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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

CORPOS

Um sussurro imanente: o corpo na pintura de Miguel Branco

The immanent whisper: the body in Miguel Branco's painting

 

Carlos Correia*

*Portugal, artista visual. Doutorando na Faculdade de belas artes da universidade de lisboa. Mestre em artes visuais / Intermédia pela universidade de Évora. Projecto Individual em Pintura no ar.co. licenciado em artes Plásticas pela ESAD.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Pretende-se abordar a temática do corpo na obra de Miguel Branco. O corpo enquanto assunto não é habitualmente associado ao discurso construído em torno da obra deste pintor. Exactamente por essa razão, e por sermos partidários da opinião segundo a qual o corpo habita o trabalho de Miguel Branco, decidimos levar a cabo este estudo. Até à data identificámos quatro distintas manifestações da presença da ideia de corpo na sua obra.

Palavras chave: pintura, corpo, história da pintura, observador, olhar.

 

 

ABSTRACT
One's intent is to study the thematic of the body at Miguel Branco's work. The body as subject isn't usually used to talk about this painter's work. Exactly for that reason, and also because we believe that the body actually inhabits Miguel Branco's work, we've decided to write this paper. Until now we've identified four distinctive manifestations of the presence of a so called 'body's idea' in this painter's work.

Keywords: painting, body, history of painting, viewer, looking.

 

 

Introdução

O nosso objectivo será o de demonstrar de que modo ou de que modos o corpo se encontra presente nas pinturas do artista. Para tal, tomaremos a sua obra sob diferentes pontos de vista, no sentido de apurar as diversas encarnações que a presença do corpo pode aí assumir. Ainda que o foco desta investigação incida essencialmente nas obras produzidas a partir de 1997, faremos também uma breve incursão pelo período que decorreu entre 1988 e 1995. Este não é um estudo sobre a pintura de Miguel Branco em toda a sua extensão, mas sim um pequeno ensaio centrado numa temática específica e, porventura, menos explorada na já extensa bibliografia dedicada ao pintor.

 

1. Um corpo é um corpo, é um corpo, é um corpo

Ainda que sob variadíssimas máscaras (corpo humano, corpo animal, corpo de desenho animado, etc), é quase sempre da representação de um corpo que trata a pintura de Miguel Branco (Figura 1), Figura 2). Mesmo nas raríssimas excepções em que tal não se verifica (Figura 3), Figura 4), Figura 5), o artista propõe lugares à espera de serem vividos ou com vestígios de o terem sido outrora. Assumindo as mais diversas identidades ou disfarces, o inominável espaço construído pelas pinturas de Miguel Branco encontra-se invariavelmente habitado.

 

 

 

 

 

 

 

 

2. O corpo da tradição

É recorrente encontrarmos na pintura de Miguel Branco uma chamada de atenção para o corpo da pintura enquanto tradição. Seja ela feita através de um 'modo menor' (Caldas, 2009: 9), seja por outras vias mais explicitas, a citação da história da pintura ocidental marca nesta obra uma presença constante. Contudo, esse movimento de captura de um passado mais ou menos distante é apenas inteligentemente sugerido. Desde 'evocar aqueles pintores, quase anónimos na sua maior parte, miniaturistas e animalistas dos séculos XVII e XVIII' (Almeida, 2010: 79), até ao resgate e consequente transformação de figuras de obras de Antoine Watteau (1648-1721) (Figura 6, Figura 7, Figura 8, Figura 9), são variadas as formas como a obra de Miguel Branco constantemente refere e actualiza a grande tradição.

 

 

 

 

 

Contudo, as pontes estabelecidas com a história são, na sua obra, realizadas com plena consciência do tempo no qual são efectuadas. Não sendo já possível dar continuidade ao modo maior, a pintura age contemporaneamente imersa na torrente de imagens que assolam a vida actual. Não quer isto dizer que as imagens de pintura se devam confundir com as demais, abdicando da sua singularidade, mas sim que podem (devem?) caminhar passo a passo com estas, assumindo pontos de contacto e/ou dissemelhanças. Neste aspecto, a obra de Miguel Branco parece-nos exemplar, pois tem sido capaz de conservar uma identidade ancorada na tradição, sem contudo deixar de ser absolutamente actual.

 

3. O corpo enquanto suporte

Tomando um ponto de vista de mais difícil descodificação, poderemos identificar a presença material, tridimensional (corpórea, portanto) que as madeiras pelo pintor utilisadas adquirem, quando comparadas com a dimensão da imagem que nelas se inscreve.

Sendo que esta questão está intimamente relacionada com a reduzida escala que o pintor habitualmente utiliza, parece-nos pertinente trazer à discussão uma interessante consideração tecida por Bernardo Pinto de Almeida a este respeito:

Nesse aspecto igualmente teremos de compreender que todo o processo de miniaturização que o artista vem, desde há muitos anos, praticando, se torna, também paradoxalmente, análogo – mesmo se formalmente oposto – da prática dos grandes formatos, corrente desde a pintura americana da segunda metade do século XX (Almeida, 2010: 80).

Se Bernardo Pinto de Almeida estabelece, por via da escala, um ponto de contacto entre o trabalho de Miguel Branco e a pintura americana da segunda metade do século XX, nós sugerimos uma aproximação entre o pintor português e um escultor americano com raízes no minimalismo. Pensamos em Donald Judd, especificamente nas obras Untitled, 1969 (Figura 10) e Untitled, 1989).

 

 

Desta feita, o paralelo é estabelecido essencialmente por via formal, sendo contudo necessário reservar as devidas distâncias a fim de se apurarem as proximidades. Uma vez que julgamos serem as distâncias por demais evidentes, passamos imediatamente para as semelhanças: de que modo se dá esta aproximação? Sob que ponto de vista deveremos olhar o trabalho de Miguel Branco para que esta aproximação possa tomar lugar? Convém antes de mais ressalvar que esta comparação não se aplica à observação de uma pintura singular e apenas tem razão de ser ao observarmos um conjunto de obras como um todo. Assim, ela tem lugar necessariamente no espaço expositivo e atinge a plenitude quando o observador toma um ponto de vista tão abrangente quanto possível. Nessas condições, a imagem que se lhe apresenta consiste em pequenas esculturas de parede, com dimensões idênticas e dispostas segundo uma determinada organização (Figura 11 e Figura 12).

 

 

Uma outra razão que contribui para o estabelecimento desta ligação é o facto de, a determinada distância (a mesma que permite ter uma visão de conjunto das várias obras expostas), as imagens pintadas se diluírem no todo, dificultando a sua descodificação. Desta forma, o observador passa a ter à sua frente não mais do que 'pequenas esculturas de parede' que apresentam ora um aspecto brilhante (semelhante ao cobre utilizado por Donald Judd na peça de 1969), ora uma coloração não homogénea (a fazer lembrar a superfície ferrugenta da obra que o artista americano realizou em 1989).

Não sendo já imagens inscritas numa superfície plana, mas antes objectos tridimensionais que saltam da parede, parece-nos pacífico apelidá-los de corpos. Mesmo vistos de longe, esses corpos sugerem uma concentração de matéria e energia inversamente proporcional à sua dimensão.

 

4. Pintura e corpo do observador

Passemos então para um outro ponto de vista sobre a questão da escala, mais concretamente para o modo decisivo como esta afecta a relação que a pintura de Miguel Branco estabelece com o corpo do observador, chamando-o para perto de si a fim de sussurrar algo, porventura impronunciável a alta voz. A mensagem que estas pinturas urgem em passar ao observador devém 'impronunciável a alta voz' não por ser de natureza escabrosa, mas simplesmente por não lhe ser possível existir senão dentro da ordem do murmúrio. Um decibel acima e a mensagem esvai-se. Não sendo uma característica exclusiva do trabalho de Miguel Branco (pois é comum, perante uma pintura, o observador efectuar avanços e recuos em direcção à superfície pintada), esta espécie de coreografia executada pelo espectador assume aqui contornos singulares. A saber: se permanecer longe das paredes, conseguirá apenas ter uma visão de conjunto, do tipo da que atrás referimos. Mas desta forma escapar-lhe-á o sussurro que cada uma das pinturas, em potência, comporta e anseia por revelar.

Descartando a possibilidade destas pinturas se esgotarem numa imagem de conjunto, o observador terá então que avançar uma primeira vez. Escolhe um dos corpos salientes que à sua frente se apresentam e eis que tem início a sessão de descodificação dos sussurros. Depois de uma primeira investida, o observador recua, como que tentando voltar à (porventura mais confortável) posição inicial. Aí irá tentar estabelecer ligações imediatas com as pinturas que ladeiam a primeira escolhida. Por via formal, cromática ou outra, não será difícil essa primeira tentativa de enquadramento. Contudo, há que seguir para a obra seguinte, repetindo os passos que a obra anterior lhe impôs. Se num primeiro olhar as duas pinturas parecem coabitar pacificamente a mesma parede, um ínfimo pormenor irá começar por semear o desnorte, impondo ao observador uma nova investida na contemplação da obra anterior. Se tal for possível, esta nova aproximação será ainda mais, passe o pleonasmo, aproximada. Um novo recuo se impõem. Nova visão de conjunto. A repetição de todos os passos da coreografia até aqui enunciados. Convém não esquecer que a cada nova obra, a quantidade de pormenores em demanda de uma observação mais aproximada aumenta. Consequentemente, na mesma proporção, aumentam as investidas, os avanços e os recuos. A coreografia adensa-se à medida que a exposição se desenrola.

Ao entrar realmente numa exposição de Miguel Branco percebemos de que forma é radicalmente necessário renunciarmos ao mundo exterior, a fim de podermos devotar a nossa atenção ao sussurro que de cada uma das obras se desprende. Desta forma, a obra do artista estabelece uma relação íntima com o corpo do espectador, obrigando-o a renunciar a tudo o que o rodeia, sob pena de não absorver o que ela se dispõem a dar. Sendo uma pintura exigente, não deixa de ser, na mesma medida, generosa.

 

Conclusão

No ponto onde se encontra esta investigação, descortinámos quatro modos de ler o corpo na pintura de Miguel Branco. Nunca se evidenciando por uma excessiva exposição (tudo é apenas sussurrado no trabalho do artista), julgamos ter contudo demonstrado outras formas de identificar ideias de corpo na obra deste pintor.

 

Referências

Almeida, Bernardo Pinto de (2010) "O Devir-Imagem da Pintura" in Professores. Catálogo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

Almeida, Bernardo Pinto de (2010) "O Caso Miguel Branco" in Corpo Translúcido. Lisboa: João Esteves de Oliveira - Galeria Arte Moderna e Contemporânea.         [ Links ]

Caldas, Manuel Castro; Gisbourne, Mark (2009) Miguel Branco. Lisboa: ADIAC Portugal/Assírio & Alvim.         [ Links ]

Sardo, Delfim (1994) Ruído Branco in Do Sublime. Lisboa: Electa-Lisboa 94.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: corrcarlos@gmail.com (Carlos Correia).

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