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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

PROXIMIDADE

Vieira Portuense's Travel Journals: albums 821 and 817 of the MNAA

Vieira Portuense, Cadernos de Viagem: álbuns 821 e 817 do MNAA

 

Maria Dilar da Conceição Pereira*

*Portugal, artista visual e professora na Escola Superior de Educação de Lisboa (ESELx). Mestre em Teorias da Arte, FBAUL. Licenciatura em Educação Visual e Tecnológica, ESELx. Frequenta o Mestrado em Desenho, FBAUL.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
No âmbito das viagens de artistas na Europa das Luzes, e do percurso artístico do pintor Francisco Vieira Portuense (1765-1805), analisam-se dois dos cadernos de desenhos da autoria do pintor português, durante a sua viagem, que respeitam aos anos de 1789-1793 (álbum com o n.º de inventário 821, do MNAA) e 1796-1797 (álbum com o n.º de inventário 817, do MNAA), que se entendem representativos desse percurso.

Palavras chave: Vieira Portuense, cadernos de viagem, desenho, viagem.

 

 

ABSTRACT
Among the artists travels in Enlightened Europe, the artistic journey of the Portuguese painter Francisco Vieira Portuense (1765-1805), is analyzed, focusing in two of the painter's travel journals belonging to the years 1789-1793 (journal MNAA's inventory nr. 821) and 1796-1787 (journal MNAA's inventory nr. 817), which ones are representative of his European route.

Keywords: Vieira Portuense, travel journals, drawing, travel.

 

 

Introdução

Entre o gosto neoclássico e a emergência do postulado romântico, Vieira Portuense (1765-1805), inscreveu nos seus álbuns elementos característicos da pesquisa visual produzida na viagem pela Europa, entre 1789 e 1797. Com a premissa da educação de excelência, a viagem, para além de deleite assumia-se como jornada instrução e aprendizagem. Através dos cadernos de Vieira Portuense é possível aferir o desenho como instrumento de pesquisa, suporte de uma ideia que se afirma ou se quer descobrir, desde o arabesco rápido, à transmutação rigorosa e mais contida de certos detalhes.

Assim, procurou-se: avaliar a utilidade da viagem através do registo no caderno de desenho; e explorar o paralelismo entre o desenho e a escrita, pelo carácter descritivo e narrativo dos desenhos, entendendo o desenho como grafia ou caligrafia.

Estudaram-se os álbuns 821 e 817 do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), relacionando-os com as teorias de Vieira Portuense, expressas em 1802, no discurso da abertura da Academia de Desenho e Pintura do Porto.

 

1. Descrição e análise do Objecto Artístico

Os álbuns de Vieira Portuense são exemplo da adopção de uma atitude pedagógica enquadrada no espírito da época. No âmbito da historiografia artística, foram objecto de estudo de vários investigadores (Taborda, 1815; Costa, 1935; Vasconcelos, 1968; Gomes, 1987; Viana, 2001; Lobo, 2005). Segundo o Gabinete de Desenhos do MNAA, são 17 os cadernos da mão de Vieira Portuense, dos quais um em co-autoria desconhecida. Comprados e identificados por Giuseppe Vialle, foram, em 1850, adquiridos pela Academia de Belas Artes de Lisboa, como confirmam as inscrições em cada um deles, e em 1906 incluídos no acervo do MNAA.

Em 2001 integraram a exposição sobre Vieira Portuense, no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto. Em 2005, o MNAA voltou a expô-los a propósito dos duzentos anos da morte do pintor, importante repositório documental, porque, além de expor o percurso de viagem, possibilitou a localização de algumas obras em Itália.

Seleccionaram-se os cadernos que ilustram dois tempos. O primeiro (inv. n.º 821), de 1789-1793, do período em que Vieira se instalou em Roma e viajou em Itália, dando conhecimento de locais por onde passou; o segundo (inv. n.º 817), satisfazendo a mesma condição, reporta-se ao ciclo de Parma e trânsito pela Europa central em direcção a Inglaterra, entre 1796-1797.

No álbum 821, observa-se uma linha pouco ondulante, mais dura e descontínua. Por oposição, o álbum 817 é um caderno mais significativo, nele emerge o estilo próprio de Vieira (Viana, 2001:92), marcado por uma linha de maior segurança e fluidez (fl.32, por ex.). Nestes álbuns, o desenho varia entre esboços de paisagem e registos a partir das obras de arte que o artista viu, cujo interesse, para além do artístico, era também comercial, pois visava a reprodução dessas obras através da gravura (Viana, 2001: 92).

1.1 Álbum inv. nº 821, 1789-1793

Com encadernação de 27,2cm por 19,1cm, seria originalmente composto por 23 fólios, segundo inscrição de Assis Rodrigues, na última folha. Hoje, com apenas 22 fólios de 26,1cm por 18,6cm, o álbum apresenta um bom estado de conservação, o papel é meio cinza e possui uma marca de água que não foi possível identificar. Segundo inscrição a tinta castanha de Vialle, trata-se de "bosquejos de árvores, paizagens, figuras". Para além das obras de arte da Antiguidade, Vieira interessou-se também pela paisagem e pelos habitantes das regiões que visitou. O pintor instalara-se em Roma, cidade a partir da qual visitou outras localidades mas à qual sempre tornou. A linha é o elemento plástico que impera em no álbum, uma linha que sofre inflexões, que se quebra em determinados pontos, noutros ondula ao sabor das formas. Um leve sombreado composto de tracejado paralelo é (ar) riscado, acentuando alguns aspectos das composições. Ao contrário do álbum 817, as inscrições são raras o que dificulta a identificação dos temas tratados.

Os desenhos são feitos a pedra negra, havendo também um desenho de figuras executado a tinta castanha no fl.7, cópia de estátuas antigas que viu na deslocação a Roma. Ao longo dos fólios os desenhos variam entre esboços de árvores, figuras e lugares por onde Vieira passou, o caso de Grottaferrata no fl.16, um desenho volumétrico, representando a arquitectura e fortificação da vila. O sombreado é dado também com recurso à linha. No primeiro plano é apontada levemente, com linhas onduladas, alguma vegetação. O desenho é feito no sentido longitudinal da página, apresentando uma inscrição no canto superior direito, da mão do próprio Vieira dando indicação do tema (Figura 1).

 

 

Por fim, no fl.20 encontramos um rosto de perfil que representa um homem com barbas, desenho em que o claro-escuro é mais trabalhado, indicando os volumes do rosto. O esboço poderá ter servido de inspiração para o quadro Cabeça de Velho, pintura a óleo sobre tela, assinada e datada de 1793, que se encontra na Galeria Nazionalle em Parma, oferta do próprio pintor em 1794.

1.2 Álbum inv. nº 817, 1796-1797

Com encadernação em tom castanho de 30,5cm por 24,8cm, é composto por 107 fólios de 29,5cm por 23,8cm, em bom estado de conservação. Contudo, falta o fl.73, e o fl.74 está parcialmente cortado. A linha e a pedra negra são mais uma vez utilizadas sobre papel de tom azulado, com uma marca de água não identificada. O frontispício, além do carimbo com o nº de inventário, indica-nos a proveniência através de uma inscrição de Vialle. A confirmar a autoria, no fl.17, lê-se "Livro de esquissos de Francisco Vieira Portuense".

As inscrições do pintor facilitam a identificação de locais, monumentos ou colecções particulares que visitou e autores copiados. Poussin é um dos preferidos (fls.51, 52, 54, 63, 65, 68, e 69), cujo interesse residia no estudo dos recursos da composição, e na solidez do traço (Gomes, 2001: 22-34). Também Albani (fls.77, 78, 80, 82), os Carracci (por ex. fls.6, 22, 23, 25, 28, 29, 32) e Guercino (fls.19, 20, 21, 31, 33, 81, 83, 86, 89) são dos mais copiados, e ainda, entre outros, Rafael e Corregio.

No fl.1 vemos um apontamento esquemático de figuras, cujo estilo reaparece, por exemplo, no fl.4, e no fl.106, onde se vê um rosto representado com recurso a uma forma triangular, na qual o queixo é um dos vértices, uma característica estilística do desenho de Vieira, confirmada por Alexandra Markl.

Noutros desenhos, Vieira Portuense avança mais, explorando valores de claro-escuro, por exemplo no fl.36, em cópias de Dominichino e de Mastelletta. Numa sucessão de traços paralelos, determinadas sombras são apontadas, permitindo a percepção dos volumes, e traduzindo as pregas dos tecidos que delineiam o contorno das formas. Este fólio confirma a importância dada ao tratamento dos panejamentos e ao movimento da composição, onde cada figura é desenhada com uma linha dinâmica (Figura 2).

 

 

Testemunho documental do gosto eclético do pintor (Couto, 1953), sugere-se que o eclectismo observado neste álbum, ressoa numa corrente da crítica de arte iniciada no século XVII, que teve em Roma a expressão máxima com Bellori e Poussin, e se sistematizou com a Academia francesa. Uma tese baseada na ideia, na razão e na elegância da forma (Venturi, 2002), elementos que para Bellori eram divinos, tal como o eram Rafael e depois Annibale Carraci, artistas copiados neste álbum. O caderno termina com um suposto auto-retrato do pintor: uma figura masculina aparece em pé, de costas para o observador, a trabalhar numa tela.

 

2. Formação e Informação Teórica e Visual

No discurso proferido em 1802, Vieira aborda teoricamente as questões exploradas na prática da viagem, vincando que o melhor método de aprendizagem do desenho é a observação directa dos mestres do passado, de maneira a aperfeiçoar o gosto:

O bom gosto, e elegância nas Composições he huma das qualidades mais essenciais ao Pintor, […] he necessário que o estudante de Pintura frequente huma Escola de bom gosto, que veja, e examine attentamente os Chefes d'obra da Antiguidade […]. Valem mais dous painéis de Apelles, ou Rafael, que quantas regras de Pinturas se hão estabelecido para formar um novo Pintor (Portuense, 1803).

O bom gosto determinava a escolha do pintor, significava o equilíbrio, nem demasiado grosseiro nem demasiado apurado, na linha de pensamento dos teóricos alemães Winkelmann (1717-1768) e Mengs (1728-1779). O seu método de ensino enquadrava precisamente a observação de "Estampas as mais singulares, com as Estatuas dos mais celebres Gregos" (Portuense, 1803), uma concepção de idealizar a arte, seguindo o conceito de beleza grego como símbolo da perfeição. Vieira explora o ideal de beleza clássico e a apologia do antigo que já havia sido estrutural na viagem europeia, ao desenhar a partir de Correggio, dos Carracci, de Rafael ou Poussin. Acreditava no trabalho aplicado do artista, de modo a conseguir bons resultados, como se infere da afirmação: "os homens são capazes de tudo, se sentem necessidade de o ser. Os talentos são hábitos, os hábitos assentam em certas associações de ideias" (Portuense, 1803). A premissa de criar o hábito na aprendizagem do desenho revestia-se de uma modernidade emergente, posição que mesmo actualmente tem grande centralidade. A afirmação de que os talentos "em todos os homens são com poucas differenças iguaes" (Portuense, 1803), é a defesa da actividade persistente, na qual o artista deveria investir intensa dedicação, sobrepondo a aprendizagem ao talento inato.

Ainda no discurso, Vieira reforçou a importância do trabalho artístico, então vinculado à demanda da utilidade das artes, uma inquietação centrada na afirmação da arte como espoleta ao desenvolvimento da sociedade, revelando uma consciente percepção do tempo artístico e debilidades do país nesse campo:

As nossas obras nos […] defenderão dos ataques da ociosidade, e ignorância, inimigas cruéis, que trabalhamos por desterrar para longe da nossa Patria (Portuense, 1803).

 

Considerações finais

No contexto esclarecido do século XVIII, a viagem visava a aprendizagem e enaltecimento do Homem e do artista, atitude própria de uma época que olhava o futuro mas que, simultaneamente, procurava aprender com o passado, aspectos documentados no conjunto dos álbuns de Vieira Portuense. Através deles, vemos o que o pintor viu, sabemos dos lugares que visitou, qual o seu gosto e preferências. Simultaneamente, dão-nos acesso ao método de trabalho, ao pensamento, e tempo histórico.

A linha é o elemento predominante no desenho de Vieira, identitária de uma caligrafia que delimita no papel formas em busca da perfeição. Nessa procura, o desenho é cópia de modelos do natural ou da Antiguidade, numa atitude mimética perante o visto, insinuando-se aqui a correspondência entre desenho e caligrafia (do Gr. kalligraphia < kalós, belo + graph, r. de graphein, escrever; descrever), pela característica narrativa do desenho que documenta a viagem pois o traço é, sobretudo, linear e escorreito. O desenho é a escrita do traço, um traço que numa primeira instância é mais rígido, esquemático, quebrando-se por vezes (álbum 821), mas que a pouco e pouco se torna mais dúctil (álbum 817), impondo-se, desvelando, dando a ver. Em conjunto com os cadernos, o discurso de Vieira, de 1802, confirma um eclectismo, de certa forma ambivalente mas não contraditório: a apologia da Antiguidade convive com a defesa do potencial humano, especificamente, na actividade artística. Estas duas dimensões associavam-se com a ideia cosmopolita do espírito das Luzes, que juntava a tudo isto o papel vincado da razão.

 

Referências

Costa, Luís Xavier da (1935) As Belas-Artes Plásticas em Portugal durante o Século XVIII. Lisboa: Centro Tip. Colonial.         [ Links ]

Couto, João (1953) "Artistas Portugueses na Itália nos fins do século XVIII: Francisco Vieira, o Portuense", in Boletim do MNAA, vol. II, n.º 4, 1953.         [ Links ]

Gomes, Paulo Varela (1987) Vieira Portuense e a arte do seu tempo, Tese de mestrado em História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa: FLUL.         [ Links ]

Gomes, Paulo Varela (2001) "Correntes do Neoclacissismo Europeu na Pintura do Século XVIII", in Catálogo Francisco Vieira, o Portuense: 1765-1805. Porto: MNSR, pp.22-34.         [ Links ]

Lobo, Paula (2005) "Museu de Arte Antiga exibe cadernos de Vieira Portuense", in Diário de Notícias. Lisboa, 18 de Outubro.         [ Links ]

Portuense, Vieira (1803) Discurso feito na abertura da Academia de Desenho e Pintura na cidade do Porto por Francisco Vieira Júnior, primeiro pintor da câmara, e corte, e lente da mesma academia. Lisboa: Regia Off. Typografica.         [ Links ]

Taborda, José da Cunha (1815) Regras da arte da pintura: com breves reflexões críticas sobre os caracteres distinctivos de suas escolas: vidas e quadros dos seus mai célebres professores: escritas na língua italiana por Micael Angelo Prunetti dedicadas as excellentissimo senhor Marquez e Borba. Lisboa: Imprensa Regia.         [ Links ]

Vasconcelos, Flórido de (1968) Notícia de Três Álbuns de Desenhos Setecentistas. Porto: Emp. Ind. Gráf. do Porto.         [ Links ]

Venturi, Lionello (2002) História da Crítica de Arte. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Viana, Teresa Pereira (2001) "Os Albuns de viagem de Vieira Portuense", in Catálogo Francisco Vieira, o Portuense: 1765-1805. Porto: MNSR, pp.85-93.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: dilarp@hotmail.com (Maria Dilar).

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