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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

DOSSIER EDITORIAL

EDITORIAL SECTION

Início de jogo: um estudo sobre os documentos de trabalho no processo artístico de Flávio Gonçalves

Game start: a study on the working documents in the artistic process of Flavio Goncalves

 

Marilice Corona*

*Conselho editorial; Instituto das Artes, Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Este artigo tem como objetivo demonstrar a importância dos documentos de trabalho no processo criativo do artista brasileiro Flávio Gonçalves. Gonçalves transporta para o desenho imagens da infância que alegorizam o mito da origem e da criação. Mas, ao mesmo tempo, não seriam estas imagens a expressão da visão utópica?

Palavras-chave: documentos de trabalho, desenho, imagens da infância, olhar utópico.

 

 

ABSTRACT
This article aims to demonstrate the importance of working documents in the creative process of the artist Brazilian Flávio Gonçalves. Goncalves carries for drawing images of childhood that allegorize the myth of the origin and creation. But, at the same time, these images would not be expressing the utopian eye?

Keywords: working documents, drawing, images of childhood, utopian eye.

 

 

Este artigo tem como objetivo levantar alguns aspectos sobre o papel e a importância dos documentos de trabalho no processo de criação do artista, professor e pesquisador brasileiro Flávio Gonçalves. Gonçalves nasceu em Porto Alegre/RS, em 1966 e realizou sua formação no Instituto de Artes da UFRGS. É doutor em Artes pela Universidade de Paris 1 – Sorbonne e é Professor Associado do Instituto de Artes da UFRGS onde leciona disciplinas de desenho na graduação e temas referentes à sua pesquisa no programa de pós-graduação da mesma instituição. Desde os anos 80 o artista tem se dedicado, efetivamente, à pratica e à teoria do desenho. Aliás, como veremos, essas duas instâncias apresentam-se de modo indissociável em suas obras.  

No ano de 2000, fui convidada por Flávio Gonçalves a participar de uma exposição coletiva na Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS. Esta exposição tinha um caráter diferente das demais, pois não se tratava de uma exposição de obras, mas de Documentos de Trabalho e foi naquele momento que começamos a tomar intimidade com esse termo. Gonçalves visitou o atelier de dez artistas e, com olhar clínico, garimpou fotografias, desenhos, objetos, etc. Ou seja, Gonçalves procurava encontrar em nosso atelier aquelas imagens/objetos referenciais as quais ele suspeitava serem determinantes na instauração da obra acabada. Atento à importância dessas imagens/objetos no processo de criação, dedica um capítulo sobre o assunto em sua tese de doutorado e, desde então, desenvolve pesquisa sobre o tema. Flávio havia retornado ao Brasil depois de passar quatro anos em Paris/França onde desenvolveu sua tese Où se trouve le dessin?: une idée de dessin dans l'art contemporain. (Onde se encontra o desenho ?: uma idéia de desenho na arte contemporânea). E foi nesse processo de escrita e sistematização de idéias, focados em seu próprio trabalho, que o artista acaba por conformar uma metodologia singular de pesquisa. Seria possível dizer que a exposição Documentos de trabalho foi, para o artista-curador uma forma de estender e verificar a aplicabilidade de seu método em relação a obra ou processo de outros artistas.  

Segundo Flávio Gonçalves, o termo 'documentos de trabalho' encontra-se no catálogo da exposição retrospectiva de Francis Bacon, realizada em 1996, no Centro George Pompidou em Paris. Conforme o artista, 'o termo, em Bacon, faz referência às fotos e ilustrações sobre folhas arrancadas de livros ou de revistas, seguidamente coladas sobre cartão, das quais ele se servia para fazer suas pinturas' (Gonçalves, 2000: 41). Para Flávio, documentos de trabalho refere-se ao 'estudo do momento anterior à obra e ao quadro em que esta se situa: são as referências, anotações, fotografias, imagens, objetos que povoam ou circundam o espaço de criação' (Gonçalves, 2000: 41).  

No catálogo de Bacon o autor realiza comparações, lado a lado, por exemplo, entre as fotografias (chamadas de documentos de trabalho) e as pinturas derivadas dessas. Nessa publicação, o que encontramos são análises mais restritas aos aspectos formais. Não existe ali nenhuma reflexão profunda sobre a natureza, o significado e a importância dos documentos de trabalho no processo de criação. É nesse sentido que a pesquisa de Flávio Gonçalves vem contribuir, de forma inédita, para o campo da pesquisa em arte.  

E será, a partir de seu próprio método, que tentarei uma aproximação de sua obra. Para Flávio os documentos de trabalho são vistos como "expressão fantasmática do desejo de criar'. É sobre o mistério da criação tanto artística quanto mítica que o artista se debruça para tentar compreender o significado dos documentos. Mas aqui, tentarei uma leitura diversa que não estaria preocupada com a conceituação do termo, mas com a possibilidade de aproximar-me de sua obra analisando seus documentos de trabalho a partir da inversão e da circularidade de uma frase que intitula um dos capítulos de sua tese: A infância das imagens. Proponho, então, um percurso pelas imagens da infância para analisar de que modo e por que essas imagens migram para o campo da arte e, particularmente, do desenho.  

A princípio, nada me parece mais apropriado do que se utilizar de imagens de brinquedos, de crianças ou adolescentes e de figurinhas de coleção para falar da infância das imagens e, por que não, da infância da linguagem, do desenho. Nesse sentido, as figuras presentes nos desenhos de Flávio Gonçalves alegorizam com perfeição os questionamentos do artista sobre a própria natureza da linguagem que as constituiu (Figura 1).

 

 

Por pertencermos à mesma geração, identifico com facilidade a origem de algumas de suas representações. O reino de nossas imagens era bem menor que aquele que se configura hoje. Nossas imagens saíam de livros, revistas, televisão e, algumas vezes, do cinema. A nossa infância assistiu TV em preto e branco e viu surgir com magia a TV colorida; bateu figurinha na escola, tentando completar os álbuns de coleção, boa parte das vezes, sem sucesso algum. Quem é desse tempo não esquece do álbum de História Natural da Editorial Bruguera (Figura 2) com suas figurinhas de tamanho avantajado, rica em detalhes e que nos trazia informações curiosas sobre os misteriosos animais das regiões abissais, a vida invisível dos protozoários e das amebas e os pássaros em extinção. Flávio pertence a uma geração que conheceu e utilizou o Desenho Copy, espécie de caderno temático, composto de folhas de papel vegetal encadernadas em espiral e no qual se encontrava figuras de toda sorte para "passar por cima". Tratava-se de uma coletânea cujo propósito era facilitar a ilustração dos trabalhos escolares por meio de figuras lineares, cujo verso da linha constituía-se de um tipo de tinta-carbono que permitia passar o desenho para o contexto que se desejasse. Um tempo em que a brincadeira de rua era coisa comum e pressupunha a invenção dos brinquedos. A parede virava cinema quando a sombra de mãos habilidosas fazia desfilar, diante dos olhos, animais de toda espécie. No mundo infantil masculino, o campo de futebol nascia do riscado na areia grossa e os carrinhos desenhavam estradas pelo chão. O autorama era sonho de consumo de muitos, mas só aos abastados era dado tê-lo. Miniaturas de plástico e metal ganhavam vida: índios, cavalos e soldados travavam batalhas incríveis (Figura 3). Tanto a bola como a bala inscreviam seus trajetos (Figuras 4 e 5). Desenhar era brincar e o brinquedo era desenho, era desejo, era desígnio. Desenhar era brincar e brincando configurava-se o mundo e a infância da escrita.

 

 

 

 

Não é sem razão que Flávio e muitos outros criadores foram buscar na infância a matéria prima de sua obra. Se, por um lado, conforme aponta o artista, o ato de criação está com o olhar voltado para trás, tratando-se de contínua tentativa de elaboração do mito da Origem, seria possível dizer que as imagens da infância alegorizam, também, o olhar utópico, o olhar voltado para frente, para as possibilidades de futuro. Seria possível dizer que este retorno, esta rememoração, esta tentativa de reconfiguração trata-se da busca de um certo resíduo de utopia que se desvaneceu com o correr dos anos. Sabe-se o quanto vemos nossos sonhos serem redimensionados ao alcançarmos a idade adulta. Como nos diz Ecléa Bosi,

se examinarmos criticamente a meninice podemos encontrar nela aspirações truncadas, injustiças, prepotência, a hostilidade habitual contra os fracos. Poucos de nós puderam ver florescer seus talentos, cumprir sua vocação mais verdadeira. Comparamos acaso nossos ideais antigos com os presentes? Examinamos as raízes desse desengano progressivo dessas relações sociais? A criança sofre, o adolescente sofre. De onde nos vêm, então, a saudade e a ternura pelos anos juvenis? Talvez por que nossa fraqueza fosse uma força latente e em nós houvesse o germe de uma plenitude a se realizar. Não havia ainda o constrangimento dos limites, nosso diálogo com os seres era aberto, infinito. A percepção era uma aventura; como um animal descuidado, brincávamos fora da jaula do estereótipo (1994: 83).
 

Acredito que o artista, consciente ou inconscientemente, ao entrar em contato com algum aspecto de sua infância, busque este resíduo, estas promessas do que poderia ter sido, ou talvez seria melhor dizer, este próprio estado inerente à palavra promessa, este lançar-se, atirar longe, crescer para diante. Este estado de potência que tende ao movimento e cuja origem é o desejo (Corona, 2009). E, não seria esse aspecto projetivo, esse lançar-se para frente, característica essencial da linguagem do desenho?  

Ao transportar as imagens da infância para o campo da arte, Flávio muitas vezes levanta do chão ou da mesa, objetos, gestos, rastros e movimentos cuja horizontalidade parecia ser sua posição natural. Na parede encontraremos misturadas a outras figuras, a sola dos pés (Meu peso ideal, 1989) (Figura 6), a terra, a água, a pista de carros (Transport École, 2006), (Figura 7), a batalha dos soldados (Esquema tático II, 2006), as figuras de coleção (Peixe, 1993), o campo demarcado, e outros. Inúmeras imagens e fragmentos de objetos que nos devolvem a consciência da força primeira que rege nosso corpo e, muitas vezes, as bases do desenho: a gravidade. Seria possível dizer que nos desenhos de Flávio Gonçalves a evocação do chão e a presença da terra nos remeteriam a um contato primordial de nosso corpo com o mundo circundante. Foi no chão, com os brinquedos espalhados à volta de nosso corpo, que experimentamos as possibilidades do jogo simbólico. E foi do chão que nos erguemos vitoriosamente.

 

 

 

Transport-école (2003-2006) (Figura 7) parece um bom exemplo. Nessa obra, o limite quadrangular do suporte é rompido e vê-se pistas de autorama abandonarem o chão espalhando-se pela parede. Aqui não são mais os carrinhos que trafegam em alta velocidade, mas sim nosso olhar que segue o percurso construído pelo artista. Por vezes estacionamos ao encontrar novas formas ou surpreendentes materiais. Andamos mais um pouco e a visão torna-se turva devido ao embaçamento imposto pelo papel vegetal. Feito neblina, o suposto suporte pula para a frente e a pista muda de tom. A sobreposição de transparências reais impossibilita a nitidez da imagem, criando espessuras e um vago mistério. Nosso olhar não apenas transita em movimentos paralelos à parede mas quer ver em profundidade. O artista joga com todas as nossas expectativas de sentido e direção. Como paisagem vista de topo ou apresentação diagramática o desenho nos faz refletir sobre nossos hábitos e as coordenadas que determinam nossa percepção de espaço.  

Transport-école (2003-2006) apresenta-se como uma charada e já no título Flávio provoca o espectador. Transport-école, em francês, – transporte-escolar na língua portuguesa – parece evocar, por semelhança de sons, o imperativo "Transporte e cole!", remetendo-nos, também, ao papier-collé: papel colado = colagem. Técnica, aliás, empregada na própria obra. Em outro sentido, transporte-escolar poderia ser relacionado tanto com a infância (o transporte coletivo), com o brinquedo (autorama-carro-transporte), quanto com o transporte de significação (Transporte e cole!). Mas existe ainda um outro deslocamento: o transporte do próprio documento de trabalho. Os fragmentos de pista, outrora pertencentes ao universo lúdico e, por vezes, representados no desenho, agora migram dos bastidores, do espaço de produção, para incorporarem-se à obra. Transformam-se em linhas, retas e curvas, ou simples retângulos.  

De forma exemplar, tanto o título como o trabalho condensam inúmeras operações, sendo que a lista de relações poderia ser, ainda, estendida. Em sua obra, títulos, figuras, imagens, matérias, gestos, escrita e materiais articulam-se constantemente. Nada é sobrante ou feito ao acaso. É do território da infância que Flávio retira a energia propulsora de seu trabalho e cria suas estratégias para falar sobre desenho. O estudo de seus documentos revela como se dá o início de um jogo cuja meta é discutir os mistérios do desejo de criação no qual, todos nós, nos vemos envolvidos.

 

Referências

Bosi, Ecléa. (1994) Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN 8571643938           [ Links ]

Corona, Marilice (2009) "Meus documentos: a casa e o espaço da memória." Revista Panorama Crítico. ISSN 1984-624X. Outubro, 2009. [Consult. 2012-27-12]. Disponível en URL: http://www.panoramacritico.com/003/docs/Panorama_Critico_003_Artigo_Marilice_Corona.pdf           [ Links ]

Gonçalves, Flávio R. (2000) Où se trouve le dessin?: une idée de dessin dans l'art contemporain. Tese de Doutorado em Poéticas Visuais. Université de Paris I, Panthéon Sorbonne, Paris.         [ Links ]  

Gonçalves, Flávio R. (2009) "Uma visão sobre os documentos de trabalho" Revista Panorama Crítico. ISSN 1984-624X. Ago/Set Disponível en URL: http://www.panoramacritico.com/002/docs/Panorama_Critico_002_Artigo_Flavio_Goncalves.pdf           [ Links ]

Harrison, Martin (2006) Francis Bacon: La chambre Noire: la photographie, le film et le travail du peintre. Paris: Actes Sud. ISBN 2742757287.         [ Links ]  

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: mvcorona@terra.com.br (Marilice Corona).

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