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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

CORPOS

Entre Cyborgs e Avatares: produções artísticas no seio da tecnologia ou o advento de novos invólucros humanos

Between cyborgs and avatars: Artistic productions within the technology, or the advent of new human casings

 

David Etxeberria (David Rodrigues dos Santos)*

*Espanha, artista plástico e professor na Escola Superior de Artes e Design, Instituto Politécnico de Leiria (ESAD.CR). Licenciado em Artes Plásticas (ESAD.CR), Mestre em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/UNL). Doutorando em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciiências e Tecnologia, UNL).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
A presente análise parte de recentes produções audiovisuais como o filme "Avatar" de James Cameron e algumas das obras do artista australiano Stelarc. Nesta abordagem, o ponto de partida pode ser situado entre as linhas de contacto existentes nas produções artísticas contemporâneas elaboradas no seio da tecnologia e a representação cinematográfica do aparecimento de um ser pós-humano.

Palavras chave: Avatar, Prótese, Cyborg, Tecnologia, Pós-humano

 

 

ABSTRACT
This analysis begins as part of the recent audiovisual productions as it is the movie "Avatar" of James Cameron and some of the works of the Australian artist Stelarc. In our approach, the starting point can be located between the existing lines of contact in contemporary artistic productions developed within the technology and the cinematographic representations of the emergence of a post-human.

Keywords: Avatar, Prosthesis, Cyborg, Technology, Posthuman

 

 

Introdução

O ponto de partida deste artigo advém das inquietações relacionadas com o incremento de fantasias pós-humanas na produção artística das últimas décadas. Para tal, recorremos a aspectos vinculados no filme Avatar de James Cameron (2009) e a algumas das componentes formais da produção artística de Stelarc. A discussão sobre esta matéria tem sido recorrente e tem gerado, via ciências humanas, uma maior atenção às discussões latentes entre os limites do real e virtual, isto é, entre a dicotomia do homem (animal) e das máquinas (cyborg) sobre a qual, por exemplo, Baudrillard escreveu. Por outro lado, dado que a estética deixou de estar circunscrita à noção de Belo, pressupõe-se o abandono da ideia de bem e de verdadeiro no seio da arte, pelo que este interesse pela vertente mais disfórica da vida pós-humana, não se assemelha como uma novidade. Pensamos ter sido no séc. XVIII que a palavra prótese ganhou o seu presente significado, isto é, o de um membro artificial do corpo humano. O termo deriva do Grego prothesis (adição), de prostithenai (adir em) que, por sua vez, é uma composição de pros (diante de ou na frente de) e thithenai (colocar). Por conseguinte, a utilização do termo prótese é no sentido de uma adição e será com base neste significado que tentaremos seguidamente antever o papel que ocupa na obra paradigmática de Stelarc.

 

1. Stelarc: Uma estratégia de esgotamento do corpo

Stelarc (Chipre, 1946) ficou inicialmente conhecido mediante uma série de performances executadas nos anos 70 intituladas Suspensions. Tais performances pressupunham o colocar do corpo num estado perene, demonstrando o quão fácil ele se torna exausto e explorado em espaços totalmente irreconciliáveis. Através destas operações, demonstraria não só as (in)capacidades do corpo mas, a sua vulnerabilidade e ansiedade em devir obsoleto (Figura 1). Tratar-se-á de uma experiência onde o corpo não é ultrapassado no sentido comum do termo (como uma máquina desatualizada), mas antes no sentido estrito, isto é, que se tornou metafisicamente vazio após ultrapassar os conceitos platónicos e cartesianos.

 

 

Após esta série de performances, Stelarc começou a trabalhar com questões diretamente relacionadas com a tecnologia revelando o seu carácter explícito, isto é, da prótese como um ponto de ligação entre a técnica e o corpo biológico, entre os circuitos electrónicos e a carne. As suas abordagens passariam a estar relacionadas com conceitos que, de forma inquestionável, marcaram a nossa contemporaneidade.

A presença fantasma, ou aquilo que ele denomina como SPLIT BODY, e a prótese, não como símbolo de falta, mas como um sinal de excesso constituirá uma parte do seu pensamento. Porém, não se trata de representar um corpo amputado, mas de edificar um discurso sobre a proliferação da tecnologia e do modo como se torna biologicamente compatível. A tecnologia passará a ser uma condição de excesso em vez de um sintoma de falta. Tais conceitos remetem-nos a experiências vinculadas em obras como Ping Body (1996), onde o performer atua através de impulsos da audiência oriundos da internet que coagem o movimento do seu corpo. O corpo torna-se alvo dos desejos de agentes externos ao mundo real, tornando-se parcialmente uma marioneta ao serviço de outrem. Nesta fase, Stelarc estabelece uma diferença fundamental entre aquilo que tradicionalmente entendemos como Cyborg e Zombie, sendo que o primeiro é um ser híbrido entre corpo e máquina que opera com um elevado grau de autonomia, enquanto o segundo é meramente manipulado. Assim, o autor oferece-nos a possibilidade de refletir sobre o facto de já estarmos inscritos neste mundo e de, até certo ponto, estarmos totalmente rodeados de cyborgs e zombies:

Houve sempre um perigo associado ao corpo e ao seu comportamento involuntário, quando condicionados automaticamente. O Zombie é um corpo que age involuntariamente, que não tem uma mente própria. O Cyborg é um sistema homem-máquina. Houve sempre um medo associado ao involuntário e ao automático. Do Zombie e do Cyborg. Mas tememos aquilo que sempre fomos e aquilo no que já nos tornamos (Stelarc, 1-2).

No decorrer da sua obra, a referência ao avatar tornou-se inevitável e substituiu o cyborg por uma problemática onde o ser humano habita um espaço de realidades mistas, ou seja, da possibilidade de entendermos o corpo como um sistema operativo extensível para além do espaço que habita. O autor resume tais possibilidades através de dois campos: FRACTAL FLESH (corpos separados mas que mantêm uma ligação electrónica) e PHANTOM FLESH (membros fantasmas que tornam possíveis a manipulação de corpos remotos).

A prótese, tal como a linguagem, estende e magnifica as possibilidades do ser humano. Assim, nas suas obras, executadas com o auxílio de aparatos artificiais (braços mecânicos, plataformas com seis pernas, orelhas com transmissores), representam a tentativa de estabelecer uma nova linguagem e as próteses que Stelarc acopla ao seu corpo são, como em Third Hand (Figura 2), uma tentativa de representar a forma como se define esta nova humanidade. Por conseguinte, a sua obra permitir-nos-á abordar a questão da evolução humana como uma das preocupações centrais da contemporaneidade onde a prótese é a ferramenta encontrada para reconfigurar o corpo.

 

 

 

2. Avatar: Ficção ou Expansão do universo?

Desde a sua estreia que Avatar (2009) tem sido um elemento gerador de algumas discussões. Mas o que fez deste filme um alvo tão apetecível? Certamente não serão as críticas, dado que a grande maioria aponta para uma mera comparação a histórias, algo subversivas, que tendem a demonstrar a missão civilizadora das Américas. Um outro tipo de crítica envolve-se com questões tecnológicas ligadas a um cinema que, tal como Baudrillard afirma, não é mais do que "uma máquina desmedida de efeitos especiais" (Baudrillard, 1991, 77). Podem, desta forma, ser feitas muitas comparações entre as assunções formais deste filme e outros realizados no passado. Mas, para além de tudo o que possa ser dito sob o ponto de vista cinematográfico, podemos afirmar que um dos seus melhores ingredientes é aquele que interessa à nossa análise, ou seja, aquele que anuncia a possibilidade de projetar o corpo através de uma máquina facilitadora de conexões. Esta ideia pertence à ficção, mas representa uma mudança que já foi retratada em outros filmes, o Matrix (Andy e Lana Wachowski, 1999) ou mesmo O Exterminador Implacável (James Cameron, 1984), e apresenta uma reflexão em consonância com o que está a ser discutido na ciência, na filosofia e, como vimos com Stelarc, na prática artística contemporânea. Assim, aquilo que nos leva a recorrer a este filme é a sensibilidade em vaticinar um futuro dissimulado num sem fim de efeitos especiais onde as novas gerações se identificam com a possibilidade da tecnologia permitir encarnar outras personagens num mundo virtual (Figura 3 e Figura 4).

 

 

Este advento, enumerado nas artes visuais, onde se anunciam possibilidades de habitarmos corpos tal como em Avatar, de sermos ego-máquinas, transporta a noção que o cérebro é entendido como uma espécie de software, um sistema operativo que domina um corpo que nem sempre reage às suas solicitações. Os aparelhos tecnológicos, agora difundidos, tais como os videojogos, para além do mero monitor que tenta incorporar o corpo e o espaço do jogador, têm a finalidade de envolver o sujeito colocando-o numa experiência de imersão, de união e simbiose, ou seja, numa espécie de "trincheira" (Kittler, 1999, 95).

A máquina já não é tão importante como no momento em que James Cameron criou o Exterminador Implacável. Ela passou a ser meramente indicativa e desempenha o papel de ferramenta facilitadora de ligações entre ondas cerebrais de dois corpos (o soldado e o alienígena). A máquina representa o papel de uma prótese invisível que aponta para um futuro pós-humano, pós-biológico, uma simbiose entre orgânico e máquina que permite a personificação. Este filme demonstra uma nova problemática das ligações que alteram a relação entre significado e significante, de formas disseminais baseadas na presença e na ausência, ou seja, de modos distintos de estabelecer ligações entre seres e já não somente entre humanos.

É precisamente na personagem do soldado paraplégico que verificamos a pressão inscrita na desmaterialização, ou seja, numa mudança epistemológica que, naturalmente, afecta a condição humana. Tal facto é marcado no corpo do soldado que, gradualmente, inicia a sua transformação, não apenas pelo tempo que permanece ligado mas, especialmente, porque a imersão começa a inferir desmazelo no seu corpo que, mesmo sendo portador de deficiência, é robusto. Ao longo da narrativa denotar-se-á o seu deterioramento, a magreza, o desleixo com a higiene. Fica assim representada uma estratégia de abandono do corpo humano, perene, obsoleto e débil que, por outro lado, se apresenta repleto de qualidades adquiridas através de uma prótese natural nunca dantes afigurada da qual, no final, se apoderará (Figura 3 e Figura 4).

 

Considerações finais

Verificamos, quer pelas leituras que nos acompanham como pelos fenómenos do quotidiano, que a proliferação da tecnologia começa a concertar-se numa síntese entre o artificial e o orgânico (a própria história da cultura poderia ser relatada através daquilo que os homens têm feito ao seu corpo). Neste sentido, quer no filme Avatar como nas obras de Stelarc, não se trata apenas de explorar os limites do corpo, mas da possibilidade de estabelecer ligações com outros corpos, com outras entidades (seja a natureza no caso dos Na'vi ou dos fluxos dos internautas em Stelarc). Existe, portanto, uma tendência evolutiva neste âmbito que pode ser encarada em três partes: 1º A substituição de todos os órgãos por apenas um; 2º A existência de um movimento crescente na exposição, isto é, da colocação do corpo em display e 3º A desmaterialização total do corpo.

O resultado desta tendência é um efeito estimulante que nos leva a sentir o corpo disperso em circuitos cibernéticos onde os limites da interação já não são definidos pela pele, mas pelos feedback-loops que conectam o corpo e o simulam num circuito biotecnológico. No fundo, a maior parte dos autores que se têm debruçado sobre esta matéria, apresentam-nos uma visão concreta onde o pós-humano implica não apenas a ideia de estabelecer ligações perigosas com as máquinas, mas a possibilidade de estabelecer ligações com uma série mais ampla e multifacetada onde, a curto prazo, se torna impossível distinguir entre organismos biológicos e circuitos integrados. Acompanhando esta mudança de paradigma está associado, naturalmente, uma alteração da compreensão da experiência, do espaço e do tempo onde o sujeito se encontra, "amanhã, servirá cada vez mais para agir à distância, para além da área de influência do corpo humano e da sua ergonomia comportamental" (Virilio, 2000, 75).

Este impulso "protésico" está, por necessidade, empenhado em retratar a forma como o material metafórico e as figurações das próteses incidem nas considerações sobre os limites conceptuais e históricos do humano e pós-humano, orgânico e máquina, evolução e pós-evolução. Neste compromisso, vinculado nas obras que analisamos, é-nos revelada o quão delicada é a situação dialéctica na qual o ser humano se encontra. As obras de arte neste âmbito inscrevem-se em áreas cinzentas do pensamento contemporâneo no qual tentam erigir um debate e onde parte da arte contemporânea, tal como a ciência mais surpreendente, é aquela que nos tem colocado perante a possibilidade de corpos pouco concebíveis, que nos desafia com a instabilidade e nos força a compreender o que significa ser humano.

 

Referências

Kittler, Friedrich A. (1999), Gramophone, Film, Typewriter, Trad. Geoffrey Winthrop-Young e Michael Wutz, Stanford University Press.         [ Links ]

Stelarc, Zombies & Cyborgs: The Cadaver, the Comatose & the Chimera [Consult. 2011-12-22] disponível em http://www.stelarc.va.com.au/texts.html         [ Links ]

Virilio, Paul (2000) A Velocidade de Libertação, Trad. Edmundo Coelho, Relógio D'Água, Lisboa.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: david.santos@ipleiria.pt (David Etxeberria).

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