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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

AMBIVALÊNCIAS

Miguel Rio Branco: tempo, arte e documento

Miguel Rio Branco: time, art and document

 

Sandra Maria Lúcia Pereira Gonçalves*

*Brasil, fotografia documental. Professora de fotografia na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora. Mestrado e doutorado na Faculdade de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduação na Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O artigo tem como foco a trajetória fotográfica e artística de Miguel Rio Branco (nasceu em Las Palmas, nas ilhas Canárias, em 1946). O livro SilentBook (1997), um livro sempalavras, foi eleito para se pensar acerca das relações que Miguel Rio Branco estabelece em seu trabalho entre o tempo, o documento e o universo da arte. Imagens barrocas com foco no lixo, prostíbulos e academias de boxe decadentes esgarçam o tecido do documento fotográfico, refletem sobre o tempo e adentram o universo da arte. Rouillé (2009), Dubois (1998) e Sousa (2004) darão suporte a esta reflexão. Finalizando, julga-se encontrar nessas imagens e em seus encadeamentos a explicitação do conceito de imagem cristal (Deleuze, 2005; Fatorelli, 2003). Miguel Rio Branco vive e trabalha no Rio de Janeiro; algumas das imagens que compõem o livro podem ser vistas em www.miguelriobranco.com.br.

Palavras chave: fotografia;documento; arte; tempo; Miguel Rio Branco.

 

 

ABSTRACT
This article focuses on Miguel Rio Branco's (born in Las Palmas, Canary Islands, 1946) photographic and artistic path. The Silent Book (1997), a wordless book, was chosen to think about the relations that Miguel Rio Branco establishes in his work between time, document and the artistic universe. Baroque images that focus on garbage, brothels and decadent boxing gyms fray the photographic document tissue, reflect time and enter the artistic universe. Rouillé (2009), Dubois (1998) and Sousa (2004) will support this reflection To finish, it is hoped to find in these images and its catenation, an explanation of the crystal image concept (Deleuze, 2005; Farorelli, 2003). Miguel Rio Branco currently lives and works in Rio de Janeiro. Some of the images in the book may be seen in www.miguelriobranco.com.br.

Keywords: photography, document, art, time, Miguel Rio Branco.

 

 

Introdução

Como proposto no resumo deste artigo tem-se como foco a trajetória fotográfica e artística de Miguel Rio Branco. O livro SilentBook (1997), um livro sem palavras, que reúne alguns trabalhos fotográficos do artista, é eleito para se pensar acerca das relações que Miguel Rio Branco estabelece entre o tempo (como aquilo que escoa e marca), o documento e o universo da arteem seu trabalho. Imagens de estilo barroco com foco no lixo, prostíbulos e academias de boxe decadentes esgarçam o tecido do documento fotográfico, refletem sobre o tempo e adentram o universo da arte. A partir de classificação proposta por Rouillé (2009)entre a arte dos fotógrafos e a fotografia dos artistas buscar-se-á apresentar o percurso das imagens produzidas por Miguel Rio Branco, do documento à matéria de expressão artística. Os conceitos de ícone, índice e símbolo trabalhados por Dubois (1998) a partir de Pierce auxiliam na construção da proposta. Sousa (2004) e suas reflexões sobre a fotografia documental completam o quadro. Finalizando, julga-se encontrar nessas imagens e seus encadeamentos a explicitação do conceito de imagem cristal (Deleuze, 2005; Fatorelli, 2003).

Miguel Rio Branco, espanhol de nascimento mas cidadão do mundo, nasceu em 1946, período em que as regras do fazer fotodocumental começavam a ser mudadas (Sousa, 2004). Filho de diplomata, teve sua infância dividida entre Espanha, Argentina, Portugal, Brasil, Suiça e Estados Unidos. Seu envolvimento com as imagens começou com o desenho e a pintura, nos anos 60, na Suíça. Em 1966, estudou no New York Institute of Photography. Em 1968 estudou na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) do Rio de Janeiro, Brasil. Artista multimídia, no início dos anos setenta começou a trabalhar como fotógrafo e diretor de fotografia de cinema (filmes esperimentais) nos Estados Unidos. A partir de 1972, passou a expor seus trabalhos de fotografia e cinema. É correspondente da Agência francesa Magnum desde os anos oitenta.

Considera-se importante ressaltar o trânsito de Miguel Rio Branco entre pintura, fotografia e cinema. Esse trânsito deixa marcas em seu trabalho fotográfico: as imagens expostas no livro apresentado ganham sentidos novos que são proporcionados pela edição e montagem feita pelo artista (herança do cinema), ultrapassando o dado pela mera referência fotográfica; soma-se a isso a dramática paleta cromática de Miguel Rio Branco, herdada de sua pintura. Em tempo, a ausência de um texto que acompanhe as imagens ressalta o carater dialógico de seu trabalho; o espectador é instado a participar da construção da narrativa visual, sempre instável, ambigua. Tais características poderão ser constatadas no prosseguimento do artigo.

 

1. Do documento à matéria artística

Miguel Rio Branco possui no campo da arte-fotografia, a fotografia praticada pelos artistas, uma herança documental. As imagens apresentadas no livro SilentBook são tributárias dessa herança. Entretanto, Miguel escapa dessa classificação que, historicamente, considera a fotografia uma cópia fiel do mundo; um ícone, como diria Dubois (1998) ao utilizar a teoria dos signos de Pierce para caracterizar a imagem fotográfica. Essa característica marcou o fazer documental até os anos cinquenta do século 56. Entre as décadas de 1940 e 1960, um discurso desconstrutor, oriundo de diferentes áreas do saber, agiria sobre a leitura das imagens fotográficas. A fotografia passaria a ser vista como transformadora do real, provocando "efeitos de real". Esta segunda posição, segundo Dubois (1998), corresponde, na teoria dos signos de Pierce, ao símbolo, aquele que possui com seu referente uma relação arbitrária. Ou seja, a fotografia é, para essa corrente, um conjunto de códigos (social, cultural, estético entre outros) a serem decifrados. O trabalho de Miguel Rio Branco como fotógrafo documentarista parece ter uma relação mais próxima com essa segunda corrente epistemológica, que acredita na presença da subjetividade do fotógrafo na construção/ composição do real. Seu trabalho também encontra eco na terceira posição epistemológica defendida por Dubois, que vê a fotografia como traço de um real, sem, contudo, a 'obsessão do ilusionismo mimético' (1998: 53). Índice, ícone e símbolo perfazem uma hierarquia: primeiro a fotografia é índice, traço de um real, depois ela é um ícone, semelhança, e por fim, símbolo, adquire sentido. O trabalho documental de Miguel Rio Branco mescla as três posições, ressaltando o caráter simbólico da imagem. Como coloca Sousa,

A fronteira entre o documento, no sentido originário do termo, e a arte estreita-se e esbate-se nesses casos. Os novos documentaristas desenvolvem mais comentários visuais sobre o mundo do que geram notícias visuais sobre esse mesmo mundo (Sousa, 2004: 176).

Então, o caráter indicial das imagens é o ponto de partida de Miguel Rio Branco na construção de sua narrativa visual, sem, contudo absolutizá-lo, a iconicidade é intuida e o sentido se faz na apresentação dessa narrativa. Suas imagens assinalam a autoria, trazem para dentro do quadro fotográfico os imateriais, referentes incorporais, que vão além dos detalhes técnicos da tomada de imagem e que incluem a vivência do fotógrafo, suas percepções, sentimentos e desejos:

Um fragmento de vida, reminiscências de lugares, pessoas, tempo passado e presente, palavras trocadas, uma atmosfera de cheiros, cores, sabores, sons: um tecido frágil que tende a se desfazer se chegarmos perto demais e cuja consistência é a fluidez" (Cauquelin, 2008: 2).

Pode-se dizer então que o trabalho documental de Miguel Rio Branco se qualifica como fotografia expressão, aquela praticada pelos fotógrafos, no dizer do teórico francês André Rouillé (2009), que nega a certeza do discurso referencial, sendo uma resposta à crise que assola a imagem documental no contemporâneo. Esse modo de fazer adere ao discurso do múltiplo, do híbrido potencializando a outra parte da imagem fotográfica, aquela que não se esgota na referência. Mas a arte-fotografia, aquela práticada pelos artistas, onde a imagem fotográfica descolada do papel de documento do mundo adquire a função de matéria para a arte (Rouillé, 2009), é o novo lugar das imagens de Rio Branco no livro SilentBook.

 

2. SilentBook

SilentBook (1997), um livro sem palavras cuja narrativa se constrói no encadeamento das imagens, reúne parte do trabalho fotodocumental expressivo de Miguel Rio Branco, desenvolvido em diferentes cidades do mundo durante a década de 1990. Produzidas para representar a realidade, essas imagens, infiéis a sua origem, possuem uma potência ficcional não descartada pelo artista. Ao migrarem para o livro, em novos arranjos produzidos na edição e montagem, as imagens transformam-se em matéria artística. O novo encadeamento proposto, cuja paginação se faz quase sempre em dípticos (quando aberto, duas imagens são vistas em conjunto), não é aleatório: o artista constrói com ele poemas visuais, propõe sua temática. Novas realidades de forte teor existencial emergem como num palimpsesto. Imagens de boxeadores, prostitutas, objetos descartados, animais, circos e lugares abandonados permeiam as 98 páginas que compõem o livro (o livro pode ser visualizado em: http://www.miguelriobranco.com.br/portu/comercio.asp?flg_Tipo=1#). Pungentes, falam de dor, de medos, de morte, dos socialmente excluídos. No passar das páginas, é possível perceber a temática recorrente da finitude; ligada ao tempo que escoa e marca, está presente de modo incontornável no trabalho: nos corpos, espaços e objetos apresentados como dejetos. Tudo é deterioração, o avesso do mundo do simulacro. Nas imagens a seguir (Figura 1 e Figura 2), paginadas lado a lado (díptico) no livro, pode-se observar o tempo que escoa e marca nas manchas das paredes, bem como a paleta cromática do artista, feita de cores saturadas, num claro-escuro que aumenta a carga dramática das imagens lembrando a atmosfera barroca (Figura 1).

 

 

 

Na segunda imagem (Figura 2) observa-se a sobreposição e a montagem, fazendo ressaltar o permear dos corpos do homem e de seu entorno: espelhos desgastados em primeiro plano por sobre imagem de fundo de um boxeador, cujas mãos enfaixadas seguram as cordas de um ringue, o fundo da imagem é negro. A presença do tempo recobre a imagem, a dor da existência embaça o olhar (do boxeador e do leitor da imagem).

Nas duas imagens a seguir (Figura 3 e Figura 4), mais uma vez um díptico, um novo encadear de imagens na construção deste poema visual que é Silent Book. Nelas, a questão do tempo se mostra através dos corpos borrados, tornados espectros por um tempo avassalador. Na academia de boxe decadente, ambas as imagens falam da impermanência, do anonimato daqueles considerados excedentes pelo sistema capitalista contemporâneo – contrapartida da sociedade hedonista e narcísica, a outra face do narcisismo contemporâneo, dado não serem suficientemente brancos, bonitos, ricos e civilizados.

 

 

 

Fatorelli (2003), teórico e fotógrafo brasileiro, qualifica imagens como essas produzidas por Miguel Rio Branco de imagem-cristal. Na construção dessa ideia, o autor tem como base o conceito deleuziano de imagem-cristal (Deleuze, 2005) e como critério a relação variável das imagens com o tempo e o espaço. Seriam imagens fotográficas onde a subserviência à referência não é o que predomina (presentes principalmente no universo da arte), possuidoras que são de realidades que não se confundem com ela. Segundo o autor,

autônomas, abstraídas do vínculo remissivo de origem, essas imagens situam-se num presente sempre renovado que desperta um passado e prenuncia um futuro igualmente abertos (Fatorelli, 2003: 33).

Essas imagens são como presentificações, atualizações expressas em dados arranjos do visível. Provocam a suspensão do aqui e agora possibilitando nexos com um imaterial, "uma potência de pensamentos […] quando o que importa não é mais reconhecer, mas conhecer" (Idem). A potência dessas imagens está em ampliar o universo do visível, em sua possibilidade de mobilizar múltiplas temporalidades que se realizam nas múltiplas visadas de seus leitores.

 

Conclusão

Ao concluir este artigo, considera-se importante ressaltar a característica multimediática do artista Miguel Rio Branco. Para ele, o meio parece não ser o que importa, mas sim as temáticas e o modo como elas são trabalhadas. Nas imagens fotográficas do artista, foco deste trabalho, há uma busca de transcêndencia do real para ascender a níveis simbólicos. Através da luz, da cor (ou de sua ausência) e de seus personagens, Miguel Rio Branco faz um convite a quem observa seu trabalho para uma viagem poética e transformadora, aliás, como deve ser toda Arte.

 

Referências

Cauquelin, Anne (2008) Frequentar os Incorporais. Contribuições a uma Teoria da Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 9788599102749.         [ Links ]

Deleuze, Gilles (2005) A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense. ISBN: 9788511220285.         [ Links ]Dubois, Philippe (1998) O Ato Fotográfico. São Paulo: Papirus. ISBN: 9788530802462.         [ Links ]

Fatorelli, Antonio (2003) Fotografia e Viagem. Rio de Janeiro: Relume-Dumara. ISBN: 9788573163230.         [ Links ]

Miguel Rio Branco[Consult. 2011-12-11]. Disponível em http://www.miguelriobranco.com.br         [ Links ]

Rio Branco, Miguel (1997) SilentBook. São Paulo: CosacNaif. ISBN: 9788586374210.         [ Links ]

Rouillé, Andre (2009) A Fotografia. Entre Documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac. ISBN: 9788573598766.         [ Links ]

Sousa, Jorge Pedro (2004) Uma História Crítica do Fotojornalismo Ocidental. Chapecó/Florianópolis: Letras Contemporânea. ISBN: 9788585775551.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: sandrapgon@terra.com.br (Sandra Gonçalves).

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