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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

ÚNICOS

UNIQUE

Gestos diários e acúmulos na casa: relações entre o livro de artista e o contexto doméstico cotidiano

Daily Gestures and acumulation at home: relations between the artist’s book and the everyday domestic context

 

Vivian Herzog*

*Brasil, artista visual. Professora, Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas, UFPEL – RS. Mestrado em Artes Visuais, Porto Alegre, Rio Grande do Sul (UFRGS), especialização em Memória, Identidade e Cultura Material, Pelotas, UFPEL e graduação em Artes Visuais, Centro de Artes, UFPEL.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
Ao partir do conceito de livro de artista como uma instância inserida no campo das artes, são analisados dois trabalhos da artista Alice Monsell em que a evidência recai sobre o objeto manuseável, tocável, suscetível a coleta de experiências e vivências cotidianas. Tais características são apresentadas a partir da escolha, formato e apresentação do livro-objeto.

Palavras chave: sobras, acúmulos, cotidiano, livro-objeto.

 

ABSTRACT:
Parting from the concept of the artist’s book as a form which has been introduced into the field of art, this paper analyses two artworks by artist Alice Monsell emphasizing the qualities of objects that can be manipulated, touched and used to gather together everyday experiences of life. Such characteristics are discussed in relation to the choice, format and presentation of the book-object.

Keywords: leftovers, acumulation, everyday, book-object.

 

Introdução

O presente artigo procura relacionar algumas questões apresentadas por Paulo Silveira (2001) no livro A página Violada da ternura à injuria na construção do livro de artista aos trabalhos da artista Alice Monsell (Pelotas, Brasil, RS) especialmente o recorte em A pilha de Sá, 2005, (Figura 1, 2 e 3) e Falas domésticas, 2007 (Figura 4 e 5). O livro de artista pode ser pensado, segundo Silveira, professor do Instituto de Artes IA/UFRGS, Porto Alegre, Brasil, como uma instância do campo das artes imbricado com as vanguardas do século XX que, a partir das décadas de 1960 e 1970 com o conceitualismo e a arte postal, eram vistos como uma possibilidade ideológica veiculada através de objetos propositivos pensados, por vezes, como tiragens e multiplicações. Conforme o autor (2001), nas décadas de 1970, era comum ver circular entre as escolas de arte, especificamente ele se refere ao Instituto de Artes da UFRGS em Porto Alegre, uma quantidade considerável de exemplares de arte postal. Paralelamente, ocorria, em menor escala, a produção de livros de artistas que era quase uma oscilação, ou melhor, uma variação da arte postal como uma prática comum naquele período. No entanto, o cenário ou o campo, enquanto instituição e reflexão teórica do conceito de livro de artista, era incipiente e quase inexistente naquele contexto. Quanto às abordagens da nomenclatura, embora hajam algumas divergências nas classificações em relação ao termo livro de artista, interessa-nos percebê-lo a partir do objeto manuseado que, no caso dos trabalhos de Alice Monsell, vem reforçado pela atitude de os trabalhos existirem a partir da participação e experiência partilhada com o outro. Nesse contexto, no que tange a participação e interação com o objeto livro, podemos pensar nos trabalhos de Daniel Spoerri citado pela própria artista como uma referência no que tange o "[…] o interesse em apropriar-se diretamente da realidade e de processos e situações cotidianas" (Monsell, 2009: 187). Spoerri tem diversos trabalhos em que o fazer é colaborativo como o livro An anecdoted topography of chance, feito em parceria com Robert Filliou, Emmet Williams, Roland Topor e Dieter Roth. Este último, assim como Spoerri, pode ser considerado um dos expoentes da abordagem do livro de artista enquanto objeto que perpassa por questões reflexivas, como o trabalho em que utiliza uma tripa de animal para preencher com pedaços de livros triturados que geram o Literaturwurst de 1961.

 

 

 

Alice Monsell nasceu em Nova Jersey (EUA) mas mora no Brasil há vinte e cinco anos, no estado de Rio Grande do Sul, onde trabalha como professora na Universidade Federal de Pelotas, no Brasil. As propostas da artista parecem como que impregnadas por um sentido de partilha em que são criados dispositivos de apresentação que remetem a atos cotidianos inseridos no contexto da casa. Segundo Agamben (2009), filósofo italiano, a palavra dispositivo provém do termo grego oikos que inicialmente era identificado com a ideia de casa e depois passou a ser traduzida apenas por dispositivo. Para o autor: "Dispositivo passa a ser qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientador, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes" (Agamben, 2009: 12). Guardar, arrumar, acumular, trocar experiências, convívios e atitudes circunscritas a casa são algumas das experiências que a artista propõe ao domesticar espaços tais como a galeria ou uma sala de aula. Pensar sobre os gestos que fazemos em nossas casas para arrumá-las é de certa forma um conceito inerente ao que a artista denomina como display, conceito que ela articula de maneira questionadora ao refletir sobre as apresentações das molduras dos quadros que reproduzimos na instância da arte quase que automaticamente. Em vários momentos através de suas proposições, ela nos pergunta: por que comprar materiais para o fazer artístico se nossos espaços diários estão repletos de matéria prima? O que fazemos com nossas sobras? O que há de semelhante em nossas arrumações e gestos cotidianos que liga o lugar/casa ao fazer artístico? Como eles podem ser retroalimentados? Trata-se de questões que colocam em crise no sentido que problematizam os limites éticos e simbólicos de nossas atitudes diárias que envolvem e abarcam o fazer artístico em todas as suas etapas desde o material escolhido até a forma de apresentá-lo.

 

1. A pilha de Sá

Os trabalhos de Monsell aparecem sob o viés dos gestos diários onde A pilha de Sá 2005 (Figura 1, Figura 2, Figura 3) surge como um flip book em que as fotografias geradas por uma das colaboradoras de sua pesquisa são fixadas sobre uma espécie de prancha feita de sobras de outros materiais como folhas rasgadas de cadernos velhos e uma série de outros papéis guardados na casa da artista. A pilha de Sá é um trabalho colaborativo que surge da interação de colaboradoras que tiram fotos de suas próprias casas e fornecem a artista. Esses trabalhos trazem consigo uma série de relações sociais que questionam sobre aquilo que se consome, o que se guarda, porque se guarda e o que se faz com os acúmulos. A pilha nada mais é do que uma espécie de revelação da forma com que a dona da casa esconde a sua bagunça diária. O flip book A Pilha de Sá, 2005 é uma espécie de junção/revelação e destino de materiais que fazem parte das inquietações da artista. Por que guardamos? O que os pequenos gestos cotidianos de esconder, arrumar, acumular falam sobre as estruturas sociais e as relações de consumo de nossas casas e sociedade?

O que esse objeto traz da relação com o livro? Por que escolher este formato, forma e apresentação? O livro de artista carrega características específicas como a possibilidade de tocar, folhear, de tornar o objeto próximo ao corpo, tê-lo em mãos e ao mesmo tempo ir propiciando uma espécie de revelação do que existe nas páginas seguintes. Tal escolha recai sobre as intenções da artista em fazer com que descubramos aos poucos que a imagem primeira do livro, que parece ser de uma cama, esconde na verdade, uma série de objetos guardados, que a colaboradora do trabalho havia escondido atrás de uma porta. O gesto de folhear as páginas é análogo ao da colaboradora de revelar aquilo que guarda, revelar a organização da bagunça, as sobras. Sobras diárias de acontecimentos anteriores.

2. Falas domésticas

O segundo trabalho falas domésticas 2007, (Figura 4, Figura 5) vem de um contexto de interações em que a artista domestica espaços expositivos propiciando às pessoas dispositivos de participação como cadernos de anotação dispostos em cima de mesas, que questionam as pessoas sobre quais as palavras que elas falam no banheiro, na sala, na cozinha. Segundo a artista "as falas estão nos pedaços de papel redondo, recortado a partir do invólucro velho de sabonete, que achei em minha casa, [e usei] como molde" (Monsell, 2009: 268). O trabalho tem um papel de quebra gelo, onde palavras como sinta-se em casa, mãe me traz o papel higiênico, que calor e pois não, aparecem como elementos que podem ser pegos na mão. Estes foram realizados para serem manuseados, olhados, rir e se divertir, são dispositivos feitos "[…] para facilitar, derreter o gelo do silêncio entre duas pessoas sem intimidade e sem assunto" (Monsell, 2009:268).

Conclusão

Em síntese, conforme Silveira os livros de artista, como um campo das artes visuais podem ser (2001): livros literários, quando os elementos plásticos não são tão evidentes, livros de artista propriamente ditos, como proposições únicas ou em séries e livros-objetos, cujos valores bibliográficos não são tão evidentes quanto o sentido objetual, manuseável e propositivo. Podemos perceber que as proposições de Alice Monsell, como o trabalho falas domésticas 2007, (Figuras 4 e 5) aludem a um sentido de interação, revelação e manuseio que vem diretamente do objeto dotado de uma espécie de narrativa espaço/temporal. Trata-se de uma temporalidade, como afirma Silveira (2001), que carrega a possibilidade do registro, da confissão, da experimentação de ser um arquivo de memórias ficcional ou real. O livro de artista pode remeter ao objeto no sentido convencional através da metáfora, alusão ou negação. Vários elementos num livro evidenciam que ele é um objeto: sua espessura, cheiro, marca, anotações, suas manchas de uso. Ele não é somente a obra literária. "A obra literária é de escritores, pesquisadores, publicadores. O livro é de artistas, artesãos, editores. É de conformadores" (Silveira, 2001: 13). As páginas do livro de artista quando existem, não podem ser confundidas com uma simples folha de papel, mas ela "[…] guarda consigo os sinais de ser parte de um todo. A página, como a estamos apresentando aqui, é a menor unidade do suporte livro" (Silveira, 2001: 23).

 

Referências

Agamben, Giorgio (2009) O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Unochapecó, 2009. ISBN:978-85-7897-005-5        [ Links ]

Silveira, Paulo (2001) A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2001. ISBN: 85-7025-585-3        [ Links ]

Monsell, Alice (2009) A (des)ordem doméstica: Disposição, desvios e diálogos. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: vivianherzog@gmail.com (Vivian Herzog).

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