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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

LUGAR

Pina Bausch, de referência mundial ao trabalho social – Kontakthof através das gerações

PinaBausch, from world referenceto social work: "Kontakthof"through generations

 

Marina Milito de Medeiros* & Sayonara Sousa Pereira**

*Marina Milito de Medeiros: Brasil, atriz. Mestranda em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bacharel em Artes cênicas pela UNICAMP.

**Sayonara Sousa Pereira (Sayô Pereira): Brasil, bailarina, coreógrafa, professora efetiva na Escola de Comunicações e Artes – Departamento de Artes Cênicas – da Universidade de São Paulo – ECA/ CAC/ USP. Doutora em Artes-Dança pela UNICAMP/2007. Na Alemanha, a convite de SusanneLinke, especializou-se na FolkwangHochschule- Essen, escola dirigida por Pina Bausch, e licenciou-se em Pedagogia da Dança na HochschuleFürMusik-Tanz / Köln (Colônia). Coordena o LAPETT (Laboratorio de Estudos e Pesquisas em Tanztheater – ECA-USP).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O presente artigo pretende contextualizar o trabalho de Pina Bausch (1940-2009), referência mundial do Tanztheater, aprofundando em sua obra Kontakthof (1978). Com esse trabalho, Bausch se apropria de um seguimento que inclui o trabalho social, chamando para integrar o espetáculo, não profissionais com idade acima de 65 anos e adolescentes, moradores da cidade de Wuppertal, questionando o que é arte e quem são os artistas.

Palavras chave: Pina Bausch, Kontakthof, Gerações.

 

 

ABSTRACT
This article seeks tocontextualizethe work of Pina Bausch (1940-2009), a world reference in Tanztheater, focusing in her piece Kontakthof (1978).With this project,Bausch appropriates social work, calling to integrate her piece, non-professionals,aged over 65 years and teenagers, residents of the city of Wuppertal, questioning what is art and who are the artists.

Keywords: Pina Bausch, Kontakthof, Generations

 

 

Pina Bausch e o tanztheater

Pina Bausch nasceu em 1940, em Solingen, Alemanha, iniciando muito cedo sua formação no ballet clássico. Aos 15 anos foi estudar na FolkwangSchule, na cidade de Essen, na época dirigida por Kurt Jooss (1901-1979), tendo uma formação profissionalizante de quatro anos em dança.

Como aluna-mestra de Kurt Jooss, Bausch recebeu, inicialmente, forte influência da filosofia e pedagogia de trabalho de seu Mestre, e a partir dessa relação desenvolveu seu próprio trabalho, utilizando no decorrer dos anos, cada vez mais elementos do teatro e de outras linguagens artísticas em suas peças coreográficas. Com uma abordagem muito própria, a coreógrafa incorporou elementos do teatro, e da dança moderna americana, da década de 1960, os quais pôde experimentar no período em que estudou em Nova York, em diálogo com elementos da dança moderna alemã.

Em 1973, aos 33 anos, já de volta a Alemanha, assumiu o cargo de coreógrafa-residente na Ópera de Wuppertal. Ao aceitar este cargo modificou o nome do estabelecimento para TanztheaterWuppertal, e incrementou a maneira como a dança passou a ser pensada e realizada em Wuppertal e no mundo.

No tanztheater (Dança Teatral), a personalidade, as histórias e as vivências dos intérpretes permeiam o processo de criação das obras (Pereira, 2010). Bausch verticalizou seu trabalho nesse sentido, buscando expor o lado mais humano de seus bailarinos, a fragilidade, suas dúvidas e inquietações, fazendo com que o público se identifique com o ser humano à sua frente, sem impedir que o bailarino se utilize das diferentes técnicas apreendidas ao longo de sua carreira.

 

1. Kontakthof – 3 versões

Kontakthof – pátio de contatos, lugar de encontro, espaço de troca, de busca pelo outro. Segundo Climenhaga (2009: 73), o termo traduzido do alemão pode tanto significar lugar de encontro, normalmente se referindo a pátios de escola ou de prisões, como pode ser utilizado para se referir ao local em que as prostitutas encontram seus clientes. Está entre as primeiras peças de Pina Bausch com o WuppertalTanztheater, criada a partir de um tema e construída com material trazido pelos bailarinos, formato esse, que a coreógrafa lapidou ao longo de mais de 30 anos de trabalho junto à Companhia e que se tornou sua marca registrada.

A criação de Kontakthof girou em torno de conflitos inerentes às relações humanas, relações de poder, de carinho, de submissão, de descoberta e de exposição. Segundo Bausch; 'Ternura e o que nasce dela foram temas importantes no trabalho' (L'arche, 2007: 8); 'O que é isso? Como alguém demonstra? Para onde vai? E quão longe a ternura pode ir?' (Climenhaga, 2009: 72), foram algumas das perguntas feitas aos bailarinos ao longo do processo de criação.

A peça é extremamente teatral e se utiliza de movimentos simples, como colocar as mãos no bolso, esfregar as mãos, coçar a orelha e segurar os cabelos, que realizados em coro pelos bailarinos, ganham nova força e sentido. Praticamente toda a coreografia é construída a partir de gestos cotidianos, estejam eles em sua forma realista, deslocados de seu contxto original ou estilizados dentro de uma célula coreográfica.

Kontakthof foi apresentado pela primeira vez com os bailarinos do WuppertalTanztheater, em 1978. Em 2000, estreou uma versão realizada por senhores e senhoras maiores de 65 anos, e no final de 2008, 30 anos depois de sua primeira premiere, estreou uma nova versão, realizada por adolescentes com idade entre 14 e 17 anos. É uma das peças mais conhecidas de Bausch e vem sendo apresentada há mais de 30 anos, sem perder sua força e qualidade dramática, independente do grupo que o executa.

1.1 Kontakthof ao longo das gerações

No final da década de 1990, Bausch deu início a esse projeto inovador. Ela, que desde o início de sua carreira arriscou em suas abordagens poéticas, mais uma vez surpreendeu ao iniciar o trabalho de montar Kontakthof com senhores e senhoras acima de 65 anos. Depois de uma carreira já consolidada e de ter se tornado uma referência mundial da cena contemporânea, Bausch se apropria de um seguimento que inclui o trabalho social.

O trabalho que Bausch havia desenvolvido até então já apresentava como característica diferencial em relação a outras Companhias de dança, o fato de permitir que seu elenco continue dançando indeterminadamente, independente da idade que atinjam (Dominique Mercy, um de seus principais bailarinos, tem hoje mais de 60 anos). A coreógrafa soube valorizar qualidades que só a idade pôde trazer para os intérpretes, saberes que só o passar dos anos são capazes de produzir e colocar em cena.

No projeto com senhores e senhoras, ela amplia esse conceito, mostrando que além de não existir limite de idade pra dançar, não existem limites para a dança. Qualquer um pode dançar, não apenas bailarinos profissionais. Bausch demonstra a idéia, muitas vezes defendida por Laban, de que o movimento é algo inerente aos animais, portanto a dança é inerente ao Homem.

O corpo dos senhores e senhoras está impregnado de Histórias, cada uma das rugas expostas são anos de experiência, de vivência e de conhecimentos que vêm embutidos na cena, trazendo uma nova carga afetiva para o espetáculo.

Como coreógrafa, Bausch não tinha nada haver com o politicamente correto, mas nesse ato brilhantemente inventivo de seleção de elenco, ela expôs a pobreza da nossa cultura anti-idade – particularmente quando aplicada à dança. Os homens e mulheres acima de 65 anos que interpretaram Kontakthof não só tornaram falsa a noção de que nos tornamos invisíveis ao envelhecer; eles demonstraram que podemos nos tornar significativamente mais vitais e vivos (Mackrell, 2010).

Segundo Jo Ann Endicott (1950), os bailarinos da companhia costumavam afirmar que Kontakthof seria a peça que eles dançariam até a velhice. Em entrevista (Endicott, 2010) ela afirmou que esse seria provavelmente a única peça da companhia que bailarinos não profissionais conseguiriam dançar. Talvez por esses e outros motivos, Bausch tenha tido a idéia de realizar uma versão do espetáculo com as senhoras e senhores. A própria Bausch já estava com 59 anos na época em que realizou a montagem e se aproximava cada vez mais dessa geração com a qual iniciaria um trabalho; talvez algumas questões trazidas pela terceira idade começassem a inquietá-la.

O meu desejo de ver essa peça, dessa vez mostrada por senhoras e senhores com mais experiência de vida, cresceu ainda mais forte com o tempo. Então eu encontrei coragem para dar Kontakthof para as pessoas mais velhas acima de '65'. Pessoas de Wuppertal. Nem atores. Nem dançarinos (Pina Bausch, L'arche, 2007: 8).

Em 1998, Pina Bausch iniciou o trabalho de montar a peça com senhores acima de 65 anos, pessoas comuns, moradores de Wuppertal, sem experiência com teatro ou dança, porém com desejo de novas descobertas e novos desafios. A coreógrafa colocou um anúncio no jornal local convocando os moradores interessados para participar da seleção. Os únicos pré-requisitos para participar da seleção era que fossem maiores de 65 anos e moradores de Wuppertal.

A artista tinha uma preocupação e atenção especial com seus intérpretes, incluindo os senhores e os adolescentes, sempre que podia estava presente e entregava flores para eles ao fim das apresentações. E quando não podia, enviava uma rosa para cada, e uma carta:

Queridos,
De Nova York eu envio para todos vocês todo meu amor, pensamentos carinhosos e os melhores desejos. Eu desejo a todos vocês uma Performance maravilhosa em Gênova. Eu estou com todo meu coração com vocês. Dancem lindamente. Boa sorte. Eu os envolvo com amor.
Sua Pina
(Pina Bausch 18.11.2004 – L´arche, 2007: 26).

No trecho de outra carta para os senhores, Bausch fala um pouco de uma de suas buscas, de um de seus desejos com essa obra, o desejo de fazer de cada uma daquelas pessoas, uma fonte de inspiração para os moradores de Wuppertal;

Eu estarei com vocês e pensando carinhosamente em vocês quando vocês Performarem essa noite e inspirarem de novo as pessoas de Wuppertal e os muitos amigos que estarão assistindo (Pina Bausch 17.02.2006 – L´arche, 2007: 27).

No final de 2007, Pina Bausch iniciou uma seleção com adolescentes, estudantes das escolas de ensino tradicional e público de Wuppertal, para realizar uma nova montagem de Kontakthof, dessa vez com jovens a partir de 14 e até, no máximo, 17 anos.Dessa vez, a coreógrafa vai para o outro lado do "trabalho social" atingindo os "netos" dos senhores e senhoras com quem começou a trabalhar quase 10 anos antes.

Wuppertal é, basicamente, uma cidade industrial, com um cenário cultural restrito e muitos de seus moradores, até os dias atuais, não conhecem o trabalho de Bausch e da Companhia, um dos principais meios de difusão do nome da cidade pelo mundo afora. Porém com as experiências de Kontakthof Bausch movimentou três gerações de sua cidade. Desenvolveu um trabalho com a terceira idade e com os jovens e, inevitavelmente, envolveu vários adultos, uma vez que seus filhos e/ou pais, conhecidos, ou parentes, se tornaram protagonistas da peça, e desta maneira, a cidade passa a "fazer parte da Companhia."

Houve uma transformação do envolvimento da comunidade com a coreógrafa e com o WuppertalTanztheater. Devido a estes projetos os bailarinos da companhia se tornaram, ao mesmo tempo, atores e espectadores da comunidade que dança a obra criada por eles, gerando uma nova relação com a comunidade local;

O melhor de tudo, os 26 dançarinos de cada elenco emergem totalmente como pessoas, a integridade da interação deles é um testemunho do poder duradouro do legado de Bausch (Crompton, 2010).

 

Conclusão

Ao assistirmos o espetáculo com os adolescentes, nos perguntamos: o que Bausch estaria buscando ao realizar um mesmo espetáculo com três gerações diferentes? A resposta para essa pergunta, não conseguimos obter em palavras fechadas. Porém, a partir desse questionamento e analisando o material levantado em pesquisa de campo, observamos que o mesmo espetáculo, as mesmas cenas, interpretadas por gerações diferentes ganharam leituras diferentes. Assim, vemos como um interessante campo de pesquisa a análise das possíveis diferentes leituras de uma mesma cena, realizada pelos distintos grupos de intérpretes.

Com esse trabalhou Pina Bausch modificou as perspectivas e o ponto de vista dos senhores e senhoras e dos adolescentes. A maioria deles nunca havia subido em um palco ao longo da vida. A coreógrafa colocou a comunidade falando para a comunidade, questionando o que é arte e quem são os "verdadeiros artistas", colocando todos no mesmo nível e mostrando que a verdadeira poesia está no que há de mais humano em cada um de nós.

 

Referências

Climenhaga, Royd (2009) Pina Bausch. London: Routledge.         [ Links ]

Crompton, Sarah (2010) Pina Bausch at the Barbican, London, review.[Consult. 2011-11-24] Disponível em http://www.telegraph.co.uk/culture/theatre/dance/7556364/Pina-Bausch-at-the-Barbican-London-review.html         [ Links ]

Endicott, Jo Ann (2010) Dancing Dreams.[Consult. 2011-11-24] Disponível em http://www.facebook.com/video/video.php?v=1587508360885         [ Links ]

L´arche (2007) Kontakthof with ladies and gentleman over "65".Paris: L´arche.         [ Links ]

Mackrell, Judith (2010) Give me an over-65 dancer any day [Consult. 2011-11-24] Disponível em http://www.guardian.co.uk/culture/2010/apr/07/critics-notebook-judith-mackrell         [ Links ]

Pereira, Sayonara (2010) Rastros do Tanztheater no Processo Criativo de ES-BOÇO: Espetáculo Cênico com alunos do Instituto de Artes da UNICAMP. São Paulo: AnnaBlume.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: marinamilito@yahoo.com(Marina Milito).

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