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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

MÃOS

HANDS

A poética do livro de artista: Memórias da menina gravada, de Kelly Taglieber

Artists’book poetics: Kelly Taglieber’s ‘Memórias da menina gravada’

 

Anita Prado Koneski*

*Brasil, professora de Filosofia da Arte e de História da Arte, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduação em Artes Plásticas, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestrado em Literatura Teoria Literária, UFSC. Doutorado em Teoria Literária, UFSC.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
O presente texto propõe-se a pensar a experiência de folhear o livro de artista Memórias da Menina Gravada, da artista brasileira Kelly Taglieber. Um universo feminino não convencional, de imagens e textos, permeia a composição de todo o livro. O diálogo teórico para compor este texto fundamenta-se em Maurice Blanchot, entendendo que nada ali, imagem ou palavra, está para ser o relato de algo que se afirma como um saber, ao contrário, todo acontecimento advém com o intuito de ser estranhamento.

Palavras-chaves: livro de artista, imagem, escritura.

 

ABSTRACT:
This text is proposed to consider the experience of leafing through the book of artist Memórias da Menina Gravada by Brazilian artist Kelly Taglieber. An unconventional feminine universe of images and texts permeates the composition of the whole book. The theoretical dialog for composing this text is based on Maurice Blanchot, understanding that nothing there, image or word, there is to be an account of something that is stated as a knowing, on the contrary, all event comes to be strangeness.

Keywords: artist's book, image, scripture.

 

 

Introdução

Kelly Taglieber é uma artista plástica brasileira, residente na cidade de Florianópolis, ilha do Estado de Santa Catarina, formada em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC-CEART. Seus trabalhos fascinam na medida em que apresentam um diálogo com o monstruoso. O livro de artista, Memórias da menina gravada, não foge à regra. Trata-se de um livro de 29X39 cm, em que se encontram gravadas imagens de ‘bonecas’ (como as chama a artista) sobre páginas de linóleo, alternadas com textos escritos à mão, com caneta prateada. Nele observamos um universo feminino nada convencional, fundado não na beleza e na idealização do que seja habitualmente o feminino, mas nos enigmas e nos monstros que rondam esse universo.

O presente artigo pretende narrar a experiência de contato com essa obra e pensá-la com base no conceito de obscuro que encontro em Maurice Blanchot (2001). Pretende, portanto, aproximar o livro de artista de Kelly à experiência do obscuro, desde que me percebo diante de uma fala com o desconhecido, não porque seja o ‘não conhecido,’ ou o absolutamente incognoscível, mas com esse objeto maior do pensamento e da poética, em que não será nunca revelado, mas ‘indicado,’ conforme nos afirma Blanchot (2001). Para tanto, parto das seguintes indagações: o que ‘indicam’ as ‘falas’ que encontro ao folhear as páginas desse livro? O que nelas ‘indica’ a constatação de que as imagens de bonecas que acompanham essa escritura se assemelham aos monstros que certa vez, na infância, visitaram os meus sonhos? As bonecas de Kelly são monstros, e a infância relatada na escritura anexada às imagens constituem uma fala cruel: nada mais obscuro que isso. Observo uma inversão radical do que é ser boneca e do que é ser infância, pois ao mesmo tempo que se aproxima de mim, também se distancia, fundando uma experiência que não se explica pelas vias do saber.

Assim, este artigo compreende o ato de folhear as páginas desse livro de artista como uma experiência de estranhamento, em que as palavras se entrelaçam com as imagens de bonecas gravadas, que são na sua inteireza imagens do monstruoso e do disforme. O estranhamento firma-se ainda no suporte em que tudo isso vem acolhido, ou seja, o linóleo colorido, romântico, compondo o fundo com flores e frutas, acrescidos à delicadeza da transparência e do colorido. A cada virar de página deparo-me com um fundo diferente, negro, floral, ou transparente, e, nele, a imagem da boneca, com sua identidade sempre nociva, de olhos esbugalhados, dentes agressivos, tranças iriçadas, fazendo frente ao meu desejo de deleite. O que me fascina nesse livro é o inusitado que se dá na luta dos opostos que se trava entre o ameno do fundo do linóleo e a imagem e o texto, que, se nos dispusermos a ler, a fala que ouviremos é a da ‘menina gravada’ que sussurra seu mundo (Figura 1 e 2).

 

 

Ao folhear tais páginas, percebo que entro num universo feminino de imagens e textos, acrescidos a uma experiência de estranhamento. O que fascina nesse livro de artista não é o universo feminino convencional, fundado na beleza e na idealização de um protótipo do que seja o feminino, mas no seu inverso, no enigma que permeia a composição de todo o livro, em que a imagem feminina torna-se um grande monstro. No livro de artista de Kelly, a feiúra debate-se com a beleza, sob um fundo de pretensa beleza e a artificialidade do linólio, que monta um cenário irônico para o que ampara: a escritura e a imagem (Figura 3).

 

 

1. A fala obscura da menina gravada

Todo livro de artista funda-se como um objeto que convida ao tato, uma vez que é essencialmente realizado para o manuseio. Assim, o livro de artista de Kelly Taglieber nos convida à experiência tátil de folhear grandes páginas moles e ásperas, feitas de linóleo, que o leitor as verá, infalivelmente, dobrarem-se sobre si mesmas, no movimento do folhear. Diante disso, percebo que, como primeiro passo, devo deter-me aos cuidados de acomodar esse grande livro sobre um local que o torne confortável a meu corpo para que se posicione perfeitamente aos meus olhos. Então, ler tal livro é de início um diálogo com o espaço. é como se fosse necessária uma preocupação em acolhê-lo antes de empreender a caminhada do ‘olhar,’ a fim de reconhecê-lo em meu próprio espaço corporal e ajustá-lo à minha visada. Parece-me impossível olhá-lo imediatamente sem que se realize esse ritual. O corpo e o livro de artista de Kelly necessitam encaixar-se, devo favorecer as condições para a formação do ‘ninho,’ ou seja, existe um tempo e um espaço de acolhimento. Outro ponto que igualmente parte desse ritual de acolhimento (como um toque quase sagrado) é o que advém da magia do livro ser um objeto único. Trata-se de uma espécie de obra que carrega em si a experiência primorosa da elaboração da artista: um livro único. Não manuseio qualquer livro, não dedico a ele uma leitura como faço com outros livros, ele faz sentido como objeto-escritura, e é unicamente desse modo que ele ganha significado como livro de artista, resultando daí a necessidade de um tato diferenciado, o acolhimento no espaço do meu corpo, um cuidado no olhar, e de todo o ritual de participação e acolhimento que é fundamento nessa ‘leitura.’

Uma vez acolhido, o livro de artista Memórias da Menina Gravada me oferece um mundo de imagens e palavras, imagens gravadas e palavras escritas que trazem em suas páginas a presença da estranha personagem: a boneca. A cada página deparo-me com essa personagem grotesca a espreitar-me em diversas posições, com diversos olhares, e me surpreende porque por vezes ela me espreita entre as transparências. Ela é a presença do avesso do mundo das meninas. No livro de Kelly, as meninas são, a meu ver, a metáfora de um mundo perdido, fundam uma relação de experiência da qual parece que nada sabemos, porém, também não podemos atestar que tudo ali é desconhecido.

As palavras, relatos de dor, lidas no movimento do olhar, e que se anexam simultaneamente às imagens, fundam a experiência com o obscuro, instituem radicalmente um espaço que beira o monstruoso e o disforme. O estranhamento recebe todo seu aval no acolhimento do suporte a que tudo vem reunido, ou seja, o linóleo colorido, romântico, compondo o fundo com flores e frutas, acrescidos à delicadeza da transparência, torna-se quase uma ironia ao mundo que ali se instala. A cada virada de página deparo-me com um fundo diferente, negro, floral, ou transparente, e, nele, a imagem da boneca, com sua identidade sempre nociva, de olhos grandes e disformes, dentes agressivos, tranças eriçadas, fazendo frente ao nosso desejo de deleite e reforçando o obscuro (Figura 4).

 

 

O que me fascina nesse livro é o inusitado resultado da luta dos opostos que se trava entre o ameno do fundo do linóleo, a imagem nele gravada, e o texto que, se nos dispusermos a ler, ouviremos a fala da menina, a ‘menina gravada,’ como um relado estranho do que lhe resta como memória. As palavras são uma espécie de sussurro, fazendo um fundo sonoro, na frente, entre ou por detrás das imagens, querendo dizer para além do que propriamente dizem. Ler tais palavras escritas em letras prateadas não resulta num saber sobre o mundo, ao contrário, ler significa mergulhar cada vez mais no mistério, pois, como afirma Blanchot (2001, p. 66): ‘Falar não é ver.’ Ou seja, falar não é trazer à luz um saber, pois a palavra aqui no livro de artista é a palavra terrível, a palavra que desorienta e que se torna perversa, principalmente quando encontra a imagem. Nesse encontro, palavra e imagem são perversas, fundam um mundo de saberes que aparecem como ‘falas’ cifradas, e já não sei quem encontra quem, se a palavra encontra a imagem, ou a imagem encontra a palavra, ou por onde devo iniciar minha relação de contato. Mas, num segundo momento, percebo que não é o caso de preocupar-me com isso. E passo a sentir apenas a unidade perfeita dessa união (palavra e imagem), à medida que uma não quer legislar sobre a outra, ambas compõem uma unidade, resguardando cada uma os seus enigmas, fazendo-se mistério, trazendo a fala da artista como unidade dilacerada, lugar que diz a privação da existência.

Trata-se da palavra do desvio e da imagem do obscuro, (ou a imagem do desvio e a palavra do obscuro) elaborada no dia, talvez no dia mais noturno de todos, em que a menina não soube como escapar da dor que o destino lhe impingiu. Leio em suas páginas prateadas: “Fechou seus olhos acanhada e fria, por um instante apenas. Por um instante, apenas. Pensou que tinha caído dentro de um poço, estava tudo escuro. O mais escuro do escuro, denso e pesado, tinha lama no fundo e não havia luz.” Uma fala silenciosa e solitária que se interroga sobre sua própria experiência e que resiste a uma tematização. Talvez esteja em Blanchot (1993, p. 24) a explicação, quando ele defende que: “Escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça.” Porém a questão aqui não é apenas a escrita, mas também a imagem, que arrasta o olhar para uma profundidade imóvel, esse lugar em que não podemos mais conferir à imagem um lugar certeiro, porque ela é absolutamente estranha ao presente do tempo ou a uma leitura segura.

Folheio as páginas no confronto incessante do que não me acolhe, mas que me fascina, e esse fascínio anula completamente meu poder de atribuir-lhes sentido. é nesse momento que a menina gravada transforma seu mundo num próximo-distante, entra no espaço do que em mim soa como repercussão, e convida-me a um aprofundamento, e o ser do que ali se instala faz-se meu também. é quando, diz Bachelard (1993, p. 10) “revivemos nossas tentações de ser poeta,” e a simpatia do olhar “é inseparável da admiração.” Ali a menina gravada revela sua intimidade obscura nos traços leves da cabeça grande, nas tranças arrepiadas, nos olhos tortos e corpo de velha, que se fazem obscuridade na trama da palavra com a imagem (Figura 4).

Folheio o livro como enigma, um espaço misterioso, em que ‘alguém fala’ uma fala dolorida, que desejo afastar, mas não consigo. Percebo que as falas, presentes no livro de artista de Kelly, não são apenas da ‘menina gravada,’ podem ser de muitas outras meninas, as gravadas nas entrelinhas dessas páginas, marcadas pelas letras de caneta prata, envolta nos artifícios das flores coloridas do linóleo, em que leio: “O mundo encantado do quarto de brinquedos” […] fora invadido por piratas e homens maliciosos. […] Enquanto a menina segurasse a boneca, não seria atacada. Sua inocência estava por um fio, até seu mundo fantástico havia sido profanado.”

As ‘meninas gravadas’ constroem e elaboram os enigmas na dialética do dia. No seu cotidiano o mundo faz-se dolorido, nele as meninas ficam ‘velhas,’ com ‘corpo de velha,’ percebem seu mundo violado, e tudo vira segredo, um segredo só delas. São com seus segredos que elas tecem suas poéticas. Aqui, a menina gravada fez-se livro, fez-se obra, e nele ela torna-se fala essencial. No livro de artista de Kelly Taglieber, a menina gravada encontrou um local em que pode fazer a sua morada, falar de seus segredos e construir sua fala essencial. Na obscuridade das metáforas, no fundo do linóleo colorido, entre as flores vermelhas e traços negros da gravura, na escritura que ilustra o inominável, a menina gravada indica seu mundo: não se mostra, mas também não ‘se esconde.’ Se os caminhos são indicados, constato que eles são inseguros, feitos de relações de experiências que mostram que o dia, esse espaço de construção do mundo, carrega junto, invariavelmente, a invisibilidade da noite, esse lugar em que tudo me confunde, em que tudo é mais profundo e gritante, onde habita o inominável, e o que faz sentido como existência.

A inseparabilidade entre a forma e seu conteúdo, radicalidade essencial no livro de artista de Kelly Taglieber, permite que eu associe poeticamente os ruídos do plástico que o livro emite quando viro as suas páginas ao possível sussurro da menina gravada, e nessa associação tento dizer para mim mesma a experiência de minha intencionalidade. Vejo, então, que a menina gravada emite ruídos. O virar das páginas deve ser lento, tudo ali se dobra sobre si mesmo, as páginas que se colam formam, casualmente, outras imagens na mescla da transparência do plástico e a opacidade do linóleo. Exercito minha experiência tátil, em que tatear já é pensar. Percebo que já não posso mais falar uma fala distante, a fala da certeza, pois sou também uma ‘menina gravada.’ Nas dobras e desdobras das páginas, o ser das imagens e das palavras passam a ser meu também.

 

Conclusão

O livro de artista, A menina Gravada, de Kelly Taglieber, instalou-me no movimento de desejo de escrever sobre ele. E foi esse movimento que me instigou a investigar essa obra no sentido de possibilidade de dizê-la. O grande livro inundou meus olhos de curiosidade e meus pensamentos de saberes sobre ele. Mas, ao follhear cada página, uma a uma, o mundo ali instalado retirou minhas possibilidades de saber sobre ele, e fez-me perceber que cada folha desse livro de artista segura seu enigma, e que cada folha contém falas que repercutem intensamente em meu ser como impossibilidade de dizê-las. A escritura que acompanha as imagens são espécies de vozes, repletas de saberes que não consigo explicá-los por referências objetivas. Tais imagens que acompanham a escritura, por sua própria natureza, não têm alguma necessidade de um saber, e assim reverberam em mim como impossibilidade. Imagem e escritura, ali, nada precisam comprovar. Estou diante do obscuro, essa relação sem ‘saber’ que tanto me ensina, esse saber que é de outra ordem e que faz sentido essencial para as minhas investigações. Descubro que toda obra é um risco, tal como pensa Blanchot (1987, p. 240), que o poeta se põe em risco, e diante desse risco podemos dizer que as “compreendemos sempre demais e sempre de menos.” é, então, quando o livro de artista que investigo entra num ‘refluxo de ambigüidade essencial,’ como afirma Blanchot (1987, p. 240), que me coloca no jogo em que se entrelaçam o sim e o não e faz-me vislumbrar o obscuro como lugar de experiência com o saber essencial, e que acaba por fazer de minha escrita sobre a obra um movimento de contornar a obra, essa rica sugestão de Blanchot (2001, p. 64) para escrituras e imagens do desvio, essas imagens e escrituras tão inquietantes, como é o livro de artista Memórias da Menina Gravada, de Kelly Taglieber.

 

Referências

Bachelard, Gaston (1993) A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Blanchot, Maurice (2001) A Conversa Infinita. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Blanchot, Maurice (1987) O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 5 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: anitapk@uol.com.br (Anita Koneski).

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