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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Projeções: significações poéticas em um lugar (uma prática plástica entre a alta e a baixa tecnologia da imagem)

Projections: Poetic significations in a place (an artistic experience between high and low image technology)

 

Eduardo Figueiredo Vieira da Cunha*

*Brasil, artista visual. Graduação em Desenho pela Universidade federal de Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestrado (MFA) pela City University, Nova York. Doutorado pela Universidade de Paris-1 Panthéon-Sorbonne. Afiliação actual: UFRGS – Instituto de Artes.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O artigo trata de uma intervenção artística em um lugar no litoral do Brasil, buscando salientar a ultrapassagem de uma etapa da evolução da tecnologia da imagem, da teatralização ao vídeo, onde o cinema não teve lugar. Ao analisar esse fato, busca-se uma relação entre o emprego de alta e baixa tecnologias na arte, e do princípio de projetividade da imagem.

Palavras-Chave: Projeção, sombras, fotografia, transporte e ficção.

 

 

ABSTRACT
This article conveys about an artistic experience in a place at the seashore of Brazil, where the technology of the image had a process of change in a different direction, from the dramatic art directly to the video, where the motion picture theatre was eclipsed. The analysis of high and low technology of the image and the principle of the projection are focused.

Keywords: Projection, shadow, photography, transport and fiction.

 

 

Introdução

A projetividade da imagem, fenômeno luminoso de transporte de uma imagem , e a passagem através de dispositivos ópticos a uma tela de projeção envolve questões que passam por ciências como a geometria, e pelo campo da arte e da ficção. A proposição da artista Elaine Tedesco, ligada ao Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e apresentada em sua tese ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da mesma Universidade consiste em interrogar as imagens imateriais das projeções cinematográficas e fotográficas. Em experiência realizada em um lugar na cidade de Mostardas, onde nunca houve uma sala de cinema, ela une o princípio projetivo de imagens fotográficas e em movimento à questão de lapso histórico do lugar a tal experiência. O objetivo é o de dramatizar a representação trazendo elementos históricos e ficcionais entre o passado e o presente do lugar.

 

1. O lugar

Um istmo, faixa de terra cercada pelo Atlântico e pela Lagoa dos Patos, é a condição que provocou durante muitos anos o isolamento do lugar. Isolados, principalmente nos longos períodos de inverno, os habitantes de Mostardas, a cerca de 250 km de Porto Alegre, aprenderam a conviver com essa condição de ilha. Durante muito tempo, a população originada de Açorianos no século XVIII viveu sem o acesso ao cinema. Se estes existiram alguma vez nos séculos XIX ou XX, foi graças a algum projecionista ambulante em viagem durante o verão. Antes disso, apenas o teatro representava à população o meio de viver experiências ficcionais, além da literatura.

O advento das novas formas de imagem e dos meios de comunicação modificaram a condição do lugar, assim como a maneira de viver do lugar. A tecnologia do vídeo, e mais tarde os dispositivos virtuais, fazem com que lá se observe um fenômeno raro no processo evolutivo das imagens: Um salto a uma etapa da evolução dos dispositivos da imagem óptica. O cinema, com toda a sua condição de magia de uma sala escura, é uma tela em branco na memória dessas pessoas, lembrado apenas no imaginário ou nos relatos de alguém que viajava a centros maiores.

Um questionamento sobre o princípio da projetividade da imagem aparece como interrogação nessa pesquisa. O facho de luz, seu percurso no espaço, sua desmaterialização na sala escura e sua reaparição na tela que o intercepta, é pura matéria de ficção. Sabemos que projeções e "lanternas mágicas" já eram bem conhecidas antes da invenção da fotografia, mas continuam a fascinar até hoje mesmo com o advento das tecnologias da imageml.

1.1 O paradoxo das sombras

O fenômeno projetivo não faz uma imagem, ainda que ele esteja presente nas etapas do cinema e fotografia. Mas seu uso traz um curto-circuito nas representações, conforme Alan Fleischer (Fleisher,1997:6). Surgia o novo veículo da imagem e da ficção, metáfora do pensamento e da imaginação. Era a encenação do desejo de ver o nosso destino em bola de cristal, ver passado e futuro. Sempre a partir da penumbra. Aventura que produz ficção, que etimologicamente significa acariciar, afagar e fingir. É o fio que une o profano e o sagrado. Como em histórias do imaginário do lugar.

Uma delas conta que os habitantes locais faziam um teatro de sombras nas dunas, lanternas mágicas de atrair navios como iscas em dias de mau tempo. Ao conduzir bodes sobre dunas, eles simulavam uma vila. Ao ver luzes e sombras projetadas, a tripulação em dificuldades nos dias de tempestade tentava se aproximar à procura de porto. Invariavelmente encalhava. Mal os marinheiros alcançam terra firme. nativos saqueiam a nau. Mas há um fato que ficou na história como A Questão Christie que de alguma maneira sustenta a lenda.

1.2 A Questão Christie

Em 2 de abril de 1861, o navio inglês Prince of Wales zarpou de Glassgow, na Escócia, carregado. Entre os dias 5 e 8 de junho, encalha em Mostardas. Enquanto os marinheiros buscam abrigo, o navio é saqueado. Ao ver o prejuízo, apresentam os ingleses reclamação ao seu embaixador no Brasil, William Christie, que a encaminha ao imperador Pedro II, com indenização. A resposta é negativa.

Christie contra-ataca: com pedido negado, a Inglaterra bloquearia a entrada da baía de Guanabara. A resposta do Brasil: a nação está pronta para a guerra. Em abril de 1862 a Inglaterra manda uma esquadra comandada pelo almirante Warner que bloqueia o porto de Rio Grande e exige o pagamento imediato de 3,2 mil libras. Enfurece-se a população: represálias são feitas os Ingleses no Brasil

As relações ficaram tensas, e passa-se a arbitragem a uma corte internacional. O rei Leopoldo, da Bélgica, tio da rainha Vitória, da Inglaterra, é nomeado julgador. Acreditando ser o veredicto contrário aos interesses nacionais, D. Pedro II paga antecipadamente. Ao tomar conhecimento de que os ingleses haviam perdido a causa .Pedro II passa a exigir a devolução do dinheiro. Não consegue.

As relações entre Brasil e Inglaterra só seriam restabelecidas dois anos mais tarde, diante de uma aliança na Guerra do Paraguai.

1.3 Camadas de significações do sublime

Em 2008, Tedesco apresenta uma tese intitulada Um processo de sobreposição no espaço urbano (Tedesco, 2008). Ela trata de sobreposições de projeções na arquitetura, intervenções com projeções de imagem sobre a paisagem onde o espaço público é um atelier aberto. Habitantes de Mostardas acompanham a ação da artista (Figuras 1 e 2; Figura 3; Figura 4).

 

 

 

 

A projeção consistia em uma espécie de ação luminosa que lança a imagem sobre arquitetura colonial da cidade, onde tinha anteparo, impregnando-o. O objetivo é o de provocar os espectadores, mudando os parâmetros do espaço físico. As estratégias da artista tem como referência as intervenções de Krzysztof Wodiczko (Wodiczko, 1995). A sobreposição no trabalho de Tedesco, possui caráter imaterial de memória, sobrepondo lugares e tempos que, segundo a artista, "sobrepunha recordação e esquecimento". São, para ela, "camadas de transparência que indicam diferentes espaços/tempo", resultando um amálgama entre as imagens que buscam relações entre imagem projetada e arquitetura de anteparo. Uma espécie de contaminação entre objetivo (imagem e arquitetura) e subjetivo (pensamento, imaginação).

1.4 O Aleph

Quantas vezes, ao entrar na sala com o filme já iniciado, ou ao ingressar no interior de um quarto escuro para trabalhar na revelação de fotografias, não se sente medo primitivo, da possibilidade de queda no escuro? Quantas vezes o cone de luz que se desprende da cabine de projeção de um cinema lembra o caleidoscópio, o Aleph de Borges? (Borges, 1975).

O Aleph é o conto de Jorge Luís Borges dos anos 40. Borges, sintomaticamente, usa seu próprio nome para o narrador. O contexto é a vida moderna de Buenos Aires. No meio disso, Borges joga uma luz alucinatória sobre o Aleph. O dispositivo em questão, uma esfera de vidro, um brinquedo, um caleidoscópio, encontra-se no escuro porão da casa de Beatriz Viterbo, que está prestes a ser demolida. A matriz emocional da história é o amor de Borges por Beatriz, já morta, e todo um trabalho de luto e sua conseqüente transformação em imagens. A superação do luto através do ato de representação e projeção de imagens.

A convite de Carlos Argentino, o primo de Beatriz, Borges visita a casa da amada. A criada o faz entrar, dizendo que tivesse a bondade de esperar. "O menino", diz ela ao se referir a anfitrião, "encontra-se como sempre no porão, revelando fotografias". Na pequena sala onde Borges espera, estão pendurados diversos retratos de Beatriz, como se fossem ex-votos: Beatriz menina, no dia do casamento, de perfil, frente, sorrindo. Este conjunto de pequenos fragmentos da amada faz com que Borges inicie um diálogo com Beatriz. Carlos Argentino aparece, e logo convida Borges para descer ao porão: "- Desce", diz ele. "Muito em breve poderás falar de verdade com todas as imagens de Beatriz".

Borges deita-se na escuridão e experimenta uma espécie de transe, de vertigem. Ele descreve o Aleph como uma pequena esfera de vidro onde os fragmentos de todo o espaço cósmico estavam presentes. Um ponto que une todos os pontos. Do cristal, um espelho, seriam projetados e unidos todos os fragmentos de imagens vistos por Borges: da América do Sul a Europa. Do oriente o ocidente. Da escuridão a possibilidade da iluminação eterna através da projeção.

 

Conclusão

Um texto de Beaudelaire chamado A moral dos brinquedos trata da dialética do jogo e da imagem. Ele fala da loja de brinquedos como um imenso mundo, espaço saturado onde "o teto desapareceria sob os brinquedos que eram estalactites maravilhosas". E fala desta experiência como um fenômeno originário para a arte: "a iniciação da criança à arte", escreve, "e ao conhecimento" (Baudelaire, 1975). Georges Didi-Hubermann retoma este tema, classificando as lanternas mágicas de instrumentos de procura pelo conhecimento: "O mundo dos brinquedos não teve por acaso um papel fundamental no desenvolvimento das artes das luzes e sombras que são o cinema e a fotografia?" (Didi-Hubermann, 2002) pergunta o autor.

A projeção possui história mal conhecida, de raízes na psicanálise, geometria, ótica e representação pictórica. Pojetar significa imaginar, premeditar, prever, expulsar, jogar, lançar. Designam atividades psíquicas e corporais. A criança que se projeta enquanto brinca. A projeção, quer cinematográfica ou de vídeo, requer penumbra. Como se a pureza do fenômeno artístico tivesse um oposto, um negativo. Um teatro de sombras. Seria esta a causa da projeção ser considerada através dos séculos como a arte da impostura, às luzes da moral e da religião? Impostura sempre foi o assunto predileto de Duchamp. A arte, ou a necessidade de projetar e criar imagem do mundo, também estaria próxima a idéia de impostura, de crime perfeito.

A verdade é que este mesmo princípio construtivo do calidoscópio, transformar os pequenos fragmentos em uma coleção de imagens, assim como uma fotografia, associada à outra pode, projetada, reconstruir um movimento no cinema, está também presente no lugar que a adere. Tudo isto remete ao trabalho realizado por Tedesco na cidade de Mostardas, e às idéias de Walter Benjamin (Benjamin, 1990), que associou o caleidoscópio à queda, numa experiência onde o sujeito se transforma em um brinquedo de seu próprio movimento. Há, logo depois, o surgimento de imagens projetadas, a cada passo renovadas, como se fosse um jogo físico com a própria queda. O resultado de tudo, mesmo misturando a alta tecnologia das imagens digitais com a mais primitiva tecnologia da lanterna mágica é a constituição de um conhecimento – ou até de uma sabedoria – que traz como conseqüência imediata um outro movimento – a vontade da criação em arte.

 

Referências

Baudelaire, Charles (1853/1975) Morale Du joujou Oeuvres Complétes. Paris: Gallimard, 1975.

Borges, Jorge Luis (1975) O Aleph. Porto Alegre: Editora Globo.

Didi-Hubermann, Georges (2000) Connaissance par Le Kaleidoscope. Études Photographiques n7, mai 2000, p.5. Paris, Societé Française de Photographie.

Fleisher, Alain (1997) Projection: les transports de l'image. Catálogo de exposição realizado em Le Fresnoy, Studio national dês arts contemporains, em 1997 e 1998, na França. Paris, Éditions Hazan/Le Fresnoy/AFFA.

Tedesco, Elaine (2009) Um processo de sobreposição no espaço urbano. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da UFRGS.

Tisseron, Serge (1998) Le Mystère de La Chambre Noire. Paris: Hazan.

Wodiczko, Krzysztof. (1995) Art Public, art critique: text, propos et documents. Paris: École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, p. 71.

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: ecunha@cpovo.net (Eduardo Figueiredo Vieira da Cunha).

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