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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

AMBIVALÊNCIAS

Enquadramento: Ambivalências

Context: Ambivalencies

 

Marilice Corona*

*Conselho editorial; Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Instituto das Artes, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 

Segundo o dicionário Houaiss, ambivalência significa condição ou caráter do que é ambivalente, do que apresenta dois componentes ou valores de sentidos opostos ou não. Pode ser a existência simultânea, e com a mesma intensidade, de dois sentimentos ou duas ideias com relação a uma mesma coisa e que se opõe mutuamente e, por extensão de sentido, relaciona-se o termo com a noção de ambiguidade. Este, além da ideia de simultaneidade, carrega consigo um certo caráter obscuro que dificulta o desvelamento do sentido, ou seja, da "verdade".

Desde os gregos, toda discussão sobre a imagem (visual ou literária) está associada à discussão sobre o verdadeiro e o falso, ou seja, sobre o acesso à verdade. Portanto e, para tanto, no decorrer da história, o deslizamento de sentidos ocasionado pela ambivalência da linguagem poética deveria ser evitado.

No campo da arte, a ambivalência ou a ambiguidade de uma imagem é exatamente aquilo que a qualifica. Em primeiro lugar por que a torna uma imagem polissêmica, aberta, prenhe de sentidos e, em segundo e em decorrência disso, por que tem o poder de colocar o espectador/leitor em situação de estranhamento. Estranhamento este que, como diria Ginzburg (2001: 41), seria o "antídoto eficaz contra um risco a que todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade (inclusive nós mesmos)."

No capítulo que segue, a ambivalência se fará presente de muitas formas e, não por acaso, os artigos aqui reunidos apresentarão em comum, em sua maioria, a análise crítica da obra de artistas que se utilizam da fotografia.

Como sabemos, a fotografia quando da sua invenção no século XIX, veio suplantar de modo muito mais eficaz a função de documento desempenhada anteriormente pela pintura. Sua eficácia estava calcada na relação objetiva com a realidade, em sua rapidez (evidentemente alcançada em algumas décadas pelo avanço tecnológico) e em sua reprodutibilidade. Como teria dito André Rouillé, havia sido criada uma forma rápida e ideal de "inventariar o mundo". Se o papel de espelho do mundo fora outorgado durante séculos à pintura, naquele momento, a fotografia tornara-se sua maior representante. Mesmo que, durante o século XX, a fotografia tenha passado pouco a pouco a conquistar espaço no campo da arte e a assumir definitivamente o estatuto de linguagem artística, sua natureza técnica e seu aspecto indicial a mantêm em um campo ambivalente entre arte e documento, arte e ciência. Por certo e com o tempo, a crença em sua total objetividade e sua função de documento do real foi posta em dúvida, sendo que, o advento da fotografia digital e os programas de manipulação da imagem vieram a corroborar esse processo.

Mas, como veremos, esse caráter documental, de objeto que pode elucidar, testemunhar, provar ou comprovar determinado fato, tem sido explorado por diversos artistas contemporâneos. Se, por um lado, a fotografia será utilizada de modo contundente como forma de reconstituir e preservar a memória coletiva, (veja-se as poéticas artísticas que se debruçam sobre as atrocidades da guerra ou dos regimes ditatoriais), por outro, baseando-se em seu caráter de documento da realidade (ou seria melhor dizer, na crença da fotografia como documento) muitos artistas irão se deter na construção de micro narrativas e de narrativas ficcionais. Ficção e realidade estão implicadas na ambivalência da linguagem fotográfica.

Em "La casa: ficcionar la quotidianitat", Marta Negre Busó analisa os vídeos e fotografias de Sarah Jones, Gregory Crewdson e Eija-Liisa Ahtila nos quais os artistas tem como cenário a casa, o lar. Busó demonstra como a imagem da casa como espaço acolhedor e seguro tão presente no imaginário coletivo é quebrada na obra desses criadores. O estranhamento é provocado através de situações surreais, construídas por meio de elaboradas mise en scènes, das quais a fotografia ou o filme são o registro.

Ficção e realidade também estão presentes no artigo de Raquel Sampaio Alberti: "Mabe Bethônico e o Colecionador: o exercício de olhar e pensar através de imagens." A autora analisa a obra da artista brasileira Mabe Bethônico a partir da ideia de ficcionalização da autoria, bem como, da ficcionalização de documentos. Alberti nos aproxima do trabalho-coleção de Bethônico levando-nos a pensar, entre outras coisas, sobre as diferenças entre colecionar e arquivar imagens. Estabelecendo diferenças, aponta para as possibilidades de resignificação daquelas imagens "geradas compulsivamente pelas mídias de comunicação".

Sandra Maria L. P. Gonçalves, por sua vez, analisa o aspecto expressivo e subjetivo das imagens documentais de Miguel Rio Branco. Apoiada nas ideias de André Rouillé demonstrará a ambivalência presente em sua obra no que diz respeito ao aspecto documental e ao mesmo tempo ficcional de suas imagens. Imagens que, ultrapassando a mera aderência ao referente, alcançarão o que Gonçalves denominará de "poema visual". A ideia de objetividade fotográfica abre espaço à subjetividade do fotógrafo.

Narrativas verbivisuais é como Paulo Gomes classifica a obra de Valêncio Xavier. Gomes aponta as principais características de uma obra que se apresenta híbrida (artes visuais-literatura): a narrabilidade, a ficcionalização e o documental. A ambivalência na obra de Xavier está presente não apenas em seu caráter híbrido, mas, principalmente, pela situação de suspensão na qual o artista coloca o espectador. Documentos reais que reconstituem fatos ocorridos na cidade brasileira de Curitiba no início do século XX são reconfigurados e mesclados com dados e imagens ficcionais. Xavier, ao contrário da grande parte dos artistas, não forja imagens apresentando-as como documentos. Empreende o caminho inverso: realiza a ficcionalização do documento. Os fatos e as diversas narrativas que se interpolam no livro de Xavier são falsas ou verdadeiras?

Por fim, fechando este conjunto de textos, Jordi Morell i Rovira nos apresenta outra função do documental na arte a partir da análise que realiza sobre as obras do artista espanhol Francesc Torres e o The Atlas Group, fundação libanesa de investigação imaginária estabelecida em Beirut (1999) e fundada por Walid Raad. Aqui, a memória coletiva da guerra e dos conflitos civis são reconstituídos e preservados, seja através de documentos reais, como os registros fotográficos da fossa comum de Burgos realizados por Torres, seja pela obra conceitual de Raad cujos registros dos rastros tanto materiais quanto subjetivos tornam-se o ponto de partida de sua obra.

Mais do que respostas, estes artigos nos oferecem um espaço de reflexão e questionamento: O que há de fictício nos documentos e o que há de documental na ficção?

 

Referências

Ginzburg, Carlo (2001) Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, ISBN 85-359-0153-1         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: mvcorona@terra.com.br (Marilice Corona).

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