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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

LUGAR

Chelas, o "sítio": o lugar como referência na identidade e na obra de Sam The Kid

Chelas, the "site": the place as a reference in the work of Sam The Kid

 

Teresa Palma Rodrigues*

*Portugal, artista visual. Mestrado em Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Investigadora do CIEBA. Licenciatura em Artes Plásticas / Pintura (FBAUL).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Este artigo tem por objectivo destacar os aspectos que fazem com que o trabalho de Sam the Kid se apresente como algo transversal em termos de linguagem artística, dando enfoque ao papel que o lugar pode ter na construção da sua obra, verificando como o seu trabalho resulta de uma estrutura de referências visuais e musicais que se entrelaçam e aliam a um profundo sentimento de pertença a uma comunidade e a um território – o bairro de Chelas.

Palavras chave: Sam the Kid, lugar, território, linguagem artística.

 

 

ABSTRACT
This article aims to highlight the aspects, in Sam The Kid's work, which are responsible for the creation of something transversal in terms of artistic language, focusing on the role that the place may have in the construction of his musics, observing how his work is a result of a intertwined structure of visual and musical references, combined with a deep sense of belonging to a community and to a territory – Chelas neighborhood.

Keywords: Sam the Kid, place, territory, artistic language.

 

 

Introdução

Samuel Mira, mais conhecido por Sam the Kid, é um músico português, considerado um dos mais importantes rappers e representantes do Hip Hop em Portugal. Nasce em Lisboa, em 1979 e reside desde sempre na freguesia de Marvila, concretamente no bairro de Chelas. O primeiro dos seus seis álbuns, com o título 'Entre(tanto)', é inteiramente produzido em casa e posto por ele à venda em 1999; mas o seu reconhecimento como artista só surge em 2002, depois do sucesso entre um público menos jovem do disco instrumental "Beats Vol. 1: Amor" e de o artista assinar contrato com a Loop:Recordings de Rui Miguel Abreu.

O trabalho de Sam The Kid é essencialmente musical, resultando de uma estrutura intrincada de elementos que se entrelaçam e que vão desde: poesia, vídeo e apropriação de referências visuais e instrumentais, aliadas a um profundo sentimento de pertença a uma comunidade e a um território – o seu próprio bairro.

Pretende-se assim, analisar dois temas de Sam the Kid, 'Chelas' [do álbum 'Sobre(tudo)', de 2002] e 'Negociantes' [do álbum 'Pratica(mente)', de 2006], estabelecendo pontos de contacto entre ambos e reflectindo sobre o papel que a paisagem e as especificidades do lugar podem ter na construção do ser humano e do ser enquanto artista.

Tendo por objectivo evidenciar o que há de transversal em termos de linguagem artística no trabalho de Sam The Kid, este artigo salientará os elementos de carácter imagético que realçam a importância do lugar na sua obra. A metodologia de abordagem que se vai seguir no seu desenvolvimento focará aspectos mais ligados à envolvente visual e urbana que contaminam o universo deste autor.

Suportando-nos em palavras que surgem nas rimas e em imagens dos seus videoclips, pretendemos também mostrar como Sam The Kid denuncia e, ao mesmo tempo, influencia uma realidade (sub)urbana, através do Hip Hop.

 

1. Chelas – um lugar no Hip Hop

"Eu nasci em Chelas, cresci em Chelas e ainda vivo em Chelas" (Mira, 2011), é quase sempre desta forma que Sam The Kid se apresenta. Para ele, o seu bairro "é como se fosse uma aldeiazinha" (Mira, 2006). Talvez o sejam todos os bairros, mas nenhum outro, dentro de Lisboa, terá esta relação com o Hip Hop, só comparável aquela que existe entre Alfama, ou Mouraria, e o Fado.

Produzida num quarto do 7ºA da Rua Manuel Teixeira Gomes, tanto o tema 'Chelas', como 'Negociantes' falam do seu sítio, confirmando uma característica da linguagem deste estilo artístico: o vínculo às questões relacionadas com a territorialidade.

Importa referir que a cultura Hip Hop se desenvolve em 4 vertentes: a música, a poesia, a dança e a pintura (isto é, o graffiti), existindo sempre uma interacção entre as partes, conjugada com o domínio de uma técnica muito própria e de uma mensagem implícita que se quer fazer passar.

É por essa razão que Sam The Kid se apresenta como uma espécie de bandeira, como uma referência para a maioria dos jovens de Marvila. Mas apesar de o seu trabalho ser vincadamente ligado às suas experiências pessoais e aos problemas da sua zona, não deixa de focar aspectos que são comuns a outras áreas geográficas.

De uma forma geral, todas as letras deste rapper falam sobre o ambiente no qual ele vive. A sua intimidade é exposta de uma forma muito marcada. Os seus dramas pessoais são comuns a muitos; as histórias do seu passado ou do seu dia-a-dia podiam ser as nossas histórias, a questão é que o artista faz questão de as contar na primeira pessoa, não inventando personagens, mas falando de pessoas reais e problemas reais, descrevendo o quotidiano do seu bairro (Figura 1). A propósito disso, Sam The Kid refere:

Chelas é uma fonte de inspiração. Tenho músicas que falam de coisas concretas que só as pessoas daqui sabem do que estou a falar. Mas não faço só música para o bairro (Mira, 2007a).

 

 

Em 1993, Samuel Mira começa a fazer batidas "com um orgãozinho todo podre e uma caixa de ritmos" (Mira: 2007b). A vertente musical, no trabalho de Sam The Kid, compõe-se de uma espécie de corte e costura de sons na forma de sample que são retirados das mais diversas fontes. No início, os seus temas são gravados em formato cassete, mini- disc ou CD-R e muitos são acompanhados pela produção de vídeos caseiros. Na construção das suas músicas, o artista e produtor recorre sempre ao seu vasto arquivo pessoal de sons recolhidos durante anos em discos, filmes pornográficos, telenovelas, chamadas telefónicas ou até discussões em sua casa.

No caso do tema 'Chelas', ele utiliza um excerto de uma versão de João Gilberto da música 'Manhã de Carnaval', excerto esse que surge repetido durante os mais de cinco minutos de música. A escolha de 'Manhã de Carnaval' não nos parece despropositada, uma vez que precisamente na zona oriental de Lisboa, por cima do Tejo, despontam todas as manhãs os primeiros raios de Sol (Figura 2). O quarto de Sam The Kid, ao qual ele chama '4º mágico' (2002), tem vista privilegiada para esse acontecimento diário (e é uma fotografia do nascer do Sol que o artista escolhe para capa do seu disco onde integra esta música, como se pode ver na Figura 3).

 

 

 

Acerca da sua ligação à poesia como MC ('Master of Cerimonies'), Sam The Kid declara que se considera um poeta e que o que gosta é de "brincar com as sílabas" e depois, "ao interpretá-las, a matemática do ritmo (Mira, 2007b)."

O ritmo é um elemento muito importante nas composições de Hip Hop, tanto na prática discursiva como na estrutura musical. Herdeiro da música africana e das ruas dos E.U.A., a sua linguagem assenta numa espécie de identidade tribal que conserva algo de primitivo e ritualístico no seu repetitivismo. Jorge Lima Barreto refere que o "repetitivismo é o principal elemento semiológico das músicas primevas;(...) e qualquer músico utente do computador confronta loops que são módulos repetitivos (s. d.)"

Descrevendo a sua vizinhança e os seus hábitos, a sua tribo, por assim dizer, o autor dá indicações precisas do lugar onde vive, dizendo, na letra de 'Chelas':

A minha inspiração surge numa noite escura / na minha rua nem a passadeira é segura / E queres sabê-la? É Manuel Teixeira Gomes, / É onde eu vivo e onde conheci muitos nomes (Mira, 2002).

Sem subterfúgios, nomeia o lugar onde vive e onde cresce, fazendo menção aos seus pares, que compartilham com ele a vivência no bairro.

O sítio onde eu moro, o sítio onde eu vivo, o sítio onde eu paro e fico pensativo... / Sítio divido em zonas com letras do alfabeto / Zonas divididas em lotes com mau aspecto (Mira, 2002).

O aspecto visual de degradação que muitas zonas deste bairro social apresentam, tem grande peso na forma como os habitantes o sentem. Sam The Kid não é indiferente à questão do caos urbanístico e às políticas de habitação social.

O bairro foi pensado para alojar funcionários de sectores do Estado; mas a partir do "Verão Quente de 75" muitas das casas começam a ser ocupadas ilegalmente (algumas ainda sem estarem terminadas). O Plano de Urbanização de Chelas é assim interrompido, nunca chegando a ser terminado. No princípio dos anos 80, a necessidade de alojar, nos fogos habitacionais, as pessoas vindas de 'bairros de lata' e das ex-colónias, em conjunto com as continuadas ocupações, geram "graves conflitos entre as diversas vagas de ocupantes" (Silva Dias, 2001:43) e fazem com que esta área da cidade se torne uma espécie de gueto, com vários espaços degradados e ao abandono e sem uma congregação efectiva das referidas zonas, nomeadas nos anos 60, por: I, J, N1, N2 ou M.

 

2. De 'Chelas' a 'Negociantes' Sam The Kid parece servir como factor de união das desagregadas zonas de Chelas, atenuando uma certa tensão que se faz sentir, até aos dias de hoje, entre os diferentes grupos étnicos. O simples facto de, no videoclip de 'Negociantes', o artista aparecer com essas várias zonas como pano de fundo (Figura 4 a 6), já serve simbolicamente como um elemento unificador.

 

 

A Feira do Relógio, as instalações do Batista Russo profusamente grafitadas e em ruínas, ou o sistema de viadutos e túneis que esventram a paisagem de Chelas (e que, em termos urbanísticos isolam as diferentes zonas do bairro, criando vácuos, acentuados pelos terrenos baldios em redor), ocupam um papel importante como referências visuais e identitárias nas imagens deste videoclip (realizado por João Moreira).

Sam The Kid entende como uma missão, dar a conhecer os problemas reais da sociedade, dando como exemplo os da comunidade à qual pertence. Tem também o objectivo de destruir os preconceitos em relação aos habitantes de Chelas. Simultaneamente, ainda que de forma irónica, incentiva os jovens a saírem do tráfico de droga e do crime, pegando nas suas frustrações, medos ou angústias e transformando-os em algo positivo através da arte.

Em 'Negociantes', o artista convida MC Snake a rimar. Este seu amigo ex-recluso residente na Zona N1, opta por falar da sua destrutiva passagem pelo mundo do crime. Os seus últimos versos dizem:

Chelas é o local do crime, droga e violência / Abre a tua banca para atingires a independência / A moral da história / Acabas 'broke' na falência (...) / não podemos sair do bairro / eles não nos podem tirar do bairro / nós nascemos ali / nascidos e criados / Chelas city...

 

Conclusão

As composições de Sam The Kid são maioritariamente auto-referenciais, estruturando-se como uma teia de relações e de códigos da cultura urbana.

A realidade ocupa um papel fundamental na obra de Sam The kid e o artista faz questão de a mostrar tal como ela é.

Quatro anos separam os temas 'Chelas' e 'Negociantes', mas as referências ao bairro mantêm-se.

O método de apropriação e repetição de notas de músicas de outros autores funciona, metaforicamente, como uma ocupação de território e uma deslocação de poder.

De carácter interventivo, o Hip Hop mais puro pretende reivindicar através da palavra, valores como: a liberdade de expressão, a igualdade de direitos e melhores condições de vida. Mas tem em si uma componente de agressividade e de provocação, fazendo uso da linguagem como uma espécie de arma.

Esta cultura tem uma gíria própria e, seguindo os seus códigos, Sam The Kid verbaliza ritmicamente (ou 'cospe' como dizem os rappers) a sua inquietação por vezes de forma quase obscena, não recorrendo a eufemismos. Por meio das palavras contidas nas suas rimas, acaba por intervir tanto na sociedade, denunciando, como no próprio meio onde vive, fazendo resistência e apontando novos caminhos.

 

Referências

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Mira, Samuel (2011) Sam the Kid: "Não sei cantar". Primeira Pessoa, 15 de Dezembro de 2011, Revista Sábado. Entrevista de Daniel Vidal e imagem de Joana Mouta [Consult. 2012 01 06] Vídeo. Disponível em http://www.sabado.pt//Pessoas-Nova/Pessoas/Primeira-Pessoa-(2)/Sam-the-Kid.aspx?id=421847

Silva Dias, Francisco (2001) "Cinco Histórias em Marvila. A Primeira: A Revolução na Rua". Lisboa Capital do Nada, Marvila 2001: criar, debater, intervir no espaço público, Lisboa: Extr]muros[         [ Links ].

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: teresapr@gmail.com (Teresa Palma Rodrigues).

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