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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Pedro Cabrita Reis: A Diferença da Repetição

Pedro Cabrita Reis: The Difference of Repetition

 

António Fernando Silva*

*Portugal, artista visual. Licenciatura Artes Plásticas - Pintura (Escola Superior de Belas Artes do Porto, ESBAP); Mestrado História da Arte (Faculdade de Letras da Universidade do Porto, FLUP). Afiliação actual: Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
No seu ensaio "Porquê Ler os Clássicos" Italo Calvino começa por afirmar que clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer "Estou a reler…" e nunca "Estou a ler…" (Calvino, 2009) Deste ponto de vista, o prefixo iterativo "Re" põe-nos na condição de ter havido já um antes e de se estar, agora, numa condição de repetição. Na coerência própria da obra de Pedro Cabrita Reis, o espectador é confrontado com objectos comuns, reconhecíveis, onde é possível descobrir o novo no conhecido e reconhecer, antes de conhecer.

Palavras chave: Contemporâneo, clássico, ordem, conhecimento, reconhecimento, criação.

 

 

ABSTRACT
In his essay "Why Read the Classics" Italo Calvino begins by stating that classics are books that usually hear "I'm rereading..." and never "I am reading..." (Calvino, 2009). From his point of view, the iterative prefix "Re" points to the idea that there has already been "a before" and so we find ourselves in a state of repetition. Within Pedro Cabrita Reis coherent work, the viewer is confronted with common, recognizable objects, being able to discover "the new" in the recognizable and recognize before knowing.

Keywords: Contemporary, classic, order, knowledge, recognition, creation

 

 

Introdução

Vivemos num tempo sem fulgurações, um tempo de repetição. (...) A ideia da repetição é o que permite ao presente alastrar[-se] ao passado e ao futuro, canibalizando-os (Santos, 2006).

Pedro Cabrita Reis desde a sua afirmação como artista, nos anos 80, constrói uma obra com os restos do desabamento do edifício das utopias estéticas e ideológicas do modernismo.

O contemporâneo, como um tempo que reúne todos os tempos, caracteriza-se pela acumulação e a síntese. É retrospectivo, enquanto o moderno era prospectivo (cf. Ardenne, 1997).

Para Agamben o contemporâneo possui "uma relação singular com o nosso próprio tempo, que a ele adere e dele se distancia em simultâneo," num jogo de coincidência que cega, ou de anacronismo que, porque se distancia, vê. Deste modo, há nesta atitude uma acção que se empreende e que falha, porque estar no ponto de fractura do tempo é o que nos possibilita estar e falhar, mas é também "o lugar de um encontro e de um confronto entre os tempos e as gerações" (Agamben, 2010).

Pretende-se indagar uma vontade clássica na obra de PCR, que afirma recolher a informação da contemporaneidade e a emoção, do tempo todo (cf. Almeida, 2008), através de um permanente deslumbramento do olhar, um olhar filosófico, que origina um processo de conhecimento que se organiza a partir de uma dimensão poética. A sua acção, coerente e programática, assenta num léxico vasto e ecléctico de formas e de múltiplos entendimentos que recuperam um passado pré-moderno, em que se incorpora um arcaísmo e a busca de um fôlego romântico para a criação (Pinharanda, 1999). Em toda a sua obra demanda o gesto fundador que ambiciona a unidade e procura o reencontro da harmonia primordial, procurando superar o sentimento de perda através de um trabalho de construção da beleza, numa busca de uma cosmogonia própria e primordial que procura um lugar para o Homem no mundo.

 

Estranheza e conhecimento

No seu ensaio Porquê Ler os Clássicos Italo Calvino começa por afirmar que "clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer 'Estou a reler…' e nunca 'Estou a ler…'" (Calvino, 2009). Deste ponto de vista, o prefixo iterativo Re põe-nos na condição de ter havido já um antes e de se estar, agora, numa condição de repetição.

Na coerência própria da obra de Pedro Cabrita Reis, o espectador é continuamente confrontado com objectos comuns, reconhecíveis, que se apresentam, contudo, num corpus de obra orgânico, físico e poético. Esse é, no entanto, um reconhecimento que provoca ao mesmo tempo uma estranheza. Esta tensão, produzida pela obra, entre o que se conhece e o que, simultaneamente, surge como estranho, pode constituir-se como uma possibilidade de encontro facultando "dar forma às experiências futuras, fornecendo modelos, conteúdos, termos de comparação, (...) paradigmas de beleza" (Calvino, 2009).

É uma obra que se alimenta da matéria do mundo, sem contudo procurar uma estetização dos materiais, humildes e simples que transportam e afirmam um sentido originário. Os lugares que constrói têm uma depurada linguagem e a sua construção mobiliza arqueologias do quotidiano que se organizam numa tensão entre mistério e revelação, luz e sombra, obscuridade e transparência. A partir de restos constrói uma arte que busca o que é vital (Figura 1; Figura 2; Figura 3).

 

 

 

 

O primeiro corpo que os lugares que constrói abrigam é o seu e cada obra revela sempre uma espessura e uma marca autoral que é, simultaneamente, a do construtor.

Decifra o trabalho realizado no espaço, mede-o, mapeia-o, passando os objectos criados a terem uma presença, uma lógica interna, passível de transmitir um conhecimento não racionalizável e onde a marca da mão é deixada como uma abertura para uma subjectividade que se mantém secreta e misteriosa.

E, assim, cada trabalho seu constitui-se menos como obra e mais como processo de descoberta e de ordenação contínua.

Deste modo o seu trabalho revela uma acção de rigor e de equilíbrio, exercendo "uma influência especial (…) mimetizando-se em inconsciente colectivo ou individual" (Calvino, 2009) abrindo-se a novas leituras e a novas descobertas, porque sempre incompleto.

Cabrita Reis "transfere a questão da 'assemblage' dos materiais para os processos de construção e para um discurso poético que encontra algumas das suas principais referências numa história íntima e pessoal" (Hegyi e Todolí, 1999) onde é possível admitir essa qualidade que cada releitura oferece como primeira descoberta, abrindo um novo modo de ver o já olhado e, pelo sentido da composição da obra que transmuta os materiais, possibilita que a primeira leitura seja já uma releitura, por oferecer um reconhecimento, que se constitui como um rumor de continuidade no tempo.

Organiza, assim, metáforas a partir de arquétipos colectivos. Daí a casa ser fulcral na sua obra. Esta é erigida como um segundo corpo a partir do qual o Homem pode situar-se no mundo. Por isso constrói unidades mínimas, lugares favoritos, em que a marca do corpo, do seu corpo, ao dar forma à construção, ao conferir-lhe uma dimensão antropométrica, incorpora também uma dimensão antropológica.

Nunca as obras de Cabrita Reis se apresentam como evidências ilustrativas. Na sua natureza, ocultação e revelação caminham a par sugerindo mais que impondo. Assim, é possível descobrir o novo no conhecido e reconhecer, antes de conhecer. Contudo este reconhecimento não retira o mistério à obra, antes o adensa.

O espectador é confrontado com uma estranha familiaridade e o autor expõe, assim, a possibilidade de ter um cúmplice que complete a poética ou que consiga incorporar novos modos de ver. Como o próprio afirma:

Um dos meus anseios mais profundos é que, após verem uma coisa minha, as pessoas identifiquem a realidade através dos meus trabalhos. Isto é, vêem a escada, o Posto de Observação, vêem a Catedral e, depois, ao passarem por um prédio em construção numa colina, não poderão jamais desligar-se do que viram. A arte, se se pretende como meio ou instrumento para expandir a inteligência ou a percepção do mundo, tem aqui uma função unificadora (Cabrita Reis, 2000).

Este convite à unificação com o acto de criação pode estender-se, também, aos seus pares no sentido em que Walter Benjamin afirmava que:

É decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de, em primeiro lugar, levar outros produtores à produção e, em segundo lugar, pôr à sua disposição um aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais consumidores levar à produção, numa palavra, quanto melhor for capaz de transformar os leitores ou espectadores em colaboradores (Benjamin, 2006).

 

Conclusão

Neste jogo de construção-desconstrução abstrai sem, contudo, isolar. Os lugares que constrói, porque reconhecíveis, admitem e convocam o espectador a apropriar-se da obra através de um pensamento corporal e a tornar-se parte da construção e, também, construtor. Nesse processo de apropriação completa a obra e aproxima-se da acção criativa potenciada pela simplicidade, reconhecida, dos processos.

A construção a partir de ferro-velho poético (cf. Rimbaud), organiza o caos numa vontade de ordem cosmogónica. As obras, transformadas em totalidades, abrem-se a uma compreensão só alcançável por via da iluminação poética. A sua obra não duplica o mundo mas reorganiza-o e reconstitui-o a partir de um acto originário de criação que revela e partilha, na própria obra, os meios da sua produção (cf. Benjamin, 2006). Faculta, assim, ao espectador não só reconhecer mas identificar o potencial de conseguir fazer. Ao expor a obra e os seus processos oferece, também, a condição de liberdade da criação.

Esta capacidade de usufruir dos materiais e objectos comuns revela um optimismo do olhar devolvido pelo acto construtivo que dá a ver uma beleza erigida contra a natureza. A consciência de separação, de perda e afastamento da natureza que não se domina, tem no trabalho de construção, porque se desenvolve no tempo, uma possibilidade de re-ligação. Através do trabalho, em que a pintura é a matriz a partir do qual exerce uma inteligência que produz conhecimento do mundo e sobre o mundo adoptando o modelo da poesia como instância superior, o pensamento materializa-se. Ao ganhar uma dimensão de imobilidade a arte erige-se "no tempo e contra o tempo" (Steiner, 1992) e configura-se "como equivalente ao universo, tal como os antigos talismãs," numa ideia de obra total (Calvino, 2009).

Combina memórias e gestos de acções da vida quotidiana, que acentuam a força metafórica das suas obras como uma viagem que olha o lado obscuro das cidades dando a ver as suas construções inacabadas, os seus despojos e acumulações. Construções simples para as quais olha, reconhecendo nelas uma linhagem e um gesto fundador porque, por mais simples e efémeras, se constituem como unidades mínimas de espaço, de abrigo, que aliam o trabalho e o engenho. Assim, cada obra de PCR pode ser uma homenagem e a partilha de uma visão, que é a marca do autor transformada em dádiva que reconhece e se inscreve numa genealogia de construtores, questionando incessantemente o lugar onde está.

Desta forma aproxima-se duma noção de clássico porque, no ritmo de vida actual que "não reconhece tempos longos, nem a respiração do Otium humanista" (Calvino, 2009) consegue criar ao ritmo do respirar combinando, nas suas obras, a actualidade, quer como ruído de fundo quer construindo, com as ruínas dessa actualidade, um tempo que persiste para além dele (durée), arriscando uma construção que sintetiza o passado e inventa o futuro.

 

Referências

Agamben, Giorgio (2010) Nudez. Lisboa: Relógio d’Água. p.20.         [ Links ]

Almeida, Marta Moreira de; Moura, Eduardo Souto; Seabra, Augusto M. [et al.] (2008) "Uma conversa no campo, entrevista conduzida por Augusto M. Seabra e Eduardo Souto Moura," in Pedro Cabrita Reis: colecções privadas. Tavira: Câmara Municipal, pp.79-126.         [ Links ]

Ardenne, Paul (1997) L'Âge Contemporain, Une Histoire des arts plastiques à la fin du XXe siècle. Paris: Éditions du Regard.         [ Links ]

Benjamin, Walter (2006) "O Autor como produtor" in A Modernidade. Lisboa: Assírio & Alvim. pp. 287-288.         [ Links ]

Calvino, Italo (2009) Porquê ler os clássicos– Lisboa: Teorema.         [ Links ]

Hegyi, Lóránd & Todolí, Vicente (1999) Pedro Cabrita Reis. Milão: Charta / Museum Moderner Kunst Stiftung Wien / Museu Serralves.         [ Links ]

Pinharanda, João (1999) "O Artista no Centro do Mundo". Público, 19 de Novembro.         [ Links ]

Reis, Pedro Cabrita (2000) "Realidades utópicas" [entrevista conduzida por José Sousa Machado] in Arte Ibérica. Nº 32 (Fevereiro), pp. 68-74.         [ Links ]

Reis, Pedro Cabrita (2011) One after another, a few silent steps. Catálogo. Museu Colecção Berardo 4 de Julho - 02 de Outubro de 2011.         [ Links ]

Santos, Boaventura Sousa (2006) A Gramática do Tempo, para uma nova cultura política. Porto: Edições Afrontamento.         [ Links ]

Steiner, George (1992) No Castelo do Barba Azul. Algumas Notas para a Redefinição da Cultura. Lisboa. Relógio d’ Água.         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico:afsilva@ese.ipp.pt (António Fernando Silva).

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