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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Obra cerâmica de João Carqueijeiro: Expressividade matérica evocadora de uma vitalidade primogénita

João Carqueijeiro's ceramic art work: Physical expressivity that evokes a primal vitality

 

Teresa Almeida* & João Cunha e Costa**

*Teresa Almeida: Portugal, artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas Pintura, FBAUP. Master of Arts /Glass, University of Sunderland, UK e Doutoramento em Estudos de Arte, Universidade de Aveiro, Departamento de Comunicação e Arte. Investigadora no i2ads, Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e no VICARTE (Vidro e Cerâmica para as Artes) FCT/UNL.

**João Cunha e Costa: Portugal, artista visual. Licenciatura em Design de Interiores pela ESAD e Mestrado em Escultura pela FBAUP. Unidade de Investigação I2ADS, Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Os materiais geológicos são a matéria-prima da cerâmica e os respectivos processos de transformação piroplástica são análogos aos fenómenos que originam as rochas ígneas. A relação entre geologia e cerâmica é uma relação umbilical e a cerâmica contemporânea tem reflectido esse facto em termos estéticos, como é o caso da obra cerâmica de João Carqueijeiro que este trabalho apresenta.

Palavras-chave: João Carqueijeiro, cerâmica, matéria e fenomenologia geológicas, carácter estético.

 

 

ABSTRACT
The geologic materials are the raw material of ceramics and its transformation into ceramic material by heat treatment is analogous to geological phenomena that create igneous rocks. Geology and ceramics has an umbilical relation and contemporary ceramics has reflected this fact in aesthetic terms, as it is the case of the ceramic work of João Carqueijeiro that this work presents.

Keywords: João Carqueijeiro, ceramics, geological materials and phenomena, aesthetic caracter.

 

 

Introdução

Este trabalho apresenta uma selecção da obra cerâmica de João Carqueijeiro, que se destaca pela forte expressividade matérica (Vivas, 2011), evocadora da energia telúrica contida nos materiais manipulados. A relação entre cerâmica e matéria geológica é salientada, promovendo assim, o questionamento dessa relação.  

João Carqueijeiro nasceu em Angola em 1954 e conclui o Curso Superior de Desenho na Cooperativa Árvore no Porto em 1982, sob orientação de Sá Nogueira. O seu currículo é extenso e prestigioso (Carqueijeiro, 2013), tendo o seu trabalho ganho um lugar de destaque no panorama da escultura cerâmica portuguesa.  

O trabalho cerâmico deste artista é marcado pela intensão de potenciar, em termos estéticos, a vitalidade de que tão humilde matéria é portadora, A matéria cerâmica não é, neste caso, exclusivamente um meio de representação, que deverá recolher-se e quase anular-se debaixo dos significados projectados, pois referencia a sua origem e, sendo assim, referencia-se a si mesma. Material e representação coincidem, colocando o primeiro no centro da cena.  

 

1. Construção de uma identidade artística  

Vários factores participaram na construção da identidade do trabalho artístico de Carqueijeiro.  

Antes de mais a sua biografia com o seu início de vida em África, cuja vivência proporcionou a experiencia das imensidões geográficas, características da savana africana, vazias de sinais de presença humana, mas habitadas e preenchidas pela natureza selvagem, sedutora e desafiante.  

Carqueijeiro iniciou a sua actividade artística no início da década de 80, época em que se destacava o trabalho escultórico de Alberto Carneiro (1937- ) no contexto da arte no Porto, que foi uma influência marcante, nomeadamente, ao referenciar a sua experiencia pessoal da natureza e dos materiais como uma fonte essencial do seu trabalho (Melo, 1991).  

Ainda na mesma época, Carqueijeiro conhece e explora as práticas cerâmicas do Raku. Esta técnica de origem japonesa foi muito transformada pelo norte-americano Paul Soldner (1921-2011), que, no final da década de 60, alargou as possibilidades expressivas envolvidas (Wall, 2003: 163). O enquadramento conceptual associado valoriza a informalidade, o "acidente" e um tipo de expressividade que tem a natureza como referencia não mimética, mas processual.  

Referência essencial é também o trabalho em cerâmica de Peter Voulkos (1924-2002) caracterizado pela espontaneidade do gesto e pelo informalismo conotado com os pintores da Abstracção Expressionista (Préaud e Gauthier, 1982 : 194).  

O percurso do artista são essenciais para a definição da identidade única do seu trabalho e refiro a familiaridade com os materiais e com os respectivos processos de transformação, a sistemática atitude experimentalista, a ousadia que motivou a adopção de escalas grandes, assim como, a forma como explorou a relação entre cerâmica e a geologia e cito o próprio:  

A matéria geológica, é de facto, um ponto de partida para pensar o meu trabalho. O próprio material é por si uma referência predominante do que são os resultados finais e de uma forma mais alargada, referencia o solo e a geografia que se habita. O facto do próprio material ser a referência essencial trás o processo de realização para o centro do processo criativo (Carqueijeiro, 2011).

 

2. A matéria e a fenomenologia geológicas como referência estética  

Já em 1987, uma das peças que Carqueijeiro apresenta no âmbito do Symposium Internacional de Cerâmica de Alcobaça (Figura 1), referencia os processos de estratificação geológica, de forma clara, demonstrando a direcção que o seu trabalho tomava.

 

 

Carqueijeiro, que se deixava encantar pelas pedras que recolhia nos seus passeios a pé, por intuição, experimentou submetê-las a cozeduras de alta temperatura. Começou a olhar para os materiais geológicos que o rodeavam enquanto possibilidades cerâmicas e descobre empiricamente o expressivo comportamento piroplástico da ardósia, ou o mais problemático comportamento do granito. O autor trabalhava no concelho de Gondomar onde estes materiais geológicos são abundantes. Proporcionou-se um frutuoso cruzamento entre a práctica profissional e o espaço que se habita, transformando significativamente, a práctica profissional.  

No final dos anos 80 e início dos 90 ensaia a combinação destes materiais com as pastas cerâmicas (Figura 2 e Figura 3).

 

 

 

Foi o comportamento piroplástico da ardósia e não o do granito, que o interessou mais, tornando-se naturalmente, numa das marcas mais fortes do trabalho deste artista (Pernes, 1991), pela forma como configurou boas respostas às suas intensões e ao desenvolvimento do que já era a sua característica linguagem plástica. Este material apresenta uma expressividade que nos espanta, enquanto afirmação de vitalismo (Costa, Almeida & Gomes, 2012).  

Para além, da sua combinação com pastas cerâmicas de diferentes cores, outras possibilidades foram sendo exploradas com bons resultados expressivos como demonstra a Figura 4.

 

 

Nesta peça, a ardósia depois de ser piroexpandida foi serrada no seu topo e trabalhada, ficando exposta a sua massa interior, que é de características muito diferentes da sua pele exterior. O interior é caracterizado pelo coração preto e pela estrutura esponjosa, enquanto a pele é uma camada resistente de matéria vitrificada de cor ferrosa. O estriado com que foi marcada a superficie que resultou do corte encontra alguma correspondencia na restante textura da ardósia piroexpandida, proporcionando-se um contraste de superfícies bem articulado com a própria forma.  

Por outro lado, o pé da peça é um bloco de ardósia, associando o material original e o material transformado. O bloco de ardósia não tem aqui uma função eminentemente utilitária como suporte para ardósia piroexpandida, o que é confirmado pelas irregularidades e marcas que apresenta. Assim, assume-se como presença expressiva de caracter simbólico, pois é nesses termos que os dois materiais estão aqui associados.  

"Deambulatório" (Figura 5), que foi apresentada na XIV Bienal de Cerveira em 2007, é a obra deste artista onde a referencia à matéria e à fenomenologia geológica ganha uma maior densidade e plenitude.

 

 

Esta obra composta por sete peças, de configuração totémica, referencia claramente os materiais geológicos e vários tipos de fenómenos deste teor.  

As partes em cerâmica de pastas de diferentes cores parecem resultar de fenómenos geológicos de caracter ciclíco, como são a sedimentação e compactação de diferentes materiais, como se expressassem a variação dos anos e a sua passagem, tal como acontece com a ardósia. Mas a sua forma cónica e a sua coloração por finas camadas irregulares de contrastes fortes, indiciam o movimento de rotação em simultâneo com o movimento de atracção ao centro, como a sua origem.  

A ardósia piroexpandida, cuja expressão aproxima-se da do magma arrefecido, reflectindo as temperaturas elevadas a que foi submetida, refere o vulcanismo (Figura 6). Ao ser colocada ao centro entre os dois referidos elementos, parece ser o resultado da pressão excessiva, exercida pelos referidos elementos de cerâmica e pela força que também os pressiona.

 

 

No centro da peça, a matéria extravasa e ganha o caracter da informalidade dispersante e libertadora da energia contida, em contraste com as partes superior e inferior, onde a matéria está fortemente aglutinada em torno do eixo vertical e confluindo para o centro. A ardósia piroexpandida torna-se o foco visual desta peça pela sua posição, pelas suas características, mas também pela sua conjugação com os restantes elementos, pois asume-se como o fulcro congregador e desagragador da energia de caracter físico que esta peça evoca de forma muito efectiva. Poderiamos chamar-lhe vórtice.  

A sua escala, claramente superior à escala humana com o seu topo superior a 2.70 metros de altura, amplia a potencia expressiva, superando-nos em termos simbólicos.  

Sem pretender ser mimética, parece referir-se ao nosso planeta, enquanto geodinâmica o que é reforçado pela sua colocação em suspenção, que lhe confere uma qualidade de autonomia dinâmica liberta da força da gravidade. Refere-se ao fenómeno geológico como algo de actuante, vivo.  

A multiplicação por sete desta forma e a sua distribuição pelo espaço, aumenta exponencialmente a dimensão da obra, configurando-se como um teatro onde se representa um sistema de corpos celestes em permanente movimento e interligados entre si.  

Esta obra foi titulada. O título, Deambulatório, apresenta-se como um convite para caminharmos à volta e entre as peças, concretizando, assim o movimento que estas sugerem.  

Carqueijeiro continua a explorar outras possibilidades expressivas da ardósia piroexpandida, nomeadamente, através da aplicação de vidrados e engobes, assim como, de inclusões de pastas cerâmicas, Esperamos para breve a apresentação de obras que reflictam estas novas direcções.  

 

Conclusões  

Os materiais geológicos são a matéria-prima da cerâmica e a sua transformação em matéria cerâmica por tratamento térmico é análogo aos fenómenos geológicos que originam as rochas ígneas.  

A casualidade dos fenómenos geológicos encontra paralelismo na teleológica intervenção humana no que diz respeito à matéria e aos processos. Em vez de rochas de caracter informal temos objectos de caracter utilitário e/ou simbólico, com características formais definidas adequadamente aos seus fins.  

Estes dois termos, rocha e objecto, contrapõem-se e parece que se excluem mutuamente, no âmbito da dicotomia natureza e cultura. O trabalho de Carqueijeiro baralha os dois termos, questionando a referida dicotomia. Não são imagens da natureza, mas são os seus processos. Mais do que parecer, pretendem ser como a natureza. Mais do que o seu domínio, é a consciência desta, o que é posto em perspectiva.  

A utilização da matéria e da fenomenologia geológicas como referência estética no âmbito da produção artística cerâmica, religa a cerâmica à sua origem, afirmando e questionando a sua natureza.  

 

Referências  

Carqueijeiro, João (2011); Entrevista realizada a João Carqueijeiro por João C. Costa em 28-9-2011, não publicada.         [ Links ]  

Costa, João C.; Almeida, Teresa; Gomes, Celso S. F. (2012) ; Uma relação operacional entre Arte e Ciência: As rochas xistosas piroexpandidas; Actas da ARTECH 2012, 6th International Conference on Digital Arts, decorrido em 8 e 9 de Novembro de 2012 em Faro. (Costa, Almeida e Gomes, 2012)           [ Links ]

Flickr (2011a) Galeria de João Carqueijeiro [Consult. 2012 1 13] Fotografia. Disponível em URL: http://www.flickr.com/photos/joaocarqueijeiro/6039982101/           [ Links ]

Flickr, (2011b) Galeria de João Carqueijeiro [Consult. 2012 1 13], fotografia disponível em URL: http://www.flickr.com/photos/joaocarqueijeiro/6039981843/           [ Links ]

Flickr, (2011c) Galeria de João Carqueijeiro [Consult. 2012 1 13], fotografia disponível em URL: http://www.flickr.com/photos/joaocarqueijeiro/6043773997/           [ Links ]

Flickr, (2011d) Galeria de João Carqueijeiro [Consult. 2012 1 13], fotografia disponível em URL: http://www.flickr.com/photos/joaocarqueijeiro/6044325034/           [ Links ]

Flickr, (2011e) Galeria de João Carqueijeiro [Consult. 2012 1 13], fotografia disponível em URL: http://www.flickr.com/photos/joaocarqueijeiro/6060134367/           [ Links ]

João Carqueijeiro; Curriculo;, [Consult. 2013 1 13], disponível em URL: http://www.joaocarqueijeiro.com/artista.html           [ Links ]

Melo, Alexandre (2003) in catálogo da exposição na Porta 33 e no Museu de Arte Contemporânea do Funchal, Alberto Carneiro, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2003; [Consult. 2013 1 13], disponível em URL: http://www.porta33.com/old/exposicoes/ac/tcatp.html           [ Links ]

Pernes, Fernando (1991) João Carqueijeiro – Obra Cerâmica; [Consult. 2013 1 13], disponível em URL: http://www.joaocarqueijeiro.com/obra-ceracircmica.html           [ Links ]

Préaud, Tamara; Gauthier, Serge (1982) La ceramique: Art du siécle XX, Freibourg, Office du Livre SA. 194           [ Links ]

Vivas, António (2011) "Escultura cerâmica Hoje – 5 Autores Portugueses."; in Revista Cerâmica, n. 121, Madrid; apud [Consult. 2013-1-13], disponível em URL: http://sofiabeca.blogspot.pt/2011/07/escultura-ceramica-hoje-5-autores.html           [ Links ]

Wall, Edmund de (2003) 20th century ceramics; col. World of art, London, Thames and Hudson, 163.         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: talmeida@fba.up.pt (Teresa Almeida).

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