela e mais estoutra que o seu olhar observara, exposta enquanto pintura nas paredes dos museus.

Nada haveria de reverencial perante esta natureza. O que interessava evocaria a imperfeição do homem e da natureza, os pormenores curiosos e caracterizadores e a interpretação poética de uma atmosfera peculiar, ou seja, todo um enunciado sobre a estética do pitoresco, enquanto exercício para uma descoberta visual (Gombrich, 2011) deste mundo particular de Carolina, António, Mélita e Zé dos Ouros, as personagens principais do enredo.

É a sua paisagem do Douro que se torna uma possibilidade estética da natureza e inscreve, na tela, a relação verdadeira dos personagens com a natureza e com a natureza dos personagens.

É com esta imagem (Figura 1) que entramos em O Rio do Ouro.

 

 

O rio dos desenganos (Guimarães, 1998) ecoa na canção e, plácido, espelha o céu dourado onde o recorte contrastante das margens nos oferece uma natureza fechada e misteriosa num Plano Geral muito alargado, que lembra alguma da pintura da escola de Barbizon. Simultaneamente, na imagem e devido à escala do afastamento, o Plano Geral dá-nos um claro-escuro que se transforma numa composição de formas abstractas, onde o contraste absoluto é reforçado pela horizontal que propõe a simetria.

Neste fotograma (Figura 2), um outro Plano Geral, contextualiza o final da festa da boda. Estamos perante a evocação de um retalho do quotidiano no campo, como convém a este género de pintura de paisagem. Um plano onde o décor, de sabor novecentista, torna verosímil o acontecimento, quer pelo enquadramento e perspectiva quer pelos próprios elementos em cena. Ao mesmo tempo, aí estão quase todas presentes as cinco coisas essenciais que dão alma à paisagem: as figuras, os animais, a água, as árvores agitadas pelo vento e a leveza do pincel, conforme as observações gerais sobre a paisagem do Curso de pintura por princípios de 1708 (Piles, 1989).

 

 

Alguns convivas perecem conversar, enquanto outros se abandonam à sonolência por entre os despojos da festa, mesmo ali na margem do rio, compõem uma imagem exemplar do que, no séc. XIX, o "pitoresco" exprime, nas palavras de Argan:

(...) em tonalidades quentes e luminosas, com toques vivazes que põem em relevo a irregularidade ou o caráter das coisas. O repertório é o mais variado possível: árvores, troncos caídos, manchas de grama e poças de água, nuvens móveis no céu, choupanas de camponeses, animais no pasto, pequenas figuras, a cada uma das quais correspondem diferentes tipos de 'manchas'. (Argan, 1977: 10)

Transparece na cena o prenúncio de uma qualquer agitação passional, cujo desfecho nos será dado brevemente.

Se o todo da imagem se aproxima ou nos remete para o que recordamos de Corot, Daubigny, Millet ou mesmo Constable, já as colchas amarela e vermelha, acondicionadas à maneira de toldos, relevam, no modo enquadramento das suas formas quadrangulares, uma articulação formal entre um romantismo pitoresco e um certo abstracionismo que se pode identificar, em PR, de influência japonesa e modernista.

A paisagem tinha sido o lugar, depois o tema, finalmente o argumento fundamental – e esta caminhada para a sua autonomia de outras narrativas trouxe-lhe a libertação do carácter representativo. À medida que a paisagem se enuncia na problematização de uma relação do homem com o mundo, assim decresce a evidência objectiva da natureza (Castro, 2006)

Precisamente, este grande espaço de evidência acontece quando, neste Plano Médio (Figura 3) a anterior paisagem morfológica é abruptamente trocada por uma nova forma quadrangular, negra, que invade a tela superlativando, num gesto pictural, aquilo que a montagem, em cinema, resolveria com um fundido.

 

 

Este recurso ao elemento material que é a vela de rabelo, será agora uma imagem retrabalhada que a nossa percepção faz coincidir com o quadro negro de Malevitch, isto é, uma outra identidade paisagística de carácter simbólico.

Após a escolha dos enquadramentos e numa coincidência recentemente observada, a legenda da tradução da letra da canção, 'A acenar para a morte' (Guimarães, 1998) repete-se, vindo reforçar a própria escolha, pois os dois enquadramentos (Figura 4) com diferentes tipos de planos podem, objectivamente, equiparar-se na sua plasticidade; sendo eles, metaforicamente e no discurso do tempo: premonição e fecho (na imagem da barragem) de todo um elenco de peripécias dramatizadas no meio-paisagem.

 

 

Com efeito, no enquadramento, a composição e os valores das várias manchas são idênticos e sublinhados pela caligrafia de algumas linhas de força que articulam a dinâmica das manchas.

Quando Carolina (Isabel Ruth) dá as costas ao espectador (Figura 5) estamos perante um Plano Médio, subjetivo na sua dimensão simbólica, ainda que o não seja tecnicamente e onde o enquadramento da paisagem é reforçado, estruturalmente, pelo ângulo da grade com o prumo, de uma varanda voadora. Daqui olhamos uma paisagem onde uma massa rochosa mergulha no dourado baço do rio Douro. Uma espécie de rima textural com carácter expressionista acontece entre o vestuário da personagem e esse elemento geográfico. Perante o volume da paisagem visível, os componentes articulam-se e interpenetram-se como uma unidade pictórica. No filme, estas duas unidades (Carolina e rochas) assumem, no silêncio, um conflito de personagens, numa modulação de escala aumentada, em cuja textura se reflete a agrura da existência e a identidade geográfica da paisagem.

 

 

Perto do final da rodagem, o realizador vem a descobrir, na vivência da própria paisagem, a realidade da sua envolvente vital. Esta realidade natural que se sobrepõe ao seu próprio vocabulário é, também, uma realidade ficcional e plástica que acontece neste filme de forma poderosa.

Precisamente, será com o cinema que mais damos conta das mudanças na paisagem e, mesmo quando ela é pano de fundo, o processo de preparação do olhar, hoje identificado como artialisation (Roger, 1998), decorre dos processos de leitura do visível que mediados pela arte estão para lá da natureza do território geográfico.

 

Conclusão

Cada um destes enquadramentos traduz um plano cinematográfico que, por definição, é em si uma unidade narrativa e representativa. O cinema permite ao imaginário a experiência de atmosferas a que a própria natureza é alheia, ajuda a interpretar o mundo, ou melhor a desenvolver uma outra forma de apreensão do real. E se o cinema põe em prática uma outra maneira de ver as coisas, é porque permite a passagem (essa relação tão íntima entre a profundidade do écran e os olhos do espectador) de uma estética da representação para uma estética da percepção. Todavia, é precisamente o cinema quem, de forma recorrente, nos oferece um outro olhar sobre a pintura, revisitando temas, pintores e obras em remissões onde o passado confere à atualidade o sentido da experiência anacrónica.

A paisagem não é, apenas, pano de fundo, mas parte integrante do décor onde as margens do Douro foram pretexto, referência e território para o exercício de um olhar onde sensualidade e suspensão correm a par de um corredor, ora fluvial ora pavimentado.

Ao selecionar os enquadramentos deste filme, de algum modo traímos um modo muito peculiar da realização de PR – os planos-sequência – impossíveis de observar neste tipo de apresentação. Contudo, referimo-los porque recordamos a desmesura horizontal dos 'panoramas' que as lentes anamórficas do cinemascope, outrora filmaram a natureza e para salientar o quanto elas foram, no discurso da paisagem cinematográfica, o embrião do futuro plano de sequência.

Ciente do valor convencional da relação entre natureza e arte que a imagem do cinema potencia, PR aborda-o aí refletindo o seu saber e gosto pela pintura, enquanto referência histórica e artística comprometida com a atualidade.

Subtilmente, a experiência do espectador suspenso da representação que se opera na tela entra na história, saindo da tela, como se os seus próprios olhos pudessem selecionar uma parte do território desta outra natureza, atrevendo-se a definir enquadramentos, na busca constante do equilíbrio composicional das diferentes manchas e suas gradações de valores lumínicos, da sensação visual ao sentimento.

Paulo Rocha sempre teve uma ideia de paisagem, aprendemos isso em todos os seus filmes.

 

Referências

Argan, Giulio Carlo (1992) Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Benjamin, Walter (1992) Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Politica. Lisboa, Relógio D'Água.         [ Links ]

Castro, Laura (2006) Antes e Depois da Paisagem. [consult. 23-05-13]. Disponível em http://www.apha.pt/boletim/boletim3/pdf/LauraCastro.pdf        [ Links ]

Gombrich, Ernst Hans (2007) Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Guimarâes, Regina, (1998) O rio do Ouro. Letras das canções. Realização e Prondução de Paulo Rocha; Voz e Música de José M. Branco.         [ Links ]

Piles, Roger de (1989) Cours de peinture par príncipes. ed. J. Thuillier, Paris: Gallimard        [ Links ]

Roger, Alain (1997) Court traité du paysage. Bibliothèque des Sciences Humaines. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: manuela.bronze@gmail.com (Manuela Bronze)

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons