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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

EDIÇÕES

PUBLISHING

O Livro Negro de Rui Chafes

Rui Chafes’ Black Book

 

*Rogério Paulo Raposo Alves Taveira

*Portugal, artista visual. Professor Auxiliar, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Licenciado em Arquitectura e Doutorado em Belas-Artes.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
Este artigo aborda a relação entre a poética do ferro e do papel do escultor Rui Chafes, a partir do livro/catálogo Involução.

Palavras chave: Abismo negro, Involução, Livro escultura, Rui Chafes.

 

ABSTRACT:
This article focuses on the connection between the iron and paper poetics on the work of sculptor Rui Chafes through his book/exhibition catalogue Involução.

Keywords: Black abyss, Involution, Rui Chafes, Sculpture book.

 

 

Introdução

O livro de Rui Chafes, que exploraremos neste artigo, foi realizado aquando da sua exposição de arte pública intitulada Involução. Esta exposição teve lugar na Casa-Museu Teixeira Lopes, entre 28 de junho e 24 de agosto de 2008. O livro, editado pela Edilidade de Gaia, de algum modo, constituía-se como catálogo desta Involução. No entanto, quem folheia um destes "catálogos", percebe quão longínqua esta palavra se apresenta do objecto. Este livro apresenta-se-nos como uma escultura de papel negro que nos inquieta tal como as esculturas em ferro deste homem medieval preso neste tempo. Preso na sua alma, tal como o ferro está preso no negro de cada uma das suas esculturas.

São as relações entre a sua poética de ferro e a de papel que aqui abordaremos.

 

1. Páginas queimadas

Numa noite conheci o escultor Rui Chafes. Nessa noite falou-me apaixonadamente de um livro negro, absolutamente negro. Alguns dias depois abri um pacote cuidadosamente fechado, entregue por alguém que, como eu, não conhecia o peso da sombra. A palavra cumpriu-se e eu folheei pela primeira vez o livro negro (Figura 1). Páginas e páginas absolutamente negras, interrompidas por aforismos ou ocasionais fotografias a preto e branco, algumas em negativo, onde as sombras são brancas e a luz é negra.

 

 

Lembrei-me dos manuscritos que o escultor queima e encerra em caixas de aço seladas (Chafes, 2006: 23). Seriam aquelas páginas negras as inúmeras páginas de texto queimadas, agora expostas à luz de quem as conseguisse ler? Um palimpsesto infinito de palavras e fogo conformado em rigorosas e sucessivas páginas retangulares de 19,1 por 25,5cm, só acessíveis ao espírito? Como uma das igrejas abandonadas de Tonino Guerra que ficou reduzida a uma mancha preta quando numa noite um raio a atingiu.

Agora a gente do vale vem cá acima rezar ao pé da mancha preta de cinzas e, quando levanta os olhos, vê ali à frente por um momento a cabana em pé, e o raio ainda não caiu (Guerra, 1997: 26).

Os fragmentos em letras brancas que afloram no negrume deste livro adensam a ideia que o negro é a sobreposição de tudo o que Rui Chafes escreveu, umas vezes queimado, outras, poucas, guardado ou publicado em livro. No terreno queimado e fértil deste livro as palavras que podemos ler são como flores de gelo branco. Flores que poderão, através do seu pólen, espalhar-se e florescer algures, tal como os fragmentos de Novalis, para quem tudo era semente (Chafes, 2000: 10).

Ou, como falava Zaratustra:

Sou uma floresta de árvores escuras e de trevas; mas os que não têm medo da minha sombra descobrirão roseirais debaixo dos meus ciprestes (Nietzsche, 1988: 119).

Quem arriscar entrar nesta escuridão que é, em tudo, semelhante à escultura deste artista, poderá encontrar flores, sejam elas de ferro, gelo, lágrimas ou cinza, mas para isso há que não ter medo dos terrores do espírito. A noite instaura a dissolução dos corpos e, no rio negro seco deste livro, flutuam apenas algumas palavras e imagens.

Se este escultor de ferro e fogo diz que "a única coisa que um artista deveria trazer a debate é a sua obra" mais "complicada do que as nossas pobres teorias" (Chafes, 2006: 23), então o negrume destas páginas é a forma ideal de um não escritor deixar escrito tudo o que o inquieta, influencia, ama e perturba. Tudo adensado numa sombra única. Um livro.

2. Dos Abismos

Hölderlin escreveu que os criadores estão nos cumes prontos a serem atingidos por um raio. Separados por abismos negros, estes cumes tocam o céu e despenham-se na terra. Terra "que é a mãe de todas as coisas e traz em si o abismo" (Heidegger, 2004: 32). Por entre os cumes estão poéticas acumuladas nesses vales negros. Rui Chafes evoca estes abismos através de um livro onde todos os saberes se fundem e se inscrevem carbonizados no fluir de um rio negro. Dos cumes, agora vazios, onde se encontravam Hölderlin, Rilke, Nietzsche, Novalis, Beckett, Trakl, Riemenschneider, Pasolini, Tarkovsky, e tantos outros, precipita-se ainda e sempre, porque o tempo dos cumes é longo, matéria que se acumula no espaço entre eles. Um espaço mais além, abissal, perigoso como "o mais perigoso de todos os bens, a língua" (Heidegger, 2004: 64). Heidegger aprofundou este "perigo da língua" hölderlineano resumindo-o em cinco pontos:

1. […] é ela que primeiro o coloca (Homem) na esfera do ser […]; 2. […] traz em si, de um modo intrínseco à sua essência, a decadência […]"; 3. […] suporta e define totalmente o ser-aí do Homem […]; 4. […] podendo tornar-se o meio pelo qual o Homem, […], se vira, de forma blasfema, contra a consciência e contra os deuses; 5. A língua, […], não é nada que o Homem possua, mas pelo contrário, é aquilo que possui o Homem. O que é o Homem? Somos um diálogo (Heidegger, 2004: 75-76).

Heidegger conclui nesta análise de Hölderlin que a "poesia instaura o Ser. A poesia é a linguagem primordial de um povo." (Heidegger, 2004: 76). É a consciência deste poder primordial da poesia que tem estimulado Rui Chafes a "cheio de mérito, mas poeticamente" habitar esta Terra (Hölderlin, 2000: 209). O tem impelido a construir uma obra sempre arrancada dos vales sombrios e frios por onde o seu espírito voa. Só com a visão da águia pode o artista olhar para estes vales escarpados e encontrar, despenhando-se neles, o alimento da sua poesia, fazendo saltar rochedos com a força incoercível da sua vontade. Como a águia, saboreia "os terrores do espírito" e mergulha em chamas porque "qualquer conhecimento profundo é gelado" (Nietzsche, 1988: 115). Mas é também a consciência da língua que o faz construir um livro cheio de vazios negros onde só chegam o vento e as cinzas. É neste vazio negro como a noite que aterroriza, que somos confrontados com os perigos da língua e da imagem. A escultura não se diz nem se escreve, as palavras só podem ajudar a elevar a voz das fontes jorrantes. A escultura não cabe num livro, só pode ser livro. Com o livro Involução, Rui Chafes procura dar-nos o que nos dá com a sua escultura, um toque de alma. Um dissolver noturno e momentâneo do corpo para que possamos fugir aos perigos da língua.

Existe uma zona, para além da humanidade, onde a língua é o silêncio. Ali não se usam palavras e os únicos valores que demonstram um módulo de pensamento são Verdade e Beleza (Chafes, 2008: 49).

Esta é a zona onde se inscreve este livro. A grande voz vem do silêncio sagrado que emana das páginas negras. Uma voz com pronúncia maioritariamente alemã, mas inaudível para os que não crêem na Verdade e na Beleza.

Mas é também o antagonismo entre os dois extremos, início da vida e morte, em simultâneo, que Rui Chafes instaura neste silêncio, que é a sua obra. "Se o criador deve ser ele próprio a criança que se trata de dar à luz, é preciso que ele aceite também ser a mãe em trabalho de parto e as dores do parto." (Nietzsche, 1988: 94). Como o fluir de um rio e a sua nascente num mesmo instante. A instauração do antagonismo do ser primordial. Aquele que flui mas que, em sincronia, evoca o seu nascimento. Um rio hölderlineano. Um rio que percorre os abismos entre cumes e seca pelo fogo da Vontade numa sucessão de papéis rigorosamente cortados e encadernados (Figura 2).

 

 

Conclusão

É do errar, das quedas e das vertigens dos vales situados entre os cumes onde se encontravam os criadores que nos chega este livro como uma genuína emanação da personalidade deste artista e das "sombras daqueles que já foram" (Hölderlin, 2000: 71). Palimpsesto de palavras e imagens mágicas impressas em cada folha até o negro se instaurar como absoluto, como um luto sagrado. Um luto para onde só podemos lançar-nos num movimento antagónico, não em direção ao sol, mas à nossa sombra. Neste luto sagrado a luz é, por vezes, negra como uma Involução.

 

Referências

Chafes, Rui (1995) Würzburg, Bolton, Landing. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 972-37-0383-1.         [ Links ]

Chafes, Rui (2000) Fragmentos de Novalis. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 972-37-0303-3.         [ Links ]

Chafes, Rui (2006) O Silêncio de… Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 972-37-0975-9.         [ Links ]

Chafes, Rui (2008) Involução. Vila Nova de Gaia: Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. ISBN 978-972-581-053-8.         [ Links ]

Guerra, Tonino (1997) O Livro das Igrejas Abandonadas. Tradução de José Colaço Barreiros. Lisboa: Assírio & Alvim. s/ISBN.         [ Links ]

Heidegger, Martin (2004) Hinos de Hölderlin. Tradução de Lumir Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget. ISBN 972-771-348-3.         [ Links ]

Hölderlin, Friedrich (2000) Hinos Tardios. Tradução e prefácio Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 972-37-0547-8.         [ Links ]

Hölderlin, Friedrich (2009) Fragmentos de Píndaro. Tradução notas e posfácio de Bruno C. Duarte. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 978-972-37-1470-8.         [ Links ]

Nietzsche, Friedrich (1988) Assim Falava Zaratustra. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editora. s/ISBN.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: rogeriotaveira@sapo.pt (Rogério Taveira).

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