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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

EXPANSÕES

EXPANSIONS

Pedro Saraiva: vidas de papel O artista como significante

Pedro Saraiva: lifes of paper

 

Maria João Gamito*

* Portugal, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e Departamento de Arquitectura e Urbanismo do Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE-IUL. Licenciatura em Pintura (Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, ESBAL), agregação em Pintura pela ESBAL, agregação em Teoria da Imagem (FBAUL).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
Adoptando como argumentos o conceito de traço, entendido como significante que arrasta uma ausência, e o neologismo biografema, proposto por Roland Barthes para designar os traços biográficos construtores de ‘uma vida com espaços vazios’, pretende-se determinar como nos livros de artista de Pedro Saraiva o livro é o artista repetidamente editado num irredutível e fragmentário significante.

Palavras chave: artista, biografema, livro de artista, significante, traço.

 

ABSTRACT:
Adopting as arguments the concept of trace, understood as significant that drags an absence, and the neologism biographema proposed by Roland Barthes to describe the biographical features constructors of ‘a life with empty spaces’, we aim to determine how, in the artist’s books of Pedro Saraiva the book is the artist repeatedly edited in a irreducible and fragmentary significant.

Keywords: artist, biographema, artist’s book, significant, trace.

 

 

Livros de artista

Desenhar, desenhar tudo a lápiz, o modelo não vai estar presente na próxima sessão. Gostava de saber desenhar como os outros e como o Alves (é um aldrabão).

(Saraiva, 2009, n.p.)

Um arquiteto, um desenhador topógrafo, um médico e um vigilante de museu. Quatro livros de artista e Pedro Saraiva.

Quatro livros de artista e a notícia breve de quatro vidas desenhadas nos traços que brevemente as grafam como acontecimento. Se o traço é a marca deixada num suporte pelo gesto que traça e se ausentou, traçar é também esboçar e compor a passagem de alguém e a sua trajetória com a evidência do que existe, como vestígio evidente do que existiu ou como traço-síntese das operações que inauguram uma existência.

Pedro Saraiva é o autor desses traçados que sob a forma de narrativas também para ver, porque a evidência nada mais é do que pôr diante dos olhos, fixam os significantes que fazem acontecer os artistas numa sucessão de biografemas que, para Barthes, são os traços biográficos descontínuos, particularizados, dispersos, construtores de ‘uma vida com espaços vazios’. É neste sentido que, a partir dos conceitos de traço e de biografema, se determinará como nos livros de artista de Pedro Saraiva, o livro e o artista se confundem nas suas múltiplas e intermináveis edições porque ele sabe que o significante, como o modelo de que se constitui o referente, será sempre outro na próxima sessão.

 

Vidas de papel

Esse lápis que não larga o papel.

(Saraiva, 2009, n.p.)

Manuel dos Prazeres Dias Linares (Figura 1) nasce em Santa Marta de Penaguião no dia 24 de Agosto de 1898. Diplomado em Arquitetura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, em 1927 ingressa nos Serviços Técnicos da Câmara Municipal de Lisboa onde cessa funções em 1933 para trabalhar num ateliê de arquitetura. Em 1940 colabora nos projetos de arquitetura de interiores para a Exposição do Mundo Português. No ano seguinte lecciona no ensino técnico oficial mas por motivos políticos e na sequência da sua detenção pela PVDE é exonerado em 1945. Participa nas I e V Exposições Gerais de Artes Plásticas promovidas pela SNBA. Em 1948 viaja para S. Tomé onde trabalha com o desenhador António Maria Codina. De regresso a Lisboa em 1949, participa com o escultor Max Rog no concurso de maquetas para o monumento ao Cristo-Rei em Almada. Entre 1954 e 1960 trabalha como arquiteto, em Angola, de onde regressa fixando residência na sua terra natal. Casado e pai de cinco filhos, morre em Lisboa, com 70 anos de idade. Do seu espólio constam muitas fotografias, quase sempre acompanhadas de observações e memorandos, centenas de notas em papéis dispersos, algumas maquetas de casas coloniais e desenhos de grandes dimensões onde vagas estruturas arquitectónicas obsessivamente desenhadas e sempre em ruínas são traçadas nos pequenos gestos de uma imensa trama de tinta preta sobre papel vegetal.

 

 

António Maria Codina (Figura 2) nasce no concelho de Mafra no dia 30 de Julho de 1896. Conclui os estudos na Escola Normal Superior de Lisboa, vindo a trabalhar como desenhador no Jardim Museu Agrícola Tropical. Devido a uma grave depressão é internado em 1923 no Hospital de Rilhafoles onde contacta com o poeta Ângelo de Lima. Em 1930 desloca-se a Cabo Verde onde acumula a profissão de topógrafo com a de desenhador de Botânica. Em 1938 viaja para S. Tomé para desenhar a flora endémica da ilha, participando cumulativamente em diversos levantamentos topográficos. Em 1948 conhece o arquiteto Manuel Linares com quem vem a trabalhar. Morre, vítima de paludismo, com 58 anos de idade. Do seu espólio constam fotografias pessoais e de trabalho, muitas páginas compactas de anotações em torno dos conceitos de atlas, inventário, gabinete, espécies botânicas, expedições, genealogias (talvez a sua), sistematicamente interrompidas por pequenos apontamentos gráficos – retículas, colagens e linhas cosidas como diagramas – e desenhos de grandes dimensões, modelados em tramas de tinta preta sobre papel, que se montam como um gigantesco puzzle sempre diferente.

 

 

Manoel Celestino Alves (Figura 3), mais conhecido por Dr. Cambedo, o nome da aldeia onde nasceu no dia 20 de Setembro de 1912, licencia-se em Medicina pela Faculdade de Medicina de Lisboa, onde vem a leccionar no ano lectivo de 1939/1940. Em 1943 é cirurgião anatomista no Hospital de S. José em Lisboa. Em 1945 é preso pela PIDE e condenado a 18 meses de prisão na cadeia do Aljube em Lisboa. Em 1947 parte para S. Tomé onde, em 1948, abre consultório. Um ano mais tarde conhece o arquiteto Manuel Linares e o desenhador António Maria Codina com quem passa a conviver. Em 1950 fecha o consultório e passa a exercer medicina no Hospital Central de S. Tomé e na roça Rio d’Ouro. Em 1952 regressa a Lisboa, mantendo correspondência com Manuel Linares e António Maria Codina. Em 1955, por sugestão de Linares, frequenta o atelier do escultor Max Rog para aperfeiçoar o desenho de figura humana útil ao seu desempenho como anatomista. Em 1962 trabalha no Arquivo de Anatomia e Antropologia e em 1965 vai viver com a família para Beja onde abre consultório, passando a colaborar regularmente na revista Correio Médico. Em 1969 participa, pelo círculo de Beja, na campanha do CDE para as eleições legislativas. Em 1976 deixa de exercer medicina, dedicando-se ao Desenho a tempo inteiro. Casado e pai de dois filhos, morre cego em Beja, com 78 anos de idade. Do seu espólio constam fotografias pessoais e de acontecimentos da época, instrumentos e material hospitalar, radiografias, um precário modelo anatómico, relicários que contêm a simulação das matérias do corpo, desenhos e pequenos apontamentos de figura humana em poses académicas e muitos volumes embrulhados em imaculadas folhas brancas ainda por abrir.

 

 

Alberto Maria de Oliveira Bárcea (Figura 4) nasce em Lisboa no dia 30 de Novembro de 1908. Concluída a instrução primária, em 1920 inicia o ofício de aprendiz de tipógrafo, profissão a que se dedicou até 1908, data em que passa a trabalhar como paquete no jornal O Século. Em 1931 conhece Manoel Celestino Alves. Em 1935, é contratado como vigilante do museu da Fundação Tavares Leite, em Lisboa. Em 1940, acumula funções de vigilante na Exposição do Mundo Português. Em 1945 inscreve-se nas aulas de desenho do Círculo Artístico e Cultural Mário Augusto, participando na exposição anual promovida por essa colectividade. Depois de lhe ter sido diagnosticado um grave problema pulmonar, aposenta-se em 1970, decidido a aproveitar o tempo que lhe resta para viajar. Viúvo, pai de três filhas e avô de um neto, morre em viagem de recreio para a Madeira no naufrágio do navio Orion, com 70 anos de idade. Do seu espólio constam fotografias pessoais e de acontecimentos da época, recortes de jornais e de revistas, vários números do Século Ilustrado, alguns exemplares de literatura de cordel, fichas de inventário, cartões de visita, muitos lápis de grafite toscamente afiados, documentos oficiais e folhas dispersas dos cadernos de um diário profusamente ilustrado.

 

 

Nomes que identificam os retratos. Caligrafias que laboriosamente traçam os caprichos da memória que nasce na escrita das palavras. Desenhos eruditamente inscritos no ofício e nos artifícios do Desenho. Fotografias de pessoas, coisas e lugares que traçam perfis e semelhanças fazendo deslizar os significantes para melhor inventar o mundo em que nos reconhecemos. Tudo isso em discretas alusões à vida do autor, às vidas que ficaram para a história e às vidas que consubstanciam as estórias, num incessante viver entre a realidade e a ficção.

O livro de artista delega no seu autor todas as operações da sua construção, desde a recolha, apropriação, seleção e manipulação dos materiais, à composição, paginação e, muitas vezes, edição. Os livros de artista de Pedro Saraiva nele delegam também o plano de uma obra em que as múltiplas narrativas de um tempo histórico comum e de encontros ocasionais entre os artistas que os habitam são sustentadas pela presença de desenhos preciosamente trabalhados nos seus percursos pela paisagem, pela figura humana ou pela natureza-morta. E se são estes desenhos que edificam um sistema de relações solidárias entre os artistas, ao qual não é alheio o conceito de coleção e o de penumbrosa intimidade que lhe está associado, é do traçado das suas vidas com espaços vazios, como diz Barthes, que eles nos chegam como significantes de vidas abertas à espacialidade dos desenhos e ao espaço tocado pelas palavras e ocupado pelas letras ou pelo vazio que as aguarda.

Simultaneamente sinal de um aparecimento e de uma dissolução, os nomes conservarão sempre traços dos rostos que vêm de vidas anteriores e nos seus espaços vazios, como gabinetes prestes a serem ocupados por novas coleções ou como molduras prontas a cercar um novo rosto (Figura 5), outros toques e outros vestígios surgirão, tão significantes de obras por vir como os artistas que eles arrastarão, uns e outros traços dos quais se tentarão deduzir factos. Mas, como escreve Borges, "não falemos de factos. Já ninguém liga aos factos. São meros pontos de partida para a invenção e o raciocínio." (Borges, 1994, p. 99). E assim interminavelmente porque sabemos que esses artistas, as pessoas, as coisas e os lugares que com eles convivem, para existir precisam apenas daquele lápis que não larga o papel.

 

 

O artista como significante

Hoje, 30 de Novembro recebi como prenda um desenho do Saraiva e outro do Manoel Alves assim que puder vou ao Bastos do Bairro Alto mandá-los emoldurar.

(Saraiva, 2009, n.p.)

É Alberto Bárcea que escreve ter recebido os desenhos. Mesmo sem os ver adivinha-se que o de Manoel Alves representa uma cabeça ou uma figura humana. É mais difícil prever qual terá sido o do Saraiva, esse apelido tornado nome colectivo desde que decidiu fazer sistema com os livros. Ou talvez não esse mas o do pai, também artista, contemporâneo dos quatro artistas que dão o nome a cada um dos livros, em cada um deles sendo um irredutível e fragmentário significante de uma completude à qual faltará sempre a derradeira imagem – a do autor, a do artista, a da coleção, a do gabinete ou a do livro.

A imagem que falta é a imagem neurótica, a imagem que continua e que procuramos, dentro ou fora da narrativa, e que continuará, editada num novo livro de artista e depois dele.

 

Referências

Barthes, Roland (1981). A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Borges, Jorge Luís (1994). "Utopia de um homem que está cansado", in O Livro de Areia. Lisboa: Editorial Estampa, p. 95-104.         [ Links ]

Saraiva, Pedro (2008a). Gabinete Linares, catálogo da exposição homónima. Montemor-o-Novo: Galeria Municipal.         [ Links ]

Saraiva, Pedro (2008b). Gabinete Codina, catálogo da exposição homónima. Lisboa: Módulo. Centro Difusor de Arte.         [ Links ]

Saraiva, Pedro (2008c). Gabinete Cambedo, catálogo da exposição homónima. Lisboa: Voyeurprojectview.         [ Links ]

Saraiva, Pedro (2009). Gabinete Bárcea, catálogo da exposição homónima. Almada: Casa da Cerca. Centro de Arte Contemporânea.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: mjgamito@fba.ul.pt (Maria João Gamito).

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