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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

MÃOS

UNIQUE

Pioneiro: Amadeo de Souza-Cardoso no contexto internacional dos pioneiros do livro de artista

Pioneer: Amadeo de Souza-Cardoso on the international context of the first the artist’s books

 

Ana João Romana*

*Portugal, artista visual. Investigadora do Centro de Investigação em Arte e Comunicação (CIAC). Licenciatura em Pintura, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Mestre em Gravura, Royal College of Art. Doutoranda em Artes e Comunicação na Universidade do Algarve e no Royal College of Art.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:

Partindo das características do livro iluminado medieval são analisados os livros de William Blake e William Morris, pioneiros no pensar o livro como obra de arte. No segundo momento é analisado o livro A Lenda de S. Julião Hospitaleiro de Amadeo de Souza-Cardoso, obra de 1912 também com influências do livro medieval, mas no contexto do livre d’artiste e das vanguardas do início do sec. XX.

Palavras chave: livro medieval, livre d’ artiste, Amadeo de Souza-Cardoso, A Lenda de S. Julião Hospitalieiro, modernismo.

 

ABSTRACT:
The pioneering art books of William Blake are scrutinized, framing this perspective with the a reference to the medieval hand painted book. Afterwards, we will consider the hand made book ‘A Lenda de S. Julião Hospitaleiro’ (‘The legend of St. Julian the Hospitaller’) of Amadeo de Souza-Cardoso, 1912, also sharing medieval influences, although on the modernist context and on the artists’ book perspective.

Keywords: medieval book, livre d’artiste, Amadeo de Souza-Cardoso, the legend of St Julian Hospitaller, modernism.

 

 

Introdução

A Lenda de São Julião Hospitaleiro (1912), por Amadeo de Souza-Cardoso, é um livro carregado de influências medievais. No contexto internacional, os pioneiros do livro como obra de arte: William Blake e William Morris servem-se também da influência do imaginário medieval nos livros que editam. Propomos uma análise destes livros, cada um dentro do contexto da sua época; procurando o que há em comum nestes três pioneiros que pensam o livro como obra de arte.

Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) no dia em que completa 19 anos vai viver para Paris, onde inicia e desenvolve a sua obra como artista plástico. Com o rebentar da primeira guerra mundial vê-se forçado a voltar para Portugal. No ano do seu regresso Amadeo já era o artista português com a maior projeção internacional, devido à má recepção do seu trabalho em Portugal vive isolado mas em constante produção artística até 1918, ano em que morre prematuramente vitima de gripe pneumónica.

 

Os antecedentes: livro medieval, Blake e Morris

Interessa-nos nesta abordagem ao livro medieval os aspectos que os artistas vão mais tarde recuperar. Isto é, o manuscrito iluminado em formato codex, que combina texto com imagem, letra capitular ornamentada, margens com decoração floral e geométrica abstracta. É no final da Idade Média que a ilustração nas margens dos livros de iluminuras conhece a maior variedade, estes são os espaços de maior liberdade para os autores, e são estes os livros que vão influenciar os artistas do séculos XVIII, XIX e XX. Os livros medievais continham essencialmente temas bíblicos. O uso do dourado era uma adoração a Deus e servia para literalmente iluminar a página.

William Blake (1757-1827) escritor, pintor e gravador. Foi auto-editor de todos os seus livros, onde texto e imagem estavam contidos numa única matriz de cobre, a impressão resulta densamente colorida. O processo gráfico de Blake foi batizado pelo próprio como Impressão Iluminada, é uma referência aos manuscritos iluminados medievais.

Publicou vários livros em vida, mas o de maior sucesso resulta da união das Songs of Innocence (1789) com as Songs of Experience em 1794, impressas a cor e aguareladas. As imagens gravadas por Blake emanam energia, embora de escala reduzida (c.13x8cm), as figuras aparentam uma escala monumental.

Um século depois de Blake publicar os seus livros, William Morris (1834-1896) funda a Kelmscott Press, em Londres. Foi escritor, político e designer. Desenhou têxteis, papel de parede, azulejos, vitral, mobiliário e livros.

Embora Morris tenha publicado 66 livros referimos apenas o livro The works of Geoffrey Chaucer. Chaucer é um livro extremamente elaborado que foi realizado entre 1891 e 1896, sobre influência do imaginário medieval. Edward Burne-Jones realiza 87 ilustrações gravadas em madeira e William Morris é autor da tipografia, iniciais decoradas, decorações de margens e design da encadernação. Morris recupera um fazer artesanal.

A Lenda de S. Julião Hospitaleiro de Amadeo de Souza-Cardoso, no contexto dos pioneiros do livro de artista

O primeiro artista português que pensou no livro como suporte para uma obra de arte foi Amadeo de Souza-Cardoso. Em 1912 realiza A Lenda de São Julião Hospitaleiro, exemplar único, a partir do conto original de Gustav Flaubert, escrito em 1877 La Légende de Saint Julien l’Hospitalier, baseado nos vitrais do séc. XIII da catedral de Rouen.

Amadeo vai organizar no formato codex uma série de desenhos e todo o texto copiado à mão. Fascinado pela história, abundante no imaginário sobre a Idade Média, os temas de caça e os elementos de encantar. É possível termos acesso a este livro graças à edição fac-similada publicada pelo Centro de Arte Moderna em 2006.

A Lenda é um livro de capa dura e papel de guardas marmoreado (Figura 1, Figura 2). Nas primeiras páginas Amadeo desenha o título (Figura 3) a aguada com a cor de sangue, "A mesma cor será dada às pesadas gotas de sangue que mancham a folha onde se descreve o parricídio". (Alfaro, 2006). O frontispício é como um símbolo heráldico, seguem cinco páginas onde Amadeo explora a tipografia a dourado e negro. E dez ilustrações iniciais onde apresenta personagens e cenas da história, também a dourado e negro, pela sequência do conto: rei/pai (Figura 4), rainha/mãe, eremita, Julião em jovem, Julião caçador, rei sogro de Julião, Julião e a esposa, Julião guerreiro, Julião santo e Julião morto em ascensão aos céus. Seguem-se as páginas do texto caligrafado, cada página é diferente, Amadeo explora vários grafismos na relação texto-imagem, próximo do livro medieval de iluminuras, mas de desenho mais sintético. Ao longo do texto as margens são decoradas com animais (Figura 5), criaturas fantásticas, plantas, armas, brasões, polígonos e arabescos.

 

 

Quando Amadeo de Souza-Cardoso executa este livro ele está de férias na Bretanha, durante os meses de julho e agosto, hospedado no Hotel du Lion d’Or, tornado o seu scriptorium. Durante estas férias fotografa as tapeçarias medievais no Castelo de Kériolet, que vão influenciar o imaginário da Lenda.

A Lenda circulou entre amigos e família. Amadeo escreve a Lucie, sua futura esposa, sobre como este livro maravilhou o seu pai, na visita que fez a Portugal no Natal de 1912 (Alfaro, 2006). Mas existe um documento de autoria não identificada no Espólio Amadeo de Souza-Cardoso – Fundação Calouste Gulbenkian, que refere este livro para publicação " o que não foi executado devido à morte do artista."

Amadeo saiu de Portugal em 1906 rumo a Paris. Esta cidade íman atraia inúmeros artistas do mundo inteiro, que se concentravam no bairro de Montparnasse, o contacto entre artistas é muito próximo – partilham ateliers, encontram-se nos cafés, onde fazem as suas tertúlias, e visitam as exposições uns dos outros. O jovem Amadeu, que também vive em Montparnasse, vai saber tirar todo o partido deste ambiente cultural. A partir de 1913 começa a frequentar a casa do casal Delaunay, onde aos domingos existe um encontro de artistas.

No final do séc. XIX surge em Paris o termo Livre d’artiste ou Livre de Peintre, estes livros são realizados em colaboração entre um pintor e um escritor, são edições de luxo, normalmente de 100 a 200 exemplares, com ilustrações impressas em litografia, xilogravura ou água-forte. O Livre d’artiste não é uma publicação inovadora ou experimental sobre a estrutura ou forma do próprio livro, vem da tradição do livro ilustrado.

Sobre a cumplicidade pintor/escritor na edição destes livros citamos o escritor que publicou com Sonia Delaunay – Blaise Cendrars:

In those days, painters and writers were equal. We lived mixed up together with more or less the same preocupations. You could even say that each writer had his painter. I had Delaunay and Léger, Picasso had Max Jacob, Reverdy had Braque, and Apollinaire had everybody. (Baron, 1995)

Os primeiros e principais editores de Livre d’artiste são Ambroise Vollard (1866-1939) e Daniel-Henry Kahnweiller (1884-1976). Estes escolhiam os autores e os textos, por vezes clássicos. A estética do livro também era definida pelo editor, tendo em conta o tipo de colecionador que adquiria o objeto.

O livro como obra de arte ganha expressão com as vanguardas do início do séc. XX.Em 1913, no ano seguinte a Amadeo de Souza-Cardoso executar A Lenda de São Julião Hospitaleiro, uma artista amiga de Amadeo – Sonia Delaunay (1885-1979) vai publicar aquele que é considerado o primeiro livro de artista do período das vanguardas do séc. XX (Drucker, 1995). Com texto de Blaise Cendrars – La prose du Transsibérien et la petit Jehanne de France, este é um livro simultâneo, onde texto e imagem se lêem ao mesmo tempo.

Antes, em 1909 Marinetti, artista fundador do Futurismo, vêm questionar a abordagem tipográfica à página, com a publicação dos seus manifestos futuristas no jornal Le Figaro, são as "palavras em liberdade" que Amadeo conheceu.

Os primeiros artistas que quebram com o formato convencional do livro, usando materiais do dia a dia, como papel de parede e tecido, textos manuscritos, impressões a linóleo, stencils e carimbos de batata, são os artistas da Vanguarda Russa, como Natalia Goncharova. A maioria destes livros, devido à sua materialidade, tornaram-se efémeros. Esta geração de artistas vai parar a sua produção com a revolução russa e a I guerra mundial. Mas conseguem demonstrar que o livro pode ser publicado pelo próprio, sem recorrer a editor, como é o caso do livre d’artiste.

 

Conclusão

Os antecedentes da prática do livro de artista podem ser encontrados nas obras de William Blake e William Morris. Ambos transformam o livro em expressão. No século XVIII William Blake é o primeiro artista a pensar o livro como uma obra de arte, este é o objecto que melhor pode materializar o trabalho deste poeta, pintor e gravador. William Blake cria o processo de Impressão Iluminada.

Um século mais tarde, William Morris recupera a tradição do Gótico, traz do livro medieval a decoração das margens, as iniciais iluminadas, a tipografia, as ilustrações e o fazer artesanal.

A partir de 1900 surge o termo Livre d’artist, são edições de luxo realizadas em colaboração entre pintor e escritor. O livro como obra de arte ganha expressão com as vanguardas do início do século XX, onde Amadeo de Souza-Cardoso está inserido.

O que vamos encontrar em comum aos três pioneiros: Amadeo, Blake e Morris, em comparação com o livro medieval, é o recuperar do imaginário e a estrutura da página – a relação entre o bloco de texto, a ilustração e a decoração nas margens.

Todos estes exemplos são reveladores de como o trabalho de Amadeo de Souza-Cardoso estava posicionado – como pioneiro.

Como olhamos para o livro de artista em Portugal em 2012? Passados 100 anos desde a realização do primeiro livro por um artista português.

 

 

Referências

Amadeo de Souza-Cardoso, Gustav Flaubert – A lenda de São Julião Hospitaleiro, 1912, exemplar único. Edição fac-similada, FCG, 2006, com textos de Maria Filomena Molder e Catarina Alfaro.         [ Links ]

Baron, Stanley (1995) Sonia Delaunay – the life of an artist. Londres: Thames & Hudson.

Drucker, Johanna (1995) The century of artists’ books. N.Y.: Granary Books.        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro, e aprovado a 23 de setembro, 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: ana.romana@gmail.com (Ana Romana).

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