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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

MÃOS

HANDS

Uma liberdade oferecida é mais perigosa do que a mais dura grilheta – Apocalipse à Portuguesa do Hein Semke e a sua sátira da sociedade portuguesa e da Revolução de 25 de Abril de 1974

A freedom offered is more dangerous than the toughest shackle – Apocalypse of the Portuguese, by Semke Hein and his satire of society and the Portuguese Revolution of April 25, 1974.

 

Joanna Latka*

*Portugal, artista plástica e professora, investigadora de gravura. Mestre em Educação das Artes Plásticas, Instituto das Artes, Universidade de Pedagogia em Cracóvia, Polónia, (2003). Pós-graduação em Ilustração pelo Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC) (2006). Atualmente, doutoranda em História de Arte no Instituto de História da Arte (IHA) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) sobre gravura contemporânea portuguesa, bolseira de FCT.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
Pretende-se neste artigo apresentar um dos extraordinários Livros de Artista de Hein Semke, intitulado “Apocalipse à Portuguesa” ou “A Revolução dos Cravos”, onde podemos observar uma produção artística de grande qualidade juntamente com uma critica da situação política que Portugal vivia nos anos 70. O artista mostra-nos a sua expressividade não apenas na ilustração mas também na forma escrita.

Palavras-chave: Hein Semke, xilogravura, desenho, livro de artista, Revolução de 25 de Abril.

 

ABSTRACT:
The aim is to present an article of extraordinary Artist Books of Hein Semke, entitled "Apocalypse of the Portuguese" or "Carnation Revolution", where we can observe a high standard of artistic production along with a review of the political situation that lived in the Portugal in the 70s. The artist shows us his expression not only in the illustration but also in written form.

Keywords: Hein Semke, woodcut, drawing, artist book, Portuguese Revolution of April 25.

 

 

1. Apocalipse à Portuguesa

A obra de Hein Semke (1899, Hamburgo – 1995, Lisboa) é reconhecida em Portugal sobretudo pela intensa actividade deste artista centrada, essencialmente, nas áreas da Escultura e da Cerâmica. Em 1963, uma silicose obriga-o a suspender, a prática do ofício da cerâmica, retornando definitivamente ao trabalhar com papel que, desde sempre, esteve presente na sua actividade artística. Nas procura de outras formas de expressão plástica, o autor exporta as suas visões gráficas em diversas formas, que resultaram em numerosas obras e Livros de Artista, cujas páginas recriam imagens da obsessão de fé, a alegria e a tristeza do amor, abordam a crítica política e a caricatura social (J. Saial, 1995: s/p).

No seu espólio artístico podemos, contar com os 34 Livros de Artista. O primeiro livro, intitulado Em Cada Criatura Nasce uma Flor, foi realizado logo em 1958. A produção dos livros conta com número variável de páginas, entre 12 e 174, (que) são na sua maioria em formato 100 x 70cm (Balté, 2009: 138). Esta actividade expressa, na ilustração e na forma escrita, foi continuada pelo artista até 1986. Tecnicamente, encontramos a aguarela inicial, a que logo se junto a monotopia – mas também surge o desenho a tinta-da-china, a colagem e, nos anos 70, a xilogravura (J. Saial, 1995: s/p), cuja impressão foi realizada pelo artista sem utilização da prensa, simplesmente em modo tradicional, com recurso de rolo, o que revela a força da mão do artista sobre à matriz de madeira (Figura 1 e Figura 2)

 

 

2. Uma liberdade oferecida é mais perigosa do que a mais dura grilheta

O livro Apocalipse à Portuguesa (Figura 3 e Figura 4) ou A Revolução dos Cravos, revela-nos uma produção artística de grande qualidade juntamente com uma percepção da situação política, onde o artista revela-nos a sua preocupação com a sociedade portuguesa no momento de chegada da tão desejada democracia. O Hein Semke refere:

Desenrola (assim) a história da revolução, tal como ela foi vivida de Abril a Dezembro de 1974 […] com as suas pessoas e os seus monstros, os seus fantasmas e os seus ideais, as suas esperanças e fraquezas, hipocrisias, traições, manipulações e ironias, numa iconografia de leitura imediata e numa figuração ora satírica ora mística (Balté, 1997: 2)

 

 

 

 

Trata-se de uma caricatura visual do quotidiano português que, já em meados dos anos 70, para o artista alemão de nascimento, português por opção (Ribeiro, 1995: s/p), se encontrava em plena crise de identidade político – social. O autor neste manifesto, apresenta a obra que tem aquele poder que entra pelos olhos abaixo e nos inunda em combinações maravilhosas (Leitão, 1973), questionado a moralidade politica do cidadão português, e chamando a atenção que uma liberdade oferecida é mais perigosa do que a mais dura grilheta (Semke, 1979: s/p).

Neste diálogo, Hein Semke apresenta-se como um Einzelgänger, um indivíduo que segue o seu caminho próprio, de um profeta, cuja obrigação é criar e construir um aviso que desperte a sociedade ludibriada pela política dos contemporâneos. Através das criaturas gravadas ou desenhadas, Semke satiriza os políticos, cuja demagogia dos rituais políticos da manifestação criaram um homem-massa, que para o artista perdeu a sua identidade e o seu discernimento. Através de interessantes formas sobrenaturais, os políticos caricaturados surgem como figuras híbridas de animal ou animais (gorila, dinossauros, rinoceronte, dromedário; aves-pernaltas, serpentes), ou os cidadão/povo representado sob a forma de mulheres ou homens com cabeças de bichos, entre outros. Semke ilustra a sua visão empenhada e atenta, onde a seriedade e o humor, a sátira e a tragédia (Balté, 1998: s/p) – vivem lado a lado.

É interessante ressalvar, o facto do artista ainda, em fase de grande felicidade após a Revolução, conseguir ver os problemas inerentes das forças políticas em acção:

O 25 de Abril prometeu a todo o povo português, sem distinção de classes, liberdade (política, social, e económica) em autodeterminação e democracia. Até agora (estamos em meados de Fevereiro de 1975), as forças promotoras de 25 de Abril têm salvaguardado e procurado cumprir a promessa. Vários dos seus actos, porém, continuam presos a métodos, ou melhor, a hábitos conspiratórios. Ao confundirem liberdade e democracia com reivindicação de poder e exercício unilateral do mesmo[…]. Enquanto as forças do 25 de Abril se não estatuírem uma constituição, subsistirá sempre o perigo de se perdem nos meandros de intriga e chantagem político-sociais… (Semke, 1975: s/p)

3. Revolução que devora os seus próprios filhos

O livro cujas páginas deste manifesto artístico oscilam entre 70 x 80 cm e 70 x 100 cm revelam uma escala de grandeza que impressiona visualmente o observador:

A estrutura do Livro segue uma simples alternância de xilogravuras e desenhos, feitos respectivamente na frente e no verso de cada uma das folhas de cartolina. A leitura faz-se em dípticos: à xilogravura da página ímpar corresponde sempre o desenho da página par, feito posteriormente e como seu complemento. (Balté, 1998: 1).

O Apocalipse à Portuguesa caracteriza-se pela força dos traços gravados (xilogravura) e a delicadeza da linha da caneta de feltro (desenho). O livro é composto por 30 gravuras de uma gama cromática próxima às cores da bandeira portuguesa: verde e vermelho, impressas manualmente sobre cartolinas cinzentas, entre 1974 e 1975 (Figura 5 e Figura 6); e 30 desenhos foram produzidos posteriormente em 1979, na mesma de cartolina das gravuras (nas costas), desenhados a canetas de feltro (marcadores) e aguarela (fundos), ou pintados com tinta-da-china de cor (capa e contracapa), todos organizadas numa pasta, de cartolina e percalina preta, realizada também por Semke em 1997(Balté,1998: 1). O autor utilizava matérias base no seu ofício gráfico, tintas de offset, simples cartolinas, reciclando sempre que fosse possível, provando assim a possibilidade de produzir um trabalho gráfico nobre, apenas com materiais considerados menores.

 

 

 

 

Por um lado, as suas gravuras caracterizam-se por uma forte robustez no traço, marcadamente expressionista e com uma figuração quase sempre plenas (plena) de forte cor e grande vitalidade. Por outro lado, encontramos, a fragilidade no seu desenho, nas suas cartolinas, pintadas a aguarela, num interessante equilibro com a expressão impressa em xilogravura, sendo que alguns dos motivos desenhados aparecem num outro livro produzido pelo artista em 1975: Rosto, Visões, Coisas Vistas /Gesicht, Gesichte, Gesichtetes/ (Balté,1998: 2). As ilustrações de Apocalipse à Portuguesa seguem uma linha muito simples, poderemos até dizer naïf, cheias de elegância e delicadeza, referido anteriormente e, claramente com um certo humor (constante em todo o livro). Todavia, é importante ressalvar, os desenhos não servem para decorar o livro, também têm na sua génese transmitir uma mensagens, por vezes muito críticas.

Deter o poder, exercer o poder ou disputar o poder nada têm a ver com liberdade nem com ser-se humana e socialmente livre. / Só é livre quem nos diversos planos da existência garante e respeita a integridade de todos os demais e age de acordo […].(Semke, 1975: s/p)

Para além disso, encontramos, ainda, no livro dois trechos escritos pelo autor; um em português no início do manifesto, e uma versão do mesmo texto em alemão no final do livro, que descrevem os seus pensamentos acerca da liberdade oferecida e da nova democracia no contexto português, em que metaforicamente previa um fiasco politico onde a revolução devora os seus próprios filhos. A sua manifestação política vem na base das experiências negativas recolhidas pelo artista ainda na Alemanha durante e após a Grande Guerra: passagem do exército alemão pela Ucrânia, França e Flandres; revolta de Maio, 1920, Hamburgo; revolução de Outubro, 1923, prisão isolada durante seis anos, contribuindo paraas seguintes reflexões de Semke reflecte:

A liberdade só pode nascer do cerne mais íntimo do indivíduo. Quando, após quase meio século de opressão, as algemas subitamente se abrem, pode ou é quase natural surgir um menosprezo pela liberdade e pelo direito do outro à vida, um desregramento e uma irresponsabilidade no exercício de uma recém-formulada reivindicação de poder, seja qual for a filosofia que a inspire ou a perspectiva política que a condicione… (Semke, 1975: 12)

4. Democracia não aparece de mão beijada

A produção dos livros do artista de Hein Semke, é um núcleo muito pouco conhecido e estudado. Desta forma, aproveito este artigo como forma de chamar a atenção para a produção dos livros de artista extremamente importantes, que nos atraem ou nos não deixam indiferentes (Leitão, 1973). Este livro, em particular, aborda problemas que ainda hoje subsistem nos nossos tempos. é necessário reflectir: onde chegamos como sociedade?

[a] democracia não aparece de mão beijada mas tem de conquistar-se palmo a palmo e desde os alicerces pelo trabalho, pelo sofrimento e pela luta. (Semke, 1975: s/p).

Não posso deixar a oportunidade de agradecer à Dr.ª Teresa Balté, que me abriu as suas portas, e desses encontros muito produtivos, resultaram na construção da minha documentação apresentada neste artigo.

 

Referências:

Balté, Teresa; Centeno, Yvette; Vaz, Leonor (1995) Hein Semke – O Livro da árvore, FCG, Lisboa.

Balté, Teresa (1997) Ficha técnica, levantamento detalhado Apocalipse à Portuguesa, [s. n.], Arquivo de Teresa Balté         [ Links ].

Balté, Teresa (2009) A coragem de Ser Rosto, 2ªed, Imprensa Nacional – Casa de Moeda, Lisboa

Leitão, Ruben (1973 a) Hein Semke – Gravuras, Cerâmicas, Galeria de São Francisco, Lisboa.

Semke, Hein, (1975-79) Apocalipse à Portuguesa, edição de artista Ribeiro, José, Sommer (1995 a) Hein Semke – O livro de árvore, FCG. Lisboa.         [ Links ]

Saial, Joaquim (1995 a) Hein Semke a longa jornada, Hein Semke, O livro de árvore, FCG, Lisboa.         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 7 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: jolatka@gmail.com (Joanna Latka).

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