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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

ÚNICOS

UNIQUE

Achados para uma cidade: o livro como suporte para experiência multidimensional na obra de Daniel Escobar

Findings for a city: the book as support for multidimensional experience in the work of Daniel Escobar.

 

Carlos Murilo Valadares*

Endereço para correspondência

*Brasil, gravador, pintor. Graduado em Belas Artes (UF|MG), Doutorado em Educação (UFMG), Pós-Doutorado em Letras (UFMG).

 

 

RESUMO:
Analisaremos o uso que Daniel Escobar faz do livro na obra "The World", sobre o qual organiza imagens de edificações e espaços públicos, obtidos de recortes de guias turísticos, configurando uma cidade imaginária de existência improvável e de teor fantástico. Daniel entende a superfície do livro como suporte de exploração de espaços tridimensionais, numa concepção estética que se opõe à bi-dimensão, ao aderir às páginas objetos que se erguem de sua superfície, em dobraduras que nos remetem a mapas turísticos.

Palavras chave: Livro de Artista, cidades imaginárias, dobraduras, espaços tridimensionais.

 

ABSTRACT:
I analyze the use that Daniel Escobar does for book, on his work "The World". The artist organized the buildings and objects , cuts from tourism Books , and create a new imaginary city. Daniel imagine the surface of the book like a support to exploring 3d spaces.

Keywords: meta-paper, conference, referencing.

 

 

Introdução

O artigo analisa o uso que Daniel Escobar propõe para livros de guias turísticos em sua obra "The World", sobre os quais o artista reorganiza indicações presumivelmente reais de espaços e construções, a partir de recortes dos próprios guias, para assim remontar uma cidade que atenderia aos desejos de um turista em busca de lugares indeterminados. O artista entende a superfície do livro como suporte apropriado para a exploração de espaços tridimensionais, numa concepção estética que contraria o texto plano, incorporando às páginas objetos como que erguidos de sua superfície, em dobraduras que remetem à brinquedos de montar. Os recortes das figuras recompõem a paisagem com imagens de prédios e locais que, pretensamente, poderiam ser visitados por eventuais viajantes que passem por uma cidade ideal.

O objetivo do artigo será então analisar como Daniel Escobar, ao produzir suas obras sobre livros impressos em escala industrial, investe na presença do objeto extracorpóreo. Tridimensional em sua estrutura, posicionado em um espaço mental que se situa entre o assunto do livro, um guia turístico, e as supostas vontades dos viajantes, que buscam coisas que nunca viram, suposições mal formuladas em sua mente. Concretiza-se, neste contexto, um mapeamento de improbabilidades, pois que muitas das imagens recortadas não correspondem a locais e prédios existentes em uma cidade real, mas sim a lugares que não podem ser localizados, pois fazem parte do imaginário permissivo do turista. A cidade é o que o livro diz que ela é, conquanto se confie na ordem dada às figuras pelo artista. A intervenção do artista preserva a forma original do livro, cujas páginas foram mantidas em sua configuração original ou, pelo menos, permaneceram reconhecíveis como tal após a intervenção do artista. Daniel Escobar nasceu em Santo Ângelo, no Brasil, em 1982. Graduou-se no Curso de Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vive a atua em Belo Horizonte, Brasil.

 

1. Livro-arte-objeto-poesia

A apropriação da forma do livro como suporte para a criação artística remonta a própria criação do livro em seu formato códex, que tem sua origem nas publicações medievais. Os textos e ilustrações eram, em sua essência, resultado do trabalho de artistas, frequentemente monges de ordens conventuais (Mello, 2008). Mas tais condicionantes não impediram que os livros fossem escritos e ilustrados com elementos visuais e gráficos de grande beleza estética e apuro técnico, evidentemente considerando as questões visuais da estética medieval. Pequenos indícios nestes manuscritos denunciam um certa vontade manifestada pelos autores, no sentido de marcá-los com elementos visuais de ordem pessoal, como se este fosse o espaço particular do artista em meio a um conjunto de práticas estabelecidas e obrigatórias. Pereira (2012) observa que estas transgressões eram mais frequentes do que se imagina. Como exemplo, a autora cita uma imagem de autoria de Beatus de Navarra, pintada no século XII, na qual o artesão inseriu a imagem do diabo lançado ao espaço por um anjo. O corpo do anjo caído ocupa parte da borda da imagem, num procedimento pouco convencional, mas de interessante efeito visual. Evidentemente, não se trata de um livro de artista, também porque a ideia do artista como "autor" da obra era um conceito nascente naquele período. Mas este expediente já aponta a possibilidade do artista fazer uso do livro como campo de expressão de suas ideias e valores estéticos. ´ então do estabelecimento do códex como forma preferencial de publicação de livros, na idade média, artistas de praticamente todos os movimentos artísticos utilizaram este objeto como suporte de expressão, usando livros já impressos e neles inserindo interferências ou criando seus próprios livros. Isso leva então à miríade de nomes adotados para este objeto: livro-objeto, livro de artista, cadernos de artista, cadernos de apontamentos, livro-poema, entre outros. As diferenças não se fazem claras, mas apontam a pergunta: que elementos perceptivos podem caracterizar os livros de artista, livros-objeto, livros-poema. Certamente, não se poderá identificar um, mas sim um conjunto de elementos coadjuvantes que participarão de sua construção, que receberão tratamentos diferentes em função de sua natureza. Vera Casa Nova (2006), em relação à palavra, entende este uso do livro nos moldes afirmados pelos poetas do grupo Processo, para quem o livro-poema será "[…]a incorporação do livro como elemento de expressão às palavras que compõem o poema[…]". O palavra será então objeto, deslocadas de seu significado, operando como forma, como assim o fez Stéphane Mallarmé, em Un coup de dés. No domínio de sua concepção, a gestação do livro de artista não dá lugar a suavidades, pois ideias nascentes frequentemente estão impregnadas de incertezas, desconfortos e rompantes de flutuações entre a inconsciência e o delírio. E a lapidação das coisas é um fenômeno bruto, cortante e incisivo. Calor da batalha. Vera Casa Nova: "[…] Vincos, dobras do papel, dobraduras, recortes, perfurações operam o espaço, cujo movimento se liga ao pensamento, apontando para o pensamento das artes" (Casa Nova, 2006). Panek escolhe a diferenciação pelo conteúdo: o livro de artista não é um local de reproduções de obras de arte, recebendo apenas obras originais, imaginadas para aquele lugar e em nenhum outro (Panek, 2006). O livro-de-artista se transforma então em um privilegiado campo de experimentação e, porque não, motivo de diversão para o artista. Neste sentido, Rocha argumenta que "[…] O caderno de artista revela um apontar de caminhos, considerando que o artista busca as questões de sua pesquisa produzindo e indagando sobre sua própria produção."(2010).

 

2. Procure e… ache em "The World" de Daniel Escobar

Onde situamos então a obra "The World", no contexto da produção contemporânea de livros-de-artista? Daniel se concentra no arbitrário arranjo de seres da urbanidade, construindo uma semi-cidade, que pode ser impossível em tese mas que agradaria profundamente a qualquer turista comum (Figura 1). Estes objetos encontram-se espalhados na superfície de guias turísticos, mas sua organização recusa a exatidão imposta pelos mapas típicos destas publicação, considerando que estas mapas podem ser vistos em algumas das páginas dos livros. Tudo o que pode ser visivelmente atrativo encontra-se espalhado pela obra, e sua impossibilidade diverte mas ao mesmo tempo questiona a natureza própria de cada objeto em sua relação com seu ambiente natural. Algumas ocorrências notáveis: um elefante caminha na mesma página em que um dois pinguins se distraem com algo no chão, e um farol se ergue em sua função orientadora.

 

 

Entretanto, o artista mantem a forma reconhecível dos livros, que permanecem intactos a não ser pelas páginas que esse encontram abertas para receber as colagens. Este comportamento revela um certo repeito pelo livro e por sua forma, que remonta a mais de mil anos em nossa história, como se o artista quisesse interferir o mínimo possível em seu suporte. A observação das páginas revela ainda que a busca pelas figuras das colagens tiveram como referência o próprio texto e indicações das páginas dos guias. Em um dos livros, podemos observar mapas e desenhos que descrevem uma cidade medieval e suas ruas tortuosas. Então, Daniel aplica na páginas colagens de portões medievais, castelos tipicamente europeus e a figura de um cavaleiro cristão. Texto, mapa e figuras coladas estabelecem então uma dialogia de desencontros, pois provavelmente as imagens utilizadas pelo artista não correspondem aos monumentos e personagens que realmente serão encontrados por um viajante naqueles lugares descritos no mapa. Isso estabelece uma relação muito próxima ao texto de Jorge Luis Borges, que descreve justamente um lugar onde o mapa ocupava toda a área que descrevia, em tamanho […]" Naquele Império, a Arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma cidade, e o mapa do império, toda uma província." (Borges, 1999). Os recortes sobre os mapas que Daniel Escobar usa também preenchem a superfície como se os objetos pudessem ser maiores que seus equivalentes no mundo real. Borges escreve ainda: "Nos desertos do oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa, habitadas por animais e por mendigos[…]" (1999). Os recortes de Daniel Escobar não constituem ruínas, nem serão, mas os mapas dos guias em sua obra, em conjunção com seus recortes, também configuram fragmentos de um mundo que não se faz entender sem uma cartografia precisa, e que são habitados por criaturas errantes, localizadas apenas temporalmente, mas não precisamente nas paginas dos livros.

A poética da obra "The World", de Daniel Escobar, caracteriza-se então pelo deslocamento do livro e das imagens em relação a referenciais comumente aceitáveis e previsíveis. O livro, embora tenha sua forma preservada, não será usado como tal, mas como superfície de emanação de sentidos fabulosos e fantásticos. As figuras não representam os lugares, edifícios e objetos a que equivalem, mas representam desejos de visitação. Os territórios se confundem, e a poética se faz justamente no desvio. Chklovski (1971) entende este fenômeno como "estranhamento", o processo continuo de afastamento dos sentidos comuns, que o autor relaciona diretamente à própria essência do trabalho artístico, entendendo que a "[…] finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularizarão dos objetos".

 

3. Conclusão

O artigo discutiu a poética e a estrutura da obra "The World", de Daniel Escobar. Como conclusão, espera-se que o artigo contribua para melhor compressão acerca do livro de artista , na perspectiva de sua utilização em seu estado original, de onde o artista retira ou adiciona objetos. No contexto poético, "The World" nos remete ao estranhamento, aspecto fundamental da arte contemporanea, mas também não deixa de suscitar aspectos ligados ao surrealismo de Magritte.

 

Referências

Borges. Jorge Luis. Obras completas (1952-1972). São Paulo: Globo, 1999.         [ Links ]

Casa Nova, Vera. O mais simples poema a ver: Ave e Solida. Revista O eixo e a roda 13: dossiê 50 anos da poesia concreta. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006.         [ Links ]

Chklovski, Vítor. A Arte como Procedimento. In: Dionísio, de Oliveira Toledo(org.). Teoria da literatura: Formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971.         [ Links ]

Freire, Cristina. Além dos mapas. Os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: SESC: Anablume, 1997         [ Links ]

Mello, Maria Elizabeth Chaves de. O projeto de roger chartier:ouvir os mortos com os olhos. Resenha do livro Ecouter les morts avec les yeux, de Paris, de Roger Chartier. Collège de Paris, . France/Fayard, 2008. In: Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 155-161, 2o sem. 2008

Panek, Bernadette. Livro de artista: uma integração entre poetas e artistas. Anais do IV Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006.         [ Links ]

Pereira, Maria Cristina Correia Leandro. Quando a borda não enquadrava: as transgressões nas miniaturas de manuscritos medievais. Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH -RIO – Oficio do Historiador: Ensino e Pesquisa. São Gonçalo, FFP/UERJ, 23 e 27 de julho de 2012.         [ Links ]

Rocha, Maria Clara Martins. Caderno de artista: um meio de reflexão. 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas "Entre Territórios" – / Cachoeira – Bahia – Brasil, 2010.

 

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: carlosmurilos@gmail.com (Carlos Murilo).

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