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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

LUGAR

Elias dos Bonecos: o mundo como resto

Elias dos Bonecos: the world as remainder

 

Gustavo Henrique Torrezan*

*Brasil, artista visual. Graduação: bacharelado em Artes Plásticas, licenciado em Educação Artística.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Este artigo pretende abordar o trabalho e o processo de criação de Elias dos Bonecos (Elias Rocha) dando destaque a coleta que o motivava na construção de seus trabalhos. Esta abordagem será pensada pelo viés do biografema, de uma escrita atenta aos detalhes aparentemente insignificantes que, por tais características, se transformam em signos disparadores de um texto que exprime o processo/campo específico onde o artista se constitui.

Palavras chave: Elias dos Bonecos, Biografema, Processo de criação, Coleta.

 

 

ABSTRACT
This article intent to approach the work and the creative process of Elias dos Bonecos (Elias Rocha) emphasizing the collecting of materials which motivated the construction of his art. This approach will be conceived by the biografema, by being carefully with the details, apparently insignificant, but which can turn themselves in trigger signs of a text that express the specific process/field where the artist is constitute.

Keywords: Elias dos Bonecos, Biografema, Creative Process, Collect.

 

 

Introdução: do que toca na irrelevância

Principais elementos do cisco são: gravetos, areia, cabelo,
pregos, ramos secos, asas de mosca, grampos, cuspe de aves, etc.
Há outros componentes do cisco, porém de menos importância.
Depois de completo, o cisco se ajunta, com certa humildade,
em beira de ralos, em raiz de parede,
ou, depois das enxurradas, em alguma depressão de terreno.
Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase sempre modestos.
[…]
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação dos poetas.
[…]
Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do que a seres humanos.

 
– Manuel de Barros, O Cisco.

Embora habitualmente os aspectos considerados relevantes no trabalho de Elias dos Bonecos digam respeito à localidade em que seu trabalho foi produzido e a sua classificação como um artista naïf, interessa a esse texto abordar precisamente a dimensão de insignificância no trabalho e do seu processo de criação.

"As coisas tem o valor que nóis dá pra elas", disse o artista Elias Rocha, conhecido como "Elias dos Bonecos". Caboclo da terra, nascido em 1932 e já falecido, morou toda sua vida nas margens do rio Piracicaba (São Paulo / Brasil). Trabalhou em uma olaria e depois em uma metalúrgica. Durante suas criações, começou a construir bonecos com os restos da argila da olaria. Pescava frequentemente, como muitos o faziam, na beira do rio, onde também encontrava com os amigos "pra jogar conversa fora", como ele mesmo dizia. Ao se aposentar, Elias transitava pelas margens do rio e nas ruas dos arredores visitando amigos e vendo suas lembranças desaparecerem.

Neste contexto, pretendo dar atenção à ideia de coleção, à atividade de coletar materiais, em especial aqueles considerados como restos, ao abordar o trabalho e o processo de criação de Elias dos Bonecos. Esta abordagem se dará pelo viés do biografema tal como elaborado por Sandra Corazza (2010), isto é, através de uma escrita atenta aos detalhes aparentemente insignificantes que, por tais características, se transformam em signos disparadores de um texto capaz de exprimir o processo do artista e o campo específico onde ele se constitui como tal. Para efeito desta análise pretende-se utilizar o conceito de coleção de Hume a partir da elaboração feita por Gilles Deleuze (2001).

A dimensão da insignificância e da coleção articula-se à atividade de coletar materiais, que do ponto de vista do biografema confere a própria biografia do artista um caráter "ficcional". Deste modo, assim como os bonecos (coleção de restos) habitam o rio, Elias (o coletador) habita o mundo onde esses bonecos existem (Figura 1).

 

 

 

1. O movimento de coleta

Elias, já pela manhã, arrumava sua carroça com o cavalo e partia pelas ruas da cidade em percursos sempre novos. Botava tudo que colhia na carroça e voltava para sua casa.

A estética da coleta se produz na paisagem, já que é composta pelas forças que transversalizam os objetos que vão sendo ajuntados. Os elementos singulares que fazem parte desses objetos catados são, muitas vezes, importantes somente para aquele que os recolhe, como é o caso de Elias que dava especial valor para as coisas insignificantes, os restos deixados aqui e acolá. Restos que são o material do artista.

O artista quando coleta produz um movimento que se dá como ato criador. Nele, o coletador instaura uma animação e promove acontecimentos sutis no encontro com as coisas. Tais acontecimentos são singulares, caracterizam-se como únicos (Deleuze, 2007); e a animação promove o adensar de camadas de afetividade que estão sempre por fazer-se (em expansão) no mundo, motivando a vida como aquilo que se constrói pelo e no movimento.

Coletar é próprio da vida em criação e independe de uma história, de uma temporalidade. Vida que nasce do arranjo do material que é coletado e que o correlaciona como função artística que potenciliza a diversidade de afetos que surgem e atravessam o corpo daquele que produz esse movimento.

O movimento que Elias produz, tensiona o préstimo das coisas, sua relevância para o mundo. Valora o insignificante, fazendo valer a potência que existe em cada material coletado (Figura 2). São desnaturalizadas "as formas para captar as forças, deslocando o objeto de si para que frutifique agenciamentos em um campo de composição que busca validar seus mais tênues elementos" (Oliveira, Siegmann & Coelho, 2005: 116) e com eles produzir vida. Vida como arte.

 

 

 

2. O quintal como Ateliê

A oficina de Elias era uma especie de "puxadinho" que ficava no quintal, seu lugar de fazer arte. Neste ateliê, com aquilo que era trazido dos seus percursos pela cidade, começou processos de junção, colagem, fusão, associação, inventando coisas durante as tardes. Lá era um espaço onde cabia um mundo, ou vários, já que nele sempre algo novo surgia da produção de experimentos, de raridades.

Naquele espaço, seus restos eram guardados, acumulavam-se transitoriamente a partir de configurações de conjuntos sempre modificáveis de acordo com cada nova busca, coleta e as questões que surgiam a cada trabalho. Sua coleção era feita de por efêmeros conjuntos produzidos (Deleuze, 2001) como intervalo entre a coleta e a obra, sempre observado pelo artista que passava horas organizando, inventando aquilo que poderia ser unido a outra coisa, ou seja, quais compostos poderiam ser criados.

Selecionar coisas e produzir com elas conjuntos é construir um composto de variedades. Arranjo de forças que são potencializadas quando relacionadas e que sustentam as sensações de que são feitas.

Aos serem produzidos, os bonecos de Elias formam um tecido de conexões que inventa o possível do impossível, ou seja, dos restos, da insignificância, se produz vida. Um movimento no qual não há lugar para metas estabelecidas, a priori, nem para alcances mecânicos (Salles, 2004: 27), pois a própria construção de um trabalho de arte é esse coabitar, esse processo de junção de partes que formam um campo onde se edifica o trabalho (Figura 3).

 

 

 

3. A Margem do Rio

Elias, preocupado com a aparente solidão do Piracicaba, resolveu povoá-lo. Com restos do humano "fez humanos"; Dessemelhantes, trazem um fluxo tão intenso quanto o do Piracicaba. São feitos de lixo, de sobras de roupas, madeira, latas, arames, pneus. Materiais que são o resto, encontrados muitas vezes à margem tanto dos depósitos, lixões, quanto dos rios. Pessoas comuns esses pescadores, mas especiais na força que carregam consigo. Trazem, por aquilo de que se compõem a potência para produzir alianças no entorno, que escapam em novas visões, tateações, oufações, criações que invocam um povo. Há um jogo de seres diferentes em suas escalas, reinos e espécimes. Essa é a família de Elias, o povo do artista.

O rio do artista é um rio afetivo, rio de sensações, corpo que pulsa no constante movimento do por vir, da complexidade que emana. Visto sempre da margem esquerda do Piracicaba, os bonecos que ficam no outro lado solicitam uma presença ao mesmo tempo em que promovem uma mistura entre aquele que vê e o rio, na construção de uma complexa aliança que atravessa os sentidos tal como acontece com os trabalhos de Elias dos Bonecos. O rio apresenta uma gama maior de espaços que seu curso.

Os bonecos de Elias são de uma estética singular. A singularidade com que são produzidos, somada ao lugar que ocupam, faz deles únicos. Esses viventes do rio se mesclam com a paisagem de modo a deixar sem saber quem nasceu primeiro: foi o rio quem deu vida aos bonecos de Elias, ou foram os bonecos que deram vida, uma nova "moldura" ao rio? (Fantini, 2003). Fazendo uso dessa ambiguidade aparente, é possível afirmar que com seus trabalhos o artista cria um outro modo de habitar o mundo em que aquilo que é considerado como "coisa de louco", "coisa de criança" ou mesmo a qualificação dos materiais como bom ou ruins ou ainda se é "parecido"ou não, se é "bacana" habitar a margem ou não, perdem seus estatutos de maneira que ele cria uma amplitude que perpassa o próprio limite do que é a vida.

Descentrando fronteiras hierárquicas, valores de mercado e de produto, Elias dos Bonecos desmancha a pretensa imobilidade entre centro e periferia, entre arcaico e contemporâneo, entre realidade e ficção. Não operando com esse tipo de dualidade, tensiona esses limites quando escolhe dizer desde a margem, trabalhar na margem, com os restos dela. Assim, constrói na margem seu trabalho e com ele um modo de subjetivação.

A ficção rebelada que o artista produz é capaz de tecer uma rede heterotrópica que dinamiza a cidade entrecruzando geografias, culturas e a própria arte ao assumir o deslocamento, a insignificância como suas heranças e questões para o seu trabalho. Elias cria sua obra como fluxo de Piracicaba (cidade-rio, rio-cidade) e fala do entre, abrindo caminho para outras vozes de vários tons e que, por serem assim, são capazes de propor desvios para repensar conceitos como história, tradição, influência e até mesmo qual lugar o artista tem ou pode ocupar (Figura 4).

 

 

 

Conclusão: O processo de criação com restos

Encontrar elementos singulares é o que faz Elias dos Bonecos para criar os trabalhos, com isso instaura um campo vindo do movimento de coleta e dos constantes e infindáveis rearranjos dos materiais. Produz uma animação que o faz criar e adensar camadas de afetividade. Engendra uma força que atravessa o corpo e que gera na paisagem uma estética feita das potências daquilo que foi reunido e que é composto como boneco na margem do rio.

Dos restos que coleta, dos conjuntos que seleciona, dos lugares que escolhe para suas criações, Elias dos Bonecos inventa a vida e um mundo: um mundo de resto (Figura 5).

 

 

 

Referências

Deleuze, Gilles (2001) Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Ed. 34. ISBN: 85-7326-210-9         [ Links ]

Deleuze, Gilles (2007) Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva. ISBN: 978-85-273–138-1         [ Links ]

Fantini, Marli (2003) Guimarães Rosa: Fronteiras, margens e passagens. Cotia – SP: Ateliê Editorial, Editora SENAC São Paulo, ISBN: 85-7480-210-7         [ Links ]

Neptune, Nordahl. Os Bonecos do Elias dos Bonecos. Fotografias. [Consult. 2011-12-01] Disponível em URL: http://www.iar.unicamp.br/alunos/eliasdosbonecos/index.htm         [ Links ]

Oliveira, Andréia M.; Siegmann, Christine; Coelho, Débora. (2005)As coleções como duração: o colecionador coleciona o quê? . Episteme, Porto Alegre, n. 20, jan./jun. ISSN: 1413-5736         [ Links ]

Salles, Cecília A (2004) O Gesto Inacabado: Processo de criação artística. São Paulo: Anna Blume. ISBN: 85-7419-042-X         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: ghtorrezan@gmail.com (Gustavo Torrezan).

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