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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

EXPANSÕES

EXPANSIONS

O livro inquietante de Daniel Acosta: a viagem, a paisagem, e a leitura

The disturbing book by Daniel Acosta: the travel, the landscape, the reading

 

Renata Azevedo Requião*

*Brasil, arquiteta, poeta e artista visual (projeta ambientes poéticos, com objetos verbo-voco-iluminados). Afiliação: Universidade Federal de Pelotas, Centro de Artes e Centro de Letras. Graduada em Letras e em Arquitetura. Mestre em Literatura Brasileira (A poesia de João Cabral de Melo Neto). Doutora em Literatura Comparada (construção de discurso verbo-visual sobre dez poéticas produzidas no Brasil). Pós-doutorado sobre Poesia Brasileira Contemporânea (anos 1970 aos 2000).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
Apresento aqui o único "livro de artista" do brasileiro Daniel Acosta. "Comfortablescapebook" é um livro que propõe ao leitor/usuário intenso jogo de deslocamentos. Considera-se neste artigo a história do livro e da escrita, cotejados pelos limites da representação. Sob perspectiva literária, enfoca-se tema e voz narrativa, revelando a relação do homem com o lugar em que vive, seu deslocamento pelo mundo, vislumbrando diferentes paisagens, e sua fixação em cidades, isolado em sua morada íntima.

Palavras chave: daniel acosta, viagem, lugar, paisagem, leitura

 

ABSTRACT:
Herein I introduce the only "artist's book" by the Brazilian Daniel Acosta. "Comfortablescapebook" is a book that offers the reader/user an intense game of displacements. In this article the history of books and writing is taken into account, being considered on the limits of representation. Under literary perspective, theme and narrative voice are focused on, revealing the relationship between man and the place where he lives, his displacement in the world, seeing different landscapes, and his settling in cities, isolated in his inner residence.

Keywords: daniel acosta, travel, place, landscape, lecture

 

 

Um só "livro de artista" (entre outros)

A experiência de leitura, e o próprio manuseio do único "livro de artista" de Daniel Acosta, intitulado Comfortablescapebook, se enriquece através de questões vinculadas à narratividade literária e aos limites entre realidade e representação. Ambas as ações, o narrar e o representar, transpassadas pelo modo como os homens ocidentais abandonaram o nomadismo em prol da fixação e da sedentarização nas cidades, onde constróem suas moradias, estão na base do que, a partir do livro, aqui se considera.

No livro Comfortablescapebook, cada página é feita de cortes específicos em peças de tecidos antigos, vendidos a metro nas lojas do ramo, cuja padronagem com "paisagens" era muito utilizada no Brasil, nas décadas de 60 e 70. Numa época em que as máquinas da indústria textil já tinham atingido alto grau de engenho (cada máquina produzia muito mais do que o produzido pelas 200 pessoas originalmente substituídas pela revolucionária "spinning mule", ao final do século XVIII), nas casas de trabalhadores da classe média brasileira, tal padronagem, de tecido rústico, pouco maleável mas leve, era utilizada tanto para forrar almofadas, de sofás e poltronas, quanto para fazer cortinados, encobrindo a luz excessiva advinda das janelas, ou, durante a noite, complementando a decoração das salas, trazendo a "paisagem exterior" para o lusco-fusco do interior das casas.

Este livro, que é portanto um "livro de pano", tem o seu miolo feito de mais de quarenta páginas que são recortes (cujas medidas, 32cm X 25 cm, têm como padrão de referência a folha A4) nas peças de tecido para cortinados (e revestimento de almofadas), recortes enquadrando as paisagens/cenas naturais – nas quais não se vê nenhuma figura humana. A cobertura, capas e lombada, é feita de espesso e tramado tecido impermeável, utilizado para revestir assentos de automóvel, entre o tom verde-musgo e o tom verde-bandeira (verde da bandeira brasileira, verde do estandarte nacional, símbolo do território brasileiro). Somos atraídos pela intensidade do verde e pelo espesso da trama. Se há desenho, o desenho ali é feito apenas da ortogonalidade dos espessos fios, a nos lembrar do processo envolvido na manufatura da tecelagem. Desejamos tocar no livro, desejamos sentir o pano. Desejamos dactilograficamente penetrar no livro cuja cobertura é feita de tecido impermeável – talvez numa referência, no primeiro deslocamento, à impenetrabilidade de nossa mata virgem, o verde do estandarte.

O verde absoluto da cobertura tramada apresenta, na lombada ("isto é um livro," não esqueçamos), o título, Comfortablescapebook, em "caps lock," bordado por máquina industrial, em linha amarelo-dourado, ladeado pelo nome do artista/autor/narrador, Daniel Acosta, acompanhado mais à direita, pelo nome da fictícia editora Ed. Stellamaris. Nome do artista e da editora em tamanho menor que o do título, ainda que todos em "caps lock," garantem ao título certa hierarquia na leitura: é o primeiro à esquerda, e certamente é a palavra-nome de maior visibilidade quando o livro é "visto a distância." Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4

 

 

Numa estratégia cara ao complexo artista que Daniel Acosta é, palavra e objeto criado (é importante destacar sua formação em escultura), assim como vida e obra, estão entrelaçados neste "livro de artista," mais uma obra na construção dessa poética exigente com seu público, mas também muito sedutora. Ao longo dos anos, o artista nascido em 1965, em Rio Grande, cidade marítima, no sul do Brasil, à beira do oceano Atlântico, se volta a experiências biográficas para dar seqüência a seu trabalho poético. Considerada então sua biografia, descobrimos que Stellamaris era o nome de um outrora rico e muito frequentado hotel, às margens do Atlântico sul, cuja localização, afastado cinco kilometros do balneário Cassino, balneário de sua cidade natal, por si só conferia ao hotel enorme mistério. O acesso por entre as dunas e o mar fazia da chegada ao hotel uma aventura romântica.

Para a geração da qual Daniel Acosta faz parte, geração cujos pais, nascidos entre as décadas de 30 e 40, tiveram a juventude ameaçada pela 2ª Guerra Mundial, esse hotel é mais que um edifício: é uma referência aos áureos tempos em que o mundo ocidental, ainda desacelerado, vivia numa espécie de sonho dourado americano, advindo justamente das facilidades da industrialização e de um período de bonanza. Época em que as casas se modificam com os aparelhos eletrodomésticos, época em que a moda e os hábitos cotidianos se modificam, aproximando-se dos que hoje nos definem. Mais do que isso: Stellamaris é certamente um "lugar imaginário," lugar de sonhos e de temores projetados, sempre inacessível, porque para sempre perdido por entre a instabilidade das dunas, na imensidão da praia do Cassino. Evocações e sonhos de quem passou a infância na mesma praia, em meio à instabilidade das dunas.

Se nos mantemos no mágico plano/espaço de comunhão e convivência permitido pela arte, construído pela pura fruição que apenas a experiênca pessoal com o objeto estético pode oferecer, nos deparamos com o nome mágico, ali bordado: Ed. Stellamaris. Stellamaris, a "estrela do mar": estrela guia dos marinheiros no território sem rotas prévias que é o mar. Stellamaris, a "estrela do mar": animal marinho que une em seu nome céu e mar. O livro institulado Comfortablescapebook é publicado por uma editora cujo nome deborda os limites do território terrestre. Um livro pode, decerto, nos levar para qualquer lugar, pois a experiência com o livro é fundadora de sempre novas "territorialidades". Um ‘livro de artista se apropria de enredos pré-existentes, une elementos visuais díspares, finge ser o que não é, se apodera de outras formas gráficas’ (Silveira, 2001: 94), e assim ora preserva ora viola os valores e o fetiche do objeto livro, num jogo jogado ao infinito entre aceitação e ataque, entre "a ternura e a injúria" por essa forma de registro que é o livro (Silveira, 2001).

Trabalhando com diferentes materiais, Acosta insistentemente se utiliza de laminados: revestimentos que servem como segundas peles para objetos/móveis feitos de madeira menos nobre, ou como impermeabilização para móveis de cozinha e de banheiro (seu pai maceneiro o introduziu nas artes da marcenaria). Os laminados são materiais que, afinal, mascaram a construção original, homogeneizam seu acabamento, retirando do objeto manufaturado as marcas processuais. Daniel Acosta é artista que se interessa profundamente pela superfície das coisas. Aqui ele nos oferece um livro, em cujo miolo vemos quatro seqüências de páginas – os quatro cadernos – com cenas de paisagens (de tecido usualmente utilizado para revestir almofadas para cadeiras), e cuja espessa e impermeável capa é feita do tecido usualmente utilizado para forrar estofamentos de veículos. Continuamos portanto no plano das superfícies e dos revestimentos.

O deslocamento da leitura/manuseio do livro se dá por duas vias: sentados em casa confortavelmente contemplamos as cenas/paisagens naturais, impressas em série pela indústria da tecelagem; circulando de automóvel, expostos ao tempo e a suas intempéries, contemplando as cenas/paisagens naturais, precisaríamos da proteção do tecido impermeável. Se a capa do livro replica a capa impermeável dos assentos de veículos (remetendo à densidade de nossa densa flora), o miolo do livro replica o forro das almofadas que, por sua vez, replicam as paisagens naturais. Além disso: em casa, vemos nas cortinas e nas almofadas cenas de paisagens, que nos chegam também recortadas pela janela do carro em deslocamento. Em casa estaríamos protegidos das intempéries; de carro circularíamos indefesos em meio a um "continuum" natural.

Com tais características físicas, o livro de Daniel Acosta reúne o narrador artesão, aquele que, sedentário, narra a partir da experiência e da segurança do lar, seu lugar, ao narrador marinheiro, o viajante capaz de contar aos outros a infinita e inesgotável riqueza das diversas paisagens conquistadas (Benjamin, 1987). Como se o artista/autor reeditasse sob o selo Stellamaris os dois modelos de narradores de Walter Benjamin.

 

Cada lugar forja o seu universo

Até o século XV, a América era uma grande região de "pura natureza", lugar onde cada homem, vivendo comunitariamente, em seu cotidiano desenvolvia ações coletivas, em profundo equilíbrio com o "lugar pura natureza", ações repetidas pelos membros de sua comunidade, ao longo dos séculos. Assim, numa mesma região da terra, num mesmo território, homem e lugar estiveram em "equilíbrio natural". A América era lugar de profusão natural, enquanto europeus já viviam a experiência da vida em cidades. A vida do homem americano acontecia num "lugar natural", enquanto a vida do homem europeu se construía numa espacialidade culturalmente demarcada, espaço que já tensionava o espaço natural: o homem europeu era, diferentemente do homem americano, homem barrado pela natureza – que o atemorizava.

Particularmente, o território brasileiro, único nas três Américas de tradição e corte cultural português, era um vasto lugar de vivência e de experiência para os homens. O Brasil é país de proporções continentais e de diversificadas fronteiras terrestres, para além de extensa linha litorânea. Extensa linha compreendida como linha de perfil, se pensarmos o território nacional como um objeto, com extensão de 7.408 km, redobrada em saliências e reentrâncias, de características geológicas e configurações as mais variadas, alternando praias, falésias, dunas, mangues, recifes, baías, restingas… O Brasil, visto do mar, é vário e sedutor, na variação de suas paisagens. A presença da exuberância natural foi a grande marca do Brasil como lugar (o verde bandeira) até o relativamente recente século XIX, quando a vida urbana na Europa, concentrada nas cidades, já se demarcava pelas conquistas tecnológicas da Revolução Industrial.

Os novos modos culturais, configurados pela vida urbana, são modos moldados pela experiência repetida e cotidiana sobre certa territorialidade construída, a qual por sua vez sobredetermina o homem que nela habita. Numa relação intermitente entre homem e lugar, homem e as coisas do lugar, ora o homem constrói a casa, ora é habitado pela casa, ora pavimenta uma rua, ora tem seus passos ritmados pelos ladrilhos com que a ladrilhou, ora escava um percurso viário e o calça com paraparalelepípedos, ora as pedras com que calcetou o caminho lhe sugerem sentidos novos.

A relação entre homem e lugar, em qualquer das distintas circunstâncias, seja o "lugar pura natureza" seja o "lugar culturalmente construído", se fundamenta pelo estabelecimento do homem num "território domesticado." Território de limites variáveis, adequado ergonomicamente a cada homem. Cada um desses lugares, cada uma dessas áreas territoriais, tem em seus limites um particular "horizon d’attente." Um horizonte a distância: a paisagem.

A ideia de paisagem é codependente do estar num lugar, do habitar um lugar e não outro, e do deslocamento por entre lugares, com o estranhamento próprio à experiência daquilo de que se é distinto. A ideia de paisagem sempre pressupõe certa distância.

 

Conclusão

É feito desses dois movimentos, da extensividade dos deslocamentos e da complementar intensividade da experiência num único lugar, o único "livro de artista" de Daniel Acosta, intitulado Comfortablescapebook. Brincando com as dimensões e com as características dos livros vigentes no tempo dos manuscritos (Chartier, 1999), entre o grande in folio, livro que se punha sobre a mesa, nos quais se adquiria estudo e saber, os formatos médios associados aos novos lançamentos do nascente humanismo, e a leveza associada ao acabamento barato do libellus, o livro que se levava no bolso, o livro único de Daniel Acosta (feito com a assessoria de um artista/encadernador Marcelo Calheiros) é um livro feito de páginas de pano recortado, cujas bordas desfiam. O tema do livro é a paisagem, por isso são tons terrosos e esverdeados que guiam o leitor, nos quatro diferentes cadernos de paisagens repetidas (o primeiro e o último cadernos nos apresentam o mesmo padrão em cores diferentes).

Se a leitura do livro exige a "mesa" (legível, em "mot valise", no título em inglês – por que em inglês é uma pergunta que resta), para que se possa contemplar com conforto e segurança cada uma de suas páginas-paisagens, isso parece remeter à prática de leitura demorada, aquela que permite apreciar a sutileza da narrativa visual que cada página tem a oferecer. Como se lidássemos com um grande "livro de imagens", assentados, e com o livro então posto sobre a mesa, para nosso conforto ("comfortable"), como um "grande in folio", através do qual tivéssemos acesso ao mundo mais longínquo, talvez ao mais inverossímel, vemos ali paisagens – também indicadas pelo título ("landscape").

A grande aventura no livro (se confortável ou inquietante, caberá ao leitor) se dá através de deslocamentos por entre distintas "paisagens"; se dá sobre o lugar em que sabemos, ou pensamos saber, viver. Dá-se ainda no manuseio do livro, no que ele – "artefato de leitura" – permite evocar e recriar.

 

Referências

Acosta, Daniel (1997) Daniel Albernaz Acosta. (Coleção artistas da USP). São Paulo: EDUSP. ISBN: 85-314-0376-6        [ Links ]

Benjamin, Walter (1987) Obras escolhidas. São Paulo: Ed. Brasiliense. ISBN: 85-11-12044-0        [ Links ]

Silveira, Paulo (2001) A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. UFRGS. ISBN: 85-7025- 585-3        [ Links ]

Chartier, Roger (1999) A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Ed. UNESP. ISBN: 85-7139- 223-4        [ Links ]

Schama, Simon (1996) Paisagem e memória. São Paulo: Companhia da Letras. ISBN: 978-85-7164-538-7        [ Links ]

Sussekind, Flora e Dias, Tânia (org) (2004) A historiografia literária e as técnicas de escrita: do manuscrito ao hipertexto. Rio de Janeiro: Ed. Casa de Rui Barbosa e Vieira e Lent.         [ Links ]

Williams, Raymond (2011) O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia de Bolso. ISBN: 978-85-359-1796-3

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: ar.renata@gmail.com (Renata Requião).

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