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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

AVANT

'Where Are My Glasses?' 'Where The Fuck Are My Glasses?' A 'Grande Narrativa' a partir do caso de António Olaio

'Where Are My Glasses?' 'Where The Fuck Are My Glasses?': The 'Grand Narrative' from António Olaio's case

 

Francisco Cardoso Lima* & João Mota**

*Francisco Cardoso Lima: Artista Visual e professor no Departamento de Comunicação e Arte – Universidade de Aveiro. Licenciatura Artes-Plásticas Pintura – Faculdade de Belas-Artes do Porto, Mestrado Estudos Artísticos – Universidade de Aveiro. Doutorando Estudo de Artísticos – Universidade de Aveiro – Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

**João Mota: Portugal, artista visual e professor no Departamento de Comunicação e Arte – Universidade de Aveiro. Director do doutoramento em design, vice-director do mestrado em Criação Artística Contemporânea. Membro fundador da Unidade de Investigação ID+.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Este trabalho centra-se numa abordagem sobre aquilo que aqui se designa como a 'Grande Narrativa,' a partir da exploração de 27 conversas com artistas plásticos portugueses e alavancado pela leitura conjunta de dois trabalhos do artista português António Olaio. Propõem, enquanto ferramenta reflexiva, o manifesto 'A Grande Narrativa.'

Palavras chave: António Olaio, grande narrativa, entrevista, a voz do artista, manifesto

 

 

ABSTRACT
This paper focuses on what here is called the 'Grand Narrative.' From the analysis of conversations/interviews with 27 portuguese artists and leveraged by a joint reading of two works of the portuguese artist Antonio Olaio, this paper propose a manifesto called 'The Grand Narrative' acting as a reflexive tool.

Keywords: António Olaio, grand narrative, interview, the artist's voice, manifesto

 

 

Introdução

A partir da análise do caso particular de António Olaio, esta comunicação centra-se na exploração de 27 entrevistas efectuadas a artistas plásticos portugueses, inseridas nos trabalhos realizados para o doutoramento em Estudos Artísticos 'O Artista pelo Artista' (UA, FCT).

Num primeiro momento pretende-se apresentar uma leitura alargada sobre a "Grande Narrativa," assunto caro e um dos tópicos de conversa transversal aos vários encontros tidos com os diversos criadores. Num segundo momento pretende-se avançar com uma conclusão apresentada sob a forma de manifesto, manifesto enquanto ferramenta reflexiva.

 

1. O caso António Olaio

António Olaio (Sá da Bandeira, Angola, 1963) é licenciado em Artes-Plásticas – Pintura (ESBAP, 1988) e doutorado com a tese 'O campo da arte, segundo Marcel Duchamp' (FCTUC, 2000).

Iniciado nos anos 80, o seu percurso artístico, multidisciplinar, revela uma forte coerência discursiva e funciona aqui como ponto de partida através da leitura conjunta das obras 'Where are my glasses?' (A. Olaio, 1985) e 'Where The Fuck Are My Glasses?' (A. Olaio, 2010).

A vibração causada por esses dois trabalhos, por um lado fortemente ligados por uma mesma procura, e por outro lado claramente separados por um arco temporal de mais de duas décadas, apresenta de forma evidente a importância atribuída por A. Olaio à grande narrativa. A existência de elementos que se mantêm transversais ao seu universo criativo e a forma consciente como recorre à sua utilização demonstram a importância atribuída pelo artista à própria construção desse grande quadro. Na voz de António Olaio:

Com o passar do tempo sinto muitas variáveis, mas sinto também algumas constantes. Encontro sincronias entre passado e presente, como indivíduo e como artista, [e enquanto artista,] quando estou a fazer algo, conscientemente visualizo trabalhos que realizei anteriormente (A. Olaio, 2010).

Sejam eles o vídeo, a música, a performance, a pintura, o desenho, etc… existe nos objectos artísticos de A. Olaio um conjunto de traços que concorrem e perspectivam um todo maior. Ainda, na sua voz:

Expus na Galeria Roma e Pavia, em meados de 80, uma pintura que se chamava 'Where Are My Glasses?'. Agora, na exposição patente no museu do Neorealismo, está exposta uma pintura que se chama 'Where The Fuck Are My Glasses?'. É como se eu tivesse dito: 'Where are my glasses?' e, depois de uma pausa, desse um murro na mesa e voltasse a dizer: 'Where the fuck are my glasses?'. Uma pausa de 20 anos (A. Olaio, 2010).

A percepção da existência de uma grande narrativa enquanto construção consciente de uma obra maior, evidente no caso de António Olaio, funciona como motor para a abordagem efectuada neste artigo às 27 entrevistas realizadas a artistas plásticos portugueses constituídos em amostra.

 

2. A amostra e a 'Grande Narrativa'

Com a colaboração do crítico de arte Miguel von Hafe Pérez, seleccionou-se uma amostra para estudo com o propósito apresentar um quadro de referência que se pretendeu representativo das artes plásticas contemporâneas em Portugal. Foram incluídos na amostra os artistas: Alberto Carneiro, André Cepeda, André Gonçalves, Ângela Ferreira, António Olaio, Carla Cruz, Carla Filipe, Cristina Mateus, Daniel Blaufuks, Eduardo Batarda, Fernando José Pereira, Francisco Queirós, Gerardo Brumester, Joana Vanconcelos, João Pedro Vale, João Tabarra, José de Guimarães, Mafalda Santos, Manuel Santos Maia, Marta de Menezes, Miguel Leal, Miguel Palma, Paulo Mendes, Pedro Calapez, Pedro Proença, Rui Chafes e Zulmiro Carvalho.

Do conjunto dos encontros com os diversos artistas resultou um documento volumoso que reúne em mais de 300 páginas o discurso dos criadores, por vezes negligenciado, aqui apresentado 'tout court,' de artista para artista, na primeira pessoa. Este registo directo possibilita, julgamos, uma percepção tão abrangente quanto possível sobre o panorama das artes plásticas em Portugal, hoje.

Pretendeu-se evitar o enfoque teórico-filosófico que emergiu nas últimas 5 décadas, à imagem daquele que, por exemplo, Jean-François Lyotard aborda em "La condition postmoderne: rapport sur le savoir" (1979). Antes, este estudo procura centrar as atenções no artista, trazendo para a discussão a sua voz, na primeira pessoa, procurando a sua perspectiva idiossincrática sobre a possibilidade de existência de um 'grande quadro' enquanto algo que ultrapassa a fisicalidade do objecto artístico, algo que não está necessariamente no objecto artístico, algo que não o objecto artístico. Antes, a grande narrativa como uma grande construção, mais próximo do processo de criação, mais próximo do percurso artístico, como um todo maior que as partes.

Para esta comunicação, focamos atenções apenas no conjunto de tópicos que referenciam a relação do artista com a grande narrativa. Procurou-se perceber se existe por parte do artista plástico um olhar retrospectivo sobre o seu percurso artístico. Qual a sua importância e como esse grande corpo afirma ou concorre, consciente ou inconscientemente, para um todo distinto, particular e maior que as partes. Por fim, arriscando uma aproximação especulativa, abriu-se campo para um salto do artista plástico particular para o conjunto de todos os artistas plásticos. Para lá da 'Grande Narrativa,' colocou-se a hipótese de existir uma 'Metanarrativa' colectiva com autoridade sobre as grandes narrativas íntimas, ou para a qual as várias grandes narrativas concorrem, ou a qual é afirmada/constituída pelas grandes narrativas individuais.

Procurou-se uma reflexão sobre a relação artista/grande narrativa, pela voz do próprio.

 

3. A 'Grande Narrativa' na voz dos próprios artistas

A título demonstrativo, apresentam-se 3 perguntas exemplo utilizadas para lançar o tema à conversa:

Quando olhas para trás, parece-te que estás a criar uma grande construção, um todo maior do que o somatório das partes? (pergunta efectuada a R. Chafes);
Quando olha para a totalidade da sua obra, considera que o conjunto dos seus trabalhos constroem um 'grande quadro'? Encontra um sentido transversal? Até, eventualmente, surpreendente para o próprio criador. (pergunta efectuada a E. Batarda);
Existe uma corrida de fundo no percurso criativo? Que importância tem esse 'grande quadro' na tua própria prática. […] Trabalhas conscientemente sobre esse 'grande quadro'? […] (pergunta efectuada a A. Gonçalves).

Encontra-se em Anexo 1 o conjunto das várias respostas apresentadas pelos diferentes artistas. Esse corpo, essa pluralidade de discursos, a voz dos artistas, enforma o conteúdo sobre o qual se pretende reflectir e a partir do qual se construiu uma aproximação à grande narrativa estruturada em forma de manifesto.

 

4. Das entrevistas ao manifesto

Parte de um todo maior, o manifesto aqui proposto resulta da análise qualitativa do documento com o registo de todas as conversas com os 27 artistas plásticos portugueses.

Primeiro, num movimento indutivo, identificaram-se e sistematizaram-se um conjunto de 'lugares estruturais comuns' (Hiernaux, 2005), um conjunto de grandes campos de interesse transversais às várias entrevistas. Por exemplo: a relação entre pares, o discurso do artista, a grande narrativa, o atelier, a esfera artística… Os lugares estruturais comuns funcionaram enquanto códigos para sistematizar, ordenar, classificar, categorizar a informação (Saldaña, 2009).

Posteriormente, através da 'condensação descritiva' (Hiernaux, 2005), e num esforço de síntese interpretativa, dirigiu-se o sentido veiculado pelas palavras dos artistas (por vezes com níveis de abstracção elevados) aos respectivos lugares estruturais comuns do discurso, reconduzindo o conjunto de formas complexas de sentido a unidades de sentido comuns simples. Por exemplo: olhar retrospectivo, olhar prospectivo, consciência do 'grande quadro,' para lá da grande narrativa…

Por fim, consequência do processo interpretativo, acrescentou-se por cima dos resultados obtidos uma leitura de dimensão pessoal, no domínio do subjectivo, que, embora sediada nas palavras dos artistas, não se sentiu necessariamente vinculada a elas, acrescentando um entendimento autoral próprio, como um discurso sobre os discursos, materializado, num momento de convicção, na forma de manifesto artístico.

O manifesto (e o discurso nele contido, por vezes passível de ser considerado, ele próprio, objecto artístico), contêm em si uma elasticidade cara às idiossincrasias contidas nos discurso dos criadores, no discurso artístico. Justamente por isso, pela sua natureza afim das estratégias criativas, pela sua clara abertura, pela própria possibilidade plástica e enquanto ferramenta discutida e reconhecida pela História da Arte, o manifesto é aqui utilizado, num esforço de síntese, enquanto instrumento reflexivo e espaço operativo para construir.

 

Manifesto 'A Grande Narrativa'

  1. O objecto artístico é um objecto que é artístico.
  2. Enquanto objecto é coisa. É contentor, é vazio. É frio, seco, árido.
  3. Não existe narrativa no objecto.
  4. Enquanto artístico possui um muito complexo mecanismo interno, possui artisticidade. Possui artista.
  5. Existe artista no objecto artístico. Existe narrativa no artista. Existe narrativa no objecto artístico.
  6. O objecto artístico é a narrativa. O artista é a Grande Narrativa.
  7. A Grande Narrativa é o artista.
  8. A Grande Narrativa é o processo, o percurso, a ânima, o desejo, a ferida, o nó, o motor.
  9. O motor é o artista.
  10. O artista é a Grande Narrativa.
  11. A Grande Narrativa interessa ao artista.
  12. Quem pensa a Grande Narrativa é o artista.
  13. Quem pensa o artista é o artista, é o outro o artista.
  14. O artista pensa o artista. O outro não pensa o artista.
  15. Outro pensa o objecto.
  16. O artista não é consciente da Grande Narrativa.
  17. O artista é consciente da Grande Narrativa.
  18. A Grande Narrativa é o grande interesse aglutinador, é um entendimento alargado. É retrospectiva, é a exposição retrospectiva, é prospectiva.
  19. A Grande Narrativa é mais do que o conjunto das obras de arte, é outra coisa que não o conjunto dos objectos artísticos.
  20. A Grande Narrativa é o artista.
  21. A Grande Narrativa é o artista, todo.
  22. A Metanarrativa é todos os artistas, é tudo.
  23. Existe uma Grande Metanarrativa que é maior e mais complexa que a Metanarrativa, muito maior e mais complexa que a Grande Narrativa e muito muito maior e mais complexa que a Narrativa.
  24. A Grande Metanarrativa é coisa da espiritualidade.
  25. A espiritualidade é a Grande Metanarrativa.
  26. Sempre existiu uma Grande Metanarrativa!
  27. Sempre existiram Metanarrativas, Grandes Narrativas e Narrativas.
  28. Sempre existiram artistas. Existe o artista.

 

Referências

Hiernaux, J-P. et al. (2005) Práticas e métodos de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva. ISBN: 9789726625544.         [ Links ]

Olaio, António (2005) Ser um Indivíduo Chez Marcel Duchamp. Porto: Dafne Editora. ISBN: 9789729901973.         [ Links ]

Saldaña, J. (2009) The Coding Manual for Qualitative Researchers. Los Angeles: Sage Publications. ISBN: 9781847875495.         [ Links ]

 

 

Anexo 1

– A 'Grande Narrativa' na voz dos próprios artistas.

Elenca-se aqui o conjunto das varias respostas apresentadas pelos diferentes artistas que enforma o conteúdo sobre o qual se pretende reflectir e a partir do qual se construiu uma aproximação à grande narrativa estruturada em forma de manifesto:

"Eu não penso muito nisso […] mas consigo perceber que o que me liga às coisas é sempre o mesmo…" (A. Cepeda, 2010);
"As obras tendem a ser cumulativas e nesse sentido, aquilo que fiz antes concorre para um melhor entendimento daquilo que faço hoje. Algo que tem a ver com perspectiva… (ou retrospectiva) histórica de uma obra." (A. Ferreira, 2011);
"Não [persigo esse 'grande quadro']… Mas […]" (C. Mateus, 2011);
"O 'grande quadro' como súmula do meu percurso… Não sei […] Mais do que uma grande construção, consigo ver uma continuidade." (J. de Guimarães, 2011);
"No início não tens essa percepção mas ao fim de alguns anos…" (G. Burmester, 2011);
"O meu trabalho, naquilo que diz respeito à ideia de escultura, mantém-se. Procuro as mesmas formas, utilizo o mesmo alfabeto, as mesmas obsessões." (Z. de Carvalho, 2011);
"Olhando para o meu percurso artístico, reconheço momentos (geralmente passado um certo tempo) que foram particularmente interessantes para o meu desenvolvimento criativo." (P. Calapez, 2011);
"[…] quando olho retrospectivamente encontro um tema aglutinador. E isso é estimulante." (J. P. Vale, 2011);
"Tenho consciência desse percurso maior do que a obra em si. […] E a selecção das obras que realizo têm em atenção o que está para trás e o que perspectivo para o futuro… […] Procuro que as minhas peças façam sentido nesse percurso… nesse grande percurso, nesse 'grande quadro'." (A. Gonçalves, 2010);
"Sim, por vezes tenho a impressão [que estou a construir] uma narrativa maior. Não é uma coisa programada…" (C. Mateus, 2011);
"Às vezes não tenho dúvidas nenhumas, às vezes parece-me evidente.
E parece-me que sempre estive a fazer isso, mesmo quando não tinha uma noção clara que estava a criar essa grande construção… E essa tomada de consciência é, em si, um processo de construção." (J. Vasconcelos, 2011);
"Essa 'grande obra' é sempre uma construção exterior ao próprio artista. O próprio não tem consciência dela. É, normalmente, e por necessidade, catalogada por quem é exterior." (A. Carneiro, 2011);
"Pode ler-se alguma coerência nas abordagens que fui fazendo. Vejo que há uma preocupação na procura de uma linguagem, uma forma de dizer com um discurso não complexo ou excessivo. Tento utilizar um discurso simples… E o tempo foi passando e fui deixando coisas para trás […] O tempo parece-me sempre insuficiente." (Z. de Carvalho, 2011);
"'A grand jatte'. Um trabalho para a vida […] Acho que sim." (A. Gonçalves, 2010);
"[…] Parece-me que sim." (F. Queirós, 2010);
"Eu acho que estou a construir uma 'grande obra' […] e é interessante o K. Schachter traduzir essa 'grande obra' como a caixa do 'speakers corner'. […] Tudo é um pretexto para me por em cima de uma caixa de sabão […] e dizer a toda a gente o que tenho para dizer. E eu imagino-me em cima dela de cuecas ou com o traje Talar." (A. Olaio, 2010);
"[…] verifico que há discursos ou ideias que vão transitando de obra para obra. São insistências que não desaparecem." (Z. de Carvalho, 2011);
"Sempre achei que estava a fazer diferente e começo agora a perceber que tenho andado a tratar sempre das mesmas coisas." (M. Palma, 2010);
"Sem perceber, estou sempre a fazer a mesma coisa" (C. Mateus, 2011);
"O artista faz sempre o mesmo trabalho." (G. Burmester, 2011);
"Sim, há. […] Os temas acabam por se repetir, embora sempre de forma diferente. […] E eu procuro surpreender-me nas minhas próprias exposições." (C. Filipe, 2010);
"[…] quando exponho […] por vezes surpreendo-me a mim mesmo." (G. Burmester, 2011);
"Existe [um grande quadro sobre o qual estou a trabalhar] e parece-me mais importante que as obras individuais." (P. Mendes, 2010);
"Agora, com 70 anos, vejo que tracei um percurso […]" (Z. de Carvalho, 2011);
"Não considero que o meu percurso seja o somatório de pequenos pedaços soltos mas também não vejo um 'grande quadro'. Há uns anos atrás não diria isto, mas agora, olhando para o meu percurso, consigo encontrar linhas de pensamento e obsessões pessoais constantes." (J. Tabarra, 2010);
"Por vezes (poucas vezes) tenho consciência que acertei. Há trabalhos que percebo logo que funcionam. Noutros casos só tenho essa consciência mais tarde". (G. Burmester, 2011);
"Espero que o meu trabalho não seja condicionado por essa ideia. E sim, eu tenho um programa.
E percebo que há um conjunto de trabalhos que vão cosendo um tecido entre si. E é esse tecido que um dia, não estando necessariamente pronto… estará maior. […]
Trabalho os temas que sempre me interessaram (e julgo que me vão interessar sempre) mas pelo meio vou fazendo férias… […] Pelo meio faço desvios conscientes. De quando em vez, percebo que há trabalhos que se desviam desse programa. São trabalhos que, intencionalmente quero fazer, exactamente porque não acho que tenha que me limitar a uma única experiência." (D. Blaufuks, 2011);
"[…] Agora, olhando para trás, fico espantado e não consigo perceber o que vejo. De uma forma muito sincera, acredito que vou começar a perceber o que fiz a partir dos 90 anos, através de um olhar retrospectivo mais completo e mais compreensivo. Até lá, tudo o que faço são fragmentos que funcionam como fotogramas de um filme que ainda não está montado." (R. Chafes, 2011);
"Considero que uma fotografia funciona como uma frase de um texto ao qual ela pertence." (D. Blaufuks, 2011);
"Esse 'grande quadro' é constituído por pequenos bocados." (G. Burmester, 2011);
"Essa 'grande obra', o 'the big picture', só acontecerá se tu conseguires continuar a dar pequenos passos sólidos." (J. Vasconcelos, 2011);
"Gosto de apresentar um corpo de trabalho múltiplo e gosto de ver o espaço bem preenchido pelo trabalho. O que me tem acontecido ultimamente é que as coisas funcionam muito bem juntas, mas quando elas são deslocadas daquela família, quando são apresentadas individualmente, num outro local, perdem […] Parecem-me estar todas interligadas num grande percurso. Pode ser apenas uma questão pessoal, pelas relações estabelecidas durante o processo da sua criação." (F. Queirós, 2010);
"Vendo-me ao espelho, olhando para o meu trabalho, é bom sentir que não reprimi um conjunto de coisas que estavam latentes e que acabaram numa panóplia de trabalhos. Se isso é essa [grande] obra, num sentido Wagneriano… não sei… e não me preocupo muito… Gostava de ter uma retrospectiva bem feita para perceber isto mesmo, mas não há pressa." (P. Proença, 2011);
"Mais importante do que os trabalhos tomados individualmente é o conjunto da obra de cada artista, é o discurso que vai sendo elaborado ao longo dos anos pela sua obra. […] O artista está a criar uma espécie de fresco sobre a sua época, cruzando a memória do passado com as reflexões do presente." (P. Mendes, 2010);
"Para mim é claro: há dois tipos de artistas. Os artistas que têm obras (que podem ser brilhantes) e os artistas que têm obra. A mim interessam-me os artistas que têm obra, uma obra que nasceu algures e continua algures, numa busca constante de qualquer coisa." (A. Carneiro, 2011);
"Por vezes tento criar cortes no meu trabalho. Mais tarde, aquilo que me pareceu ser um corte foi, na realidade, a continuação de um mesmo percurso. Efectivamente, aquilo que me parecem ser fases diferentes não são assim tão distintas. Olhando para trás vejo um fio condutor. Isso acontece de forma inconsciente." (G. Burmester, 2011);
"Ou porque me pedem para remontar uma peça, ou porque arrumo o atelier, ou por uma outra qualquer razão, estou sempre a voltar atrás […] Nesses momentos descubro, percebo e reconheço invariantes no meu trabalho. Mas, e embora encontre essas invariantes, não reconheço nem me identifico com essa imagem do "grande quadro". Não considero que exista uma grande coisa, não encontro uma grande narrativa. Na realidade, muito mais do que essas continuidades […], interessam-me as descontinuidades. Acredito que é nas descontinuidades que há coisas a acontecer." (M. Leal, 2011);
"[…] tenho dificuldades em ver esse todo. Tenho muitas dificuldades em ver o meu percurso como um grande projecto. Ele não é planeado nesse sentido. […] A estratégia não é totalmente clara nem completamente definida à partida. A estratégia vai-se construindo." (A. Ferreira, 2011);
"[Sobre a construção de um 'grande quadro',] creio que não. A menos que essa leitura [transversal] seja um processo de não-entendimento e incompreensões, como é provável que aconteça. Noto com satisfação alguma variedade nos meus trabalhos, ao mesmo tempo que verifico que aquilo que para mim constitui mudanças é visto pelos outros como manutenção de uma mesma linha de trabalho." (E. Batarda, 2011);
"Há pouco tempo fiz uma apresentação do meu trabalho ao doutoramento da ESBAL. No final, o Manuel Botelho veio dizer-me que a leitura e o discurso que eu produzi sobre meu trabalho tinha revelado ligações entre as diferentes fases do meu trabalho, evidenciando continuidades onde antes pareciam surgir descontinuidades." (P. Calapez, 2011);
"Acho que nunca trabalhei no sentido dessa tal 'big picture' […] Não tenho um meio de trabalho específico. Não há uma linguagem que me possa definir ou identificar [e] o meu trabalho parecia-me um grande caos o que me provocava alguma frustração. Só agora começo a encontrar no meu percurso esse 'grande quadro'. Consigo agora encontrar e perceber as ligações entre os meus trabalhos." (C. Cruz, 2010);
"Cada vez me parece mais importante olhar para os percursos individuais e percebe-los como um corpo contínuo e coerente." (P. Mendes, 2010);
"Sei exactamente o momento em que tomei consciência de que estava a tratar as questões de identidade. […] A partir dessa altura, e sempre que faço um novo trabalho, relaciono-o conscientemente com as questões de identidade. […] E julgo que os meus trabalhos giram sempre à volta dessas questões." (M. de Menezes, 2010);
"Há qualquer coisa que se persegue e que parece ser sempre a mesma coisa. Fazer repetidamente a mesma coisa acaba por criar algo maior. E isso acaba por ser perceptível. Em certa medida [acaba por se construir um 'quadro maior']." (C. Mateus, 2011);
"A existir essa ideia maior, ela será consequência de um somatório de momentos e de ideias […]" (Z. de Carvalho, 2011);
"À medida que os anos vão passando a minha obra tem evoluído em determinados sentidos. Contudo, sinto que existe uma matriz nos diferentes temas que vão sendo tratados. Essa matriz, mais acentuada nuns casos do que noutros, está presente em praticamente todos os momentos […] [e] as ideias anteriores funcionam como sementes para novas ideias germinarem." (J. de Guimarães, 2011);
"Vou fazendo, vou trabalhando e vou conquistando coisas que previamente não tinha. […] As coisas sucedem-se conforme vou respondendo e tentando resolver as interrogações que se são colocadas." (Z. de Carvalho, 2011);
"Tenho vontade que as minhas obras sigam o seu percurso, autónomas, e possam ajudar a gerar outras obras de outros criadores. Tem a ver com uma ideia de reciprocidade. Talvez isso possa ser a 'grande obra', não limitada à pessoa que a criou, mas num sentido mais lato de grande/constante transformação.
De resto, sou um artista tão miserável como os outros… mas sou feliz!" (P. Proença, 2011);
"A vida e a obra são a mesma coisa. A obra não se separa do artista. As verdadeiras obras e os verdadeiros artistas são aqueles onde não existe separação entre uma coisa e a outra. As obras construídas com sinceridade, seriedade e integridade não são uma obra, são uma vida.
Isto não é um emprego e a porta do atelier nunca se fecha." (J. Vasconcelos, 2011);
"[A Grande Narrativa existe como a] identidade individual da pessoa [e] o 'grande quadro' é a vida organizada." (G. Burmester, 2011);
"As coisas mais pequenas são, por vezes, as mais importantes. Vitais até. As grandes questões mantêm-se as mesmas e faz sentido que assim o sejam. […] Para a exposição 'Les Limites du Désert' senti necessidade de voltar atrás… de começar outra vez." (J. Tabarra, 2010);
"Não considero que esteja a fazer nada de dramaticamente diferente daquilo que os meus pares fazem. […] A identidade foi sempre uma obsessão humana (com perfeita razão de ser). E continua a ser relevante trabalhar as questões de identidade. […] Trabalhar sobre a minha identidade é também trabalhar sobre a identidade do ser humano. E julgo que os meus trabalhos giram sempre à volta dessas questões." (M. de Menezes, 2010);
"Quando olho para trás vejo um todo. Vejo um crescimento: vejo uma infância, uma pré-adolescência, uma adolescência… […] Os problemas que me são apresentados em cada uma desta etapas são em tudo semelhante aos problemas que elas proporcionam nas nossas vidas." (F. Queirós, 2010);
"[…] naquilo que é essencial, as questões levantadas pelos artistas são basicamente sempre as mesmas." (G. Burmester, 2011);
"Percebe-se que outros artistas percorrem os mesmos caminhos." (P. Calapez, 2011).

Excertos do material coligido, decorrente do registo áudio das conversas tidas com os 27 artistas plásticos (com posterior edição e respectiva revisão final por parte dos próprios), no âmbito do Doutoramento em Estudos de Arte 'O Artista pelo Artista na voz do próprio' (Universidade de Aveiro – com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia). Publicado com o consentimento expresso dos artistas.

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: franciscocardosolima@gmail.com (Francisco Cardoso Lima).

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