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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

HABITAR

A relação corpo/objeto e o discurso poético das proposições de Lygia Clark

The relation body/object and the poetic speech on Lygia Clark work

 

Fernando A. Stratico*

*Brasil, actor, diretor. Graduação em educação artística, habilitação em artes plásticas. Professor no departamento de Música e Teatro, Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Este artigo apresenta uma análise da relação corpo/objeto presente nas proposições de Lygia Clark. Como material de suporte, tomamos os próprios textos de Clark, e também o conceito de hiperrealidade apresentado por Baudrillard, de modo a demonstrar que o objeto da proposição – por suas qualidades intrínsecas – é desencadeador de estados físicos e psíquicos, sendo o centro irradiador que desperta o ato – a ação corporal – e o encontro com outro.

Palavras-Chave: Lygia Clark, Proposições, Hiperrealidade.

 

 

ABSTRACT
This paper presents an analysis on the relationship between the body and the object of Lygia Clark´s propositions. As support material we take Clark´s own texts, and also the concept of hyperreality developed by Baudrillard, in order to demonstrate that the object, by its intrinsic qualities, is the generating centre of physical and psychical states which awaken the act – the bodily action – and the encounter with the other.

Keywords: Lygia Clark, Propositions, Hyperreality

 

 

Introdução

Lygia Clark, artista brasileira, nascida na cidade de Belo Horizonte, em 1920, iniciou-se nas artes, no ano de 1947, sob a orientação de Burle Marx. No ano de 1950 viaja para Paris, onde estudou com Léger, Dobrinsky e Arpad Szenes. Em 1954, engajou-se com o Grupo Frente, cuja perspectiva situava-se na pesquisa radicalmente abstrata e construtivista. Suas incursões pela pintura e escultura a levaram ao reconhecimento de seu trabalho, como um dos mais significativos nomes do Concretismo. Fases posteriores caracterizaram uma artista em constante transformação de si mesma. A fase das proposições substitui a investigação concreta, e posteriormente é abandonada em função de seu trabalho com os objetos relacionais, experiência esta calcada na terapia.

No início dos anos sessenta, Lygia Clark, passou a concentrar seu interesse e atenção sobre o que ela chamou de proposições. Ao invés de obras elaboradas para o consumo, como eram suas esculturas " Bichos", feitas para serem contempladas ou manipuladas pelo espectador, Clark passou a propor obras que existiam unicamente por meio das ações dos espectadores. Tais proposições consistiam em ações realizadas com objetos, geralmente industrializados. Este estudo apresenta uma análise crítica voltada para a relação corporal estabelecida entre os participantes das proposições e os objetos escolhidos por Clark. Nosso intuito é evidenciar, além do resgate da nostalgia do corpo, como propunha Clark, também o resgate do sentido do objeto para o corpo e para o eu. Evidenciamos também o quanto Clark foi pioneira ao desenvolver uma poética que se fundava na relação com o Outro. O objeto, na obra propositiva de Clark é um elo que une a artista a outros sujeitos.

 

1. O Ato da Proposição

Na tentativa de explicar as ações que acontecem no momento da proposição, Clark elaborou com esmero um pensamento que se voltava para o ato. Para ela, o ser humano é uma 'totalidade espaço-temporal". O ato imanente tem a capacidade que fazer com que ultrapassemos o limite temporal. De acordo com Clark, as ações imediatas de uma proposição fazem com que o passado, o presente e o futuro se misturem. Clark fala sobre a percepção de um tempo absoluto que incorporaria o que estaria sendo derivado do ato em si. No ato da proposição, afirma a artista, não existe distância entre o passado e o presente. Estas dimensões de nossa psiquê estariam fundidas, e assim percebidas no momento do ato instantâneo da proposição (Clark, 1980: 24). Clark salienta também que o ato não é renovável, a repetição de uma proposição ou ato seria a configuração de uma outra significação. Nenhum traço da percepção passada poderia estar presente em uma repetição. Conforme Clark:

Só o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém em si mesmo seu próprio excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante do ato é a única realidade viva em nós mesmos. Tomar consciência já é ser no passado. A percepção bruta do ato é o futuro de se fazer. O passado e o futuro estão implicados no presente-agora do ato (Clark, 1980: 27).

A intenção que antecede ao ato é a de despertar a nostalgia do corpo, a qual diz respeito, em nossa visão, à triste memória, e estado de melancolia de um corpo fragmentado que busca sentir-se um todo, busca redescobrir-se (Clark, 1975: 2).

Caminhando (1964) é uma das primeiras proposições de Clark. Nesta obra, estão em jogo, o ato e a nostalgia do corpo. Sua instrução verbal propõe que uma fita de Möbius (em papel) – a expressão matemática do infinito – seja cortada longitudinalmente com uma tesoura, até que se acabe o percurso da tesoura e do corte. Conforme Clark, Caminhando é uma proposição destinada àqueles cujo trabalho perdeu toda a expressividade – o diálogo do artesão com sua obra. Clark argumenta que as relações com o trabalho foram destituídas da expressividade, de modo que o trabalho tornou-se estranho ao ser humano. Clark supunha ser necessário, portanto, que se buscasse redescobrir o próprio gesto que contem uma nova significação. Porém, para que isto acontecesse seria necessário que houvesse algo mais além da manipulação de objetos e participação do espectador. Conforme Clark, há uma necessidade em que "a obra se complete em si mesma e seja um simples trampolim para a liberdade do espectador-autor" (Clark, 1980: 27).

De acordo com Clark, a importância de Caminhando está no ato de cortar, e não exatamente na fita. Quando a experiência se acaba a fita é jogada fora, restando apenas o ato do corte e a imanência deste ato. Para Clark o novo conceito de imanência foi "a coisa mais importante que o Caminhando lhe trouxe" (Clark, 1968). Nas palavras de Clark:

A primeira vez que cortei o Caminhando, vivi um ritual muito significativo. E eu desejo que esta mesma ação seja vivida com a máxima intensidade pelos participantes futuros. É preciso que ela seja puramente gratuita e que ninguém procure saber – quando estiver cortando – o que vai ser cortado a seguir ou o que já foi talhado antes (Clark, 1980: 27).

Embora Clark tanto enfatize a importância do ato em detrimento do objeto em si, gostaríamos de destacar o papel propulsor e catalisador dos objetos e materiais de suas proposições. A imanência do ato, ou seja a experiência pura de um ato compromissado unicamente com a ação presente, só é possível pelas qualidades emanadas do objetos. Cada material escolhido por Clark traz consigo uma potência expressiva e também sensitiva. Textura, temperatura, flexibilidade, durabilidade, cor, cheiro são algumas das qualidades dos materiais, as quais fazem emanar, no ato, energias e estados específicos. Não é um mero acaso, que Clark passava longos períodos apenas em busca de materiais. A folha plástica, fina e flexível, esteve presente em várias de suas instalações e proposições:

Estou numa fase de doido. Trabalhando como uma maluca, comprando plástico que é baratíssimo, catando pedras nas ruas, ajuntando aqueles sacos vazios e felicíssima! Acho que é a primeira vez que estou num tal estado depois da descoberta do Bicho (Figueiredo, 1998: 142)

Embora o ato em si, esvanecendo no tempo e no espaço, fosse o objetivo maior contido em suas propostas, era do objeto que emanavam estados corporais específicos, e sem tais objetos não seria possível despertar e fazer explodir a energia corporal e psíquica entre os participantes. Não podemos esquecer também que o material e objeto utilizado nas proposições eram também signos carregados de sentidos e conexões ideológicas. Assim como a fita de Möbius está plena de sentidos e pensamentos, outros materiais como o plástico e a borracha estão repletos de conteúdos aos quais somos remetidos mesmo inconscientemente. Invertendo a relação com os materiais que são fundamentais para a sociedade de consumo, Clark apresenta uma relação do não-trabalho, do não consumo, da não-utilidade. Neste sentido, Clark toca no que Jean Baudrillard veio a chamar de hiperrealidade – uma realidade social na qual perdemos a relação direta com os objetos, uma vez que estes deixaram de ser feitos para a utilização, sendo construídos e consumidos apenas como significação.

De acordo com Baudrillard a concepção tradicional de signo como um elo entre o significante e significado, que refere-se a um conceito, não é mais possível, porque as representações da realidade foram tomadas por uma interminável sequência de representações da realidade (Baudrillard, 1992: 179). O signo não situa o sujeito em relação a uma representação da realidade; o signo refere-se a outro signo, a outra significação, e assim sucessivamente.

Esta avalanche de signos, de acordo com Baudrillard, está presente no âmbito da vida diária, bem como na ciência, na arte, na tecnologia, na religião, na linguagem, etc. É provável que isto seja o resultado da sociedade de consumo em que vivemos, na qual o objeto de consumo é o resultado da reprodução constante de significações. O objeto deixou de possuir um elo com a realidade de seu próprio uso e utilidade, porque agora ele está além da realidade, habitando, assim, a esfera das significações (Baudrillard, 1992: 10-28).

Atentos à crítica à sociedade de consumo, Lygia Clark, assim como Hélio Oiticica "sabotavam" o ciclo consumista e hiperreal presente até mesmo nas galerias de arte. As referências a Herbert Marcuse são muitas, e estão ligadas a um sentido de "marginalidade", principalmente na obra de Oiticica. Porém, diante da hiperrealidade – uma sociedade em que os objetos é que significam e dão valor à pessoa humana – Clark contrapõe e encara esta realidade com propostas de ações que devolvem um sentido perdido do corpo e de seu posicionamento no tempo e no espaço. No centro destas ações está o objeto, que se torna propulsor de energias físicas e psíquicas e também aglutinador e ponto de encontro entre as pessoas. Em Baba Antropofágica (1973), por exemplo, toda a energia psíquica e física dos participantes é gerada por fios de carretéis que são retirados da boca dos participantes, que embebidos em saliva são deixados cair sobre o rosto e corpo de um outro que está deitado. A substância da vida vai, assim, sendo derramada, ou dada para aquele que, passivamente, a recebe. Como em todas as proposições, Clark faz a instrução lingüística para a ação que deve ser desempenhada (performada) pelos participantes. Mas ela própria não enfatiza o valor do objeto que centraliza a ação. Clark concentra-se em abordar uma espécie de "perda da substância" (Milliet, 1992: 139). Porém, sem os fios que primeiramente são colocados na boca, e posteriormente retirados como uma seda de aranha, sem a concretude do material e seus significados embutidos, não seriam possíveis nenhuma das ações e dimensões alcançadas. Portanto, há nestes fios (assim como na fita de Möbius, tesoura, etc) um potencial que age em dois sentidos fundamentais: o corpo do participante e a relação com o outro. O objeto possui a capacidade de ser símbolo, metáfora – como evoca Clark em suas proposições ? e também a capacidade de ser resgate de dimensões perdidas ou esquecidas do corpo, que se revela no encontro com o outro, que do mesmo modo se relaciona com o objeto.

Embora as proposições incluam a participação do outro, Clark ainda preserva os processos solitários de elaboração e criação, nos moldes em que são articulados pela maioria dos artistas. Ainda são seus estes processos, e deles ela não chega a abrir mão. Clark reconhece, no entanto, que seus processos dizem respeito a um compartilhar da obra, sendo que o objeto, os materiais por ela escolhidos, agem como pontes entre a sua corporalidade e a daqueles que a artista almeja tocar.

 

Considerações Finais

Nossa reflexão, voltada para as proposições, tomou como exemplos-chaves as obras Caminhando e Baba Antropofágica e indica que a experiência de Clark com objetos e materiais delineia uma poética do corpo que está intimamente ligada à poética do objeto cotidiano. Clark rompe com a relação costumeira mantida em relação ao universo material, e estabelece uma nova relação com o mundo dos objetos. Tal relação restitui um sentido de unidade com o mundo físico, e também com o outro. O objeto na obra de Clark situa-se, portanto, como centro da experiência, por ser ele a potência geradora do encontro. Esta perspectiva pioneira de Clark repercute fortemente nos inúmeros trabalhos da atualidade, que, do mesmo modo, fundamentam-se em poéticas que dependem do objeto cotidiano e também do encontro com o outro para existir.

 

Referências

Baudrillard, Jean (2001) Selected Writings. London: Polity Press. ISBN: 0804742731.         [ Links ]

Clark, Lygia (1980) Lygia Clark. Textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mário Pedrosa. Rio: FUNARTE. Sem ISBN.         [ Links ]

Clark, Lygia (1975) "Da supressão do objeto (Anotações)". Catálogo da Fundação Antoni Tàpie, trad. e aquivo da A. C. O Mundo de Lygia Clark. Navilouca. Rio de Janeiro.         [ Links ]

Clark, Lygia (1968) 'Lygia Clark e a Proposição da Imanência'. Jornal do Brasil. Rio: 06/01/68         [ Links ]

Figueiredo, Luciano (ed) (1998). Lygia Clark – Hélio Oiticica – Cartas – 1964-74. Rio: Editora UFRJ. ISBN 85-71081913         [ Links ]

Milliet, Maria Alice (1992). Lygia Clark: Obra-Trajeto. São Paulo: EDUSP. ISBN 85-314-0064-3         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: fernando.str@hotmail.com (Fernando Stratico).

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