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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

EDIÇÕES

PUBLISHING

Notas sobre a publicação de artista "tudo começa com 'c'" (e outras coisas)

Notes about artist publishing "Everything begins with 'c'" (and other things)

 

Aline Maria Dias*

*Brasil, artista visual. Doutoranda em Arte Contemporânea, Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Mestre em Poéticas Visuais pela Universidade do Rio Grande do Sul. Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
O artigo apresenta a publicação "Tudo começa com 'c'" do artista Bil Lühmann, analisando o caráter auto-reflexivo do trabalho, como forma de edição e apresentação do processo artístico. O artigo estabelece relações com o procedimento descritivo de Georges Perec, a abordagem da leitura de Michel de Certeau e diálogos com a produção de outros artistas e escritores.

Palavras chave: publicação de artista, desenho, processo, escrita, leitura.

 

ABSTRACT:
This paper presents the publication "Everything begins with 'c'" by the artist Bil Luhmann, analyzing the self-reflexive character of this work, considering one way to edit and present the artistic process. The article establishes relationships with the descriptive procedure of Perec's writting, Certeau's approach of reading and dialogues with the production of other artists and writers.

Keywords: artist publishing, drawing, process, writing, reading.

 

 

"Tudo começa com 'c' é uma publicação de artista, formada por uma série de folhas não-encadernadas, cerca de 80 páginas agrupadas em uma pasta de papelão de pequenas dimensões. O projeto foi desenvolvido pelo artista Bil Lühmann durante o período de cerca de um ano, reunindo desenhos e textos que descrevem e comentam situações cotidianas e integrantes do seu próprio processo artístico. Lühmann, graduado em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina em 2011, desenvolve seus trabalhos através de um processo contínuo e atento de coletar pequenas coisas, como botões de roupa perdidos e bilhetes descartados, encontrados no chão.

Nas páginas da publicação "Tudo começa com 'c'" (Figura 1) Lühmann desenha muitos dos objetos que coleta e que integram seu processo, comentando como os encontra, o que lhe chama atenção. Há também pequenos inventários de objetos de uso cotidiano desenhados pelo artista: os potes que ocupam uma pequena cesta na geladeira (geléias, maionese, mostarda – intitulada a 'vedete' da geladeira), as plantas da casa, receitas de pães ("milho + bacon", inscritos dentro de um coração), capas de livros e alguns critérios para organizar uma estante de livros – incluindo comentários sobre as escolhas pessoais no "pouco espaço que me cabe," relatos da experiência de ter trabalhado em uma livraria e algumas das reflexões de Perec sobre o tema.

 

 

Os desenhos que inventariam os objetos são realizados em uma reduzida escala, destacando que desenhar demanda uma temporalidade estendida para observar as coisas e registrá-las, numa duração oposta a instantaneidade de outras imagens. Além de uma aproximação com as coisas, esse tipo de observação permite estabelecer um diálogo com o procedimento descritivo instaurado nos textos de Perec. Além de listar as camas onde já dormiu (Perec, 1974), os objetos que ocupam sua mesa de trabalho e as formas de organizar sua biblioteca (Perec, 2001), o escritor enumera quatrocentas e oitenta lembranças no livro Je me souviens (2006). Sem comentários pessoais, excluindo situações extraordinárias ou memórias íntimas, ele reúne detalhes irrisórios e banais do contexto de sua vida diária quando jovem, lembranças apresentadas com precisão e que radicalizam o procedimento de descrever.

A vontade de descrever, classificar e enumerar atravessa a publicação "Tudo começa com 'c'." Como Perec, Lühmann estrutura de forma inconclusa o desejo de falar de si e de circunscrever o seu cotidiano e o seu próprio processo de trabalho. Esmiuçando suas casas, comidas, coleções, coincidências (entre outras palavras começadas pela letra c, como sinaliza o título), Lühmann delimita o seu espaço. "Escrever, desenhar: são ocupações evidentes do espaço. Do espaço magro que é uma folha, mas espaço." (Tavares, 2010: 28): Esta tarefa, no trabalho de Lühmann, inclui algumas horas dedicadas a desenhar uma libélula que entra em casa e morre e de, brevemente, mencionar o desejo de protegê-la dos gatos, embora as formigas a comam (Figura 2). O desenho apreende não apenas o tempo despendido olhando a asa, fazendo pequenos quadradinhos, mas também as inabilidades e limitações do desenho e daquele que desenha.

É preciso mencionar que o observar o cotidiano é também perder a atenção, gastar tempo: um arranjo circunstancial dos objetos na cozinha que parece um pato mobiliza o artista. E no abismo de detalhes que olhar o mundo nos reserva e confronta, ele se demora observando nos livros e cópias de livros não apenas o que foi lido, mas desenhando os amassados, as pontas das páginas dobradas, as rebarbas. Ele faz uma extensa e obsessiva série de anotações de números que se repetem ou espelham em horários nos relógios, preços e pesos nas etiquetas e cupons. Ele conta: são 8 dias sem coincidências em janeiro de 2011.

Nesse processo, contar é fazer contas, estatísticas e também enumerar coisas, relatar experiências, supor histórias nos pedaços encontrados/perdidos. E deste 'contar as coisas', a publicação revela uma fala muito particular. Um texto que não explica, analisa ou descreve o trabalho, mas que acompanha e atravessa o processo. Uma escrita que não coloca aquele que relata em um local seguro e distante, tampouco que traduz ou projeta o trabalho, mas uma fala auto-reflexiva que se faz, obliquamente, na própria experiência de escrever/desenhar. Trata-se de uma enunciação paralela ao trabalho, que não compete nem o substitui, mas cria um espaço para um outro modo de se expor: aparecem as bordas, as margens de um processo que não são necessariamente visíveis em uma obra 'pronta' no espaço de exposição. Aparece, por exemplo, comentários sobre o ângulo de visão propício para caminhar e encontrar botões, um modo de se posicionar que é diferente do andar das pessoas "que nunca acham nada."

Ao mesmo tempo em que estes textos relatam, enumeram e comentam, a fala do artista também se faz pelo que escapa, pelos fragmentos incompletos e pelos desvios: o dia que foi à praia e não fez o que havia planejado, as pessoas com quem morou e cujo nome não consegue lembrar, uma seta que aponta para um espaço em branco quando enumera o 23º lugar em que morou.

Nesse sentido, a publicação pode ser pensada como um espaço em que o artista edita e dá visibilidade a um processo, articulando uma outra forma de escrita/desenho. A escolha do formato da publicação com folhas avulsas, desordenadas e sem seqüência, reafirma o sentido de trabalhar com coisas dispersas que são coletadas e reunidas. Esta opção também sugere uma tensão entre concentrar e dispersar: as folhas não-encadernadas parecem inconclusas e passíveis de se dispersarem; uma tensão entre arrumar e desordenar – arrumar é sempre provisório; entre a expectativa de encontrar e a possibilidade de perder. Um desenho em uma página de uma pequena planta: "ervilha": e nenhuma explicação.

O trabalho "Tudo começa com 'c'", como outras publicações de artistas, além de se inserir no espaço expositivo tradicional (onde vem sendo exibido, normalmente sobre uma pequena mesa), também se propõe a alcançar outros circuitos, ampliando o recorte espacial e temporal de uma exposição. Linker (2008) localiza o contexto das publicações de artista na produção artística dos anos 60/70, destacando o desejo de reagir ao caráter restrito, elitista e especializado do sistema de arte. Para a autora, as publicações de artista propõem uma equivalência entre exposição e espaço impresso, opondo-se às molduras institucionais, à limitação espacial e temporal do acontecimento-exposição.

Linker aponta que as publicações reivindicam o contexto privado, individual e portátil da leitura, que permite uma experiência de aproximação com a obra de arte fora do espaço normatizado da exposição. Nesse sentido, é válido referenciar as reflexões de Certeau (2003) acerca da leitura. Para o autor, a leitura não é uma atividade passiva, mas uma 'operação de caça'. O autor fala do livro como um espaço a ser percorrido, apropriado, usado: "o texto é habitável a maneira de um apartamento alugado" (Certeau, 2003: 49), não o possuímos: leitura é um espaço (como prática de um lugar, que é o escrito): podemos habitar o texto.

Pensar a leitura como uma produção silenciosa (e não consumo) implica transformar nossa relação com os textos. É como Lühmann parece se apropriar de Perec: desenhando os objetos que o autor descreve em sua mesa de trabalho e desenhando também os objetos que ocupam sua própria mesa de trabalho, aproximando-os (Figura 3).

Nesse movimento de percorrer e habitar os textos, também a leitura de "Tudo começa com 'c'" permite ressonâncias de outras leituras, uma inconclusa lista de artistas e personagens, começando pela tarefa auto imposta de não jogar nada fora e da decorrente acumulação obsessivamente organizada do personagem-protagonista da instalação do artista russo Ilya Kabakov: The man who never threw anything away.

Continuando esta lista, poderíamos citar Hant'a, personagem do livro Uma solidão ruidosa de Hrabal (2010), encarregado de manipular uma grande prensa hidráulica e esmagar todo tipo de papel usado e descartado, o que inclui embalagens, sobras e também livros preciosos e/ou banidos. A despeito das reclamações com o trabalho atrasado, Hant'a lê o que consegue resgatar no fluxo de papel velho e, escondido, carrega os livros para sua casa em uma valise.

Na boîte-en-valise, Duchamp reuniu um conjunto de reproduções de seus trabalhos e notas de processo. Nessas caixas, Duchamp buscava manter os detalhes dos originais: as mesmas rasuras, rabiscos nas margens, manchas de grafite e borrões de tinta, a maior proximidade possível dos tipos de papel utilizados: minúsculos pedacinhos de envelopes rasgados, papéis de embrulho.

Duchamp tentava reduzir as suas necessidades, possuía pouco dinheiro, poucos objetos de uso, pouco conforto, poucos compromissos (Tomkins, 2005) e com isso, pensava manter sua independência e mobilidade: ser portátil é desenvolver uma obra que não pese muito, caiba em uma maleta e funcionar como uma máquina solteira (Vila-Matas, 1997).

Também portátil e errante, essa lista inclui os sapatos magnéticos de Francis Alÿs que atraem e recolhem pequenos objetos metálicos no caminho percorrido pelo artista. E acrescenta que foi recolhendo pedras encontradas durantes seus percursos como carteiro, que Ferdinand Cheval, no século XIX, durante 33 anos construiu solitariamente o seu palácio ideal na França.

E se ao começar esta lista percebemos como ilimitado é o espaço que cada trabalho cria, também é importante reiterar que ilimitada é a possibilidade de habitar e criar outros espaços, mesmo no comentário que aqui, outro artista se dispõe a fazer sobre a publicação de Lühmann. Assim como descrever e desenhar implicam demorar-se nas coisas, a publicação pensada como um espaço também: "Perceber uma coisa é percorrer essa coisa. Per-correr: correr à volta, perceber uma página é correr toda a volta dessa página: ficamos cansados, andamos demais" (Tavares, 2010: 61).

 

Referências

Certeau, Michel (2003) A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes. ISBN 85-326-1148-6        [ Links ]

Hrabal, Bohumil (2010) Uma solidão ruidosa. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN 978-85-359-1635-5        [ Links ]

Linker, Kate (2008) Livres d'artistes; l'espirit de réseau. Paris: PUF. ISBN 978-2130570196        [ Links ]

Perec, Georges (1974) Espécies de Espaços. Paris: Galilee. ISBN 84-95776-72-3        [ Links ]

Perec, Georges (2001) Pensar/Clasificar. Barcelona: Gedisa. ISBN 84-7432-255-3        [ Links ]

Perec, Georges (2006) Je me souviens. Paris: Hachette. ISBN 978-2-0123-5456-2 Tavares,         [ Links ] Gonçalo M. (2010) Breves notas sobre as ligações: Llansol, Molder e Zambrano. Florianópolis: Ed da UFSC, Ed da Casa. ISBN 978-85-328-0505-8        [ Links ]

Tomkins, Calvin (2005) Marcel Duchamp. São Paulo: Cosac Naify. ISBN 85-7503-362-x        [ Links ]

Vila-Matas, Enrique (1997) Historia abreviada da literatura portátil Lisboa: Assírio Alvim. ISBN 972-37-0411-0        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: alinemdias@hotmail.com (Aline Dias).

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