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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

versão impressa ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.spe7 Porto out. 2020

https://doi.org/10.19131/rpesm.0240 

EDITORIAL CONVIDADO

 

Os comportamentos aditivos e dependências: Um olhar sobre a complexidade do fenómeno e as intervenções de enfermagem

 

Paulo Seabra

*Enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica; Doutor em Enfermagem; Mestre em Enfermagem; Investigador Colaborador na Unidade de investigação Desenvolvimento em Enfermagem (UIDE); Investigador Colaborador no CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Sistemas de Informação em Saúde, grupo de investigação “ Inovação Desenvolvimento em Enfermagem”; Professor Adjunto na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, Avenida Prof. Egaz Moniz, 1600-190 Lisboa, Portugal. E-mail: pauloseabra@esel.pt

 

Os comportamentos aditivos e dependências (CAD) são de grande complexidade. Complexidade na sua etiologia (multifatorial), na sua expressão e gestão pessoal, na forma como inevitavelmente vão produzir danos pessoais, familiares e sociais, na forma como as pessoas se vão relacionar com as estruturas sociais e de saúde que inevitavelmente vão ter de recorrer, na forma como se vão manter num estado de difícil equilíbrio, na forma como vão trazer consequência difíceis de gerir e suportar, na forma como vão modular um sentido de vida e uma reflexão retrospetiva numa fase mais adiantada de vida.

Na Europa estima-se que 92 milhões de pessoas experimentaram pelo menos uma vez, uma substância ilícita e atualmente estarão cerca de 1,2 milhões de pessoas em tratamento pelo uso de substâncias ilícitas (EMCDDA, 2018). Por outro lado a Organização das Nações Unidas identifica a Europa como a região do mundo onde mais se consome álcool, embora, a zona mais preocupante neste momento seja a região oriental da europa(WHO, 2018). O fenómeno dos CAD é global e mutável, veja-se as influências e a variabilidade que vão acontecendo em diferentes sociedades, a aproximação do sul da Europa ao consumo de metanfetaminas, do crack e Ketamina, e o crescimento na última década do consumo de opiáceos no Reino unido, Irlanda, Austrália e América do Norte onde estima-se, num recente e dramático conjunto de fatores, que existam milhões de dependentes de opiáceos e morrem mais de 100 pessoas por dia (Larney et al., 2018). Numa perspetiva mais recente e menos tradicional, há cada vez mais consciência das dependências sem substâncias, sejam do jogo a dinheiro, do jogo online , dos videojogos, da internet, das redes sociais. Estes fenómenos da dependência do jogo e dos videojogos, no passado mais na Ásia e atualmente nos países ocidentais, está em crescendo calculando-se que aproximadamente 11% dos jovens jogam a dinheiro (Commission, 2019).

Em Portugal dados do relatório da situação do país em matéria de drogas, toxicodependências e álcool, referente ao ano 2017, revelam que a prevalência continua a crescer. No que se refere aos dados referentes a qualquer droga houve um aumento dos consumos ao longo da vida na população em geral (2012, 8,4% - 2017, 10,4%) e na população jovem (15-34 anos) (2012, 14,6% – 2017, 16%), um aumento do consumo nos últimos 12 meses na população em geral (2012, 2,4% – 2017, 4,8%) e na população jovem (2012, 5,2% – 8,4%) e um aumento do consumo nos últimos 30 dias na população em geral (2012, 1,5% – 2017, 3,9%) e na população jovem (2012, 3,1% – 2017, 6,5%) (SICAD, 2018b). O mesmo relatório diz-nos que a idade de início dos consumos da maioria das substâncias se manteve inalterada no mesmo período. Mais especificamente e sobre as substâncias mais consumida pelos portugueses (a primeira é o álcool), refira-se o aumento do consumo de cannabis nas mesmas três formas de monitorização (ex. 2,4% da população geral consome canábis todos os dias e 3,4% da população entre os 15-34) (SICAD, 2018b). A cannabis é a substâncias que em crescendo vem assumindo como a mais problemática para a nossa realidade com consequências cada vez mais comprovadas ao nível da saúde mental, veja-se, o aumento de 30 vezes mais internamentos por Psicose causada pelo uso de Cannabis entre o ano 2000 e 2015 (Gonçalves-Pinho et al., 2019) Já no que se refere ao nosso tradicional problema em relação ao álcool, o número mantém-se preocupantes pois na população de 15-74 anos, as prevalências de consumo de qualquer bebida alcoólica foram de 85% ao longo da vida, 58% nos últimos 12 meses e 49% nos últimos 30 dias, sendo um pouco inferiores nos que estão entre os 15-34 anos (83%, 52% e 41% respetivamente). Veja-se que o consumo diário/quase diário de alguma bebida alcoólica foi de 43% na população em geral. Já no que refere ao consumo abusivo ou dependência de álcool, verifica-se 2,8% da população tinha, nos últimos 12 meses, um consumo considerado de risco elevado/nocivo e 0,8% apresentava sintomas de dependência, sendo as proporções correspondentes nos 15-34 anos de 2,4% e 0,4% (SICAD, 2018a)

Em 2018 estiveram em tratamento na rede publica de assistência para os CAD, em ambulatório, 13422 utentes (1202 readmitidos e 3403 novos) ou seja -3% que em 2017, mas mais utentes iniciaram tratamento (+5%) sobretudo readmitidos(SICAD, 2018a). Às respostas estruturais e transversais que o país tem implementadas para estas problemáticas, são na opinião de muitos profissionais e relatórios, insuficientes e incapazes de dar uma resposta universal em diferentes zonas do país. Ao mesmo tempo que se regista um aumento do consumo de álcool e drogas, surgem dados que são a evidência disso: mais consultas; mais readmitidos em tratamento; aumento de utentes admitidos com VIH e VHC; mais internamentos para desabituação e comunidades terapêuticas,mais mortes e mais acidentes de viação relacionado com o consumo de álcool (SICAD, 2018a)

Destes dados, emergem as necessidades em saúde das pessoas com CAD. Temos as necessidades que decorrem do uso e do efeito das substâncias ou outro comportamento aditivo (problemas gástricos, hepáticos, respiratórios, infeções transmissíveis, alterações do pensamento e da perceção, ansiedade, humor depressivo, etc.), as necessidades que decorrem do uso prolongado das substâncias ou outro comportamento aditivo (isolamento social, dificuldade no enfrentamento, diminuição das competências sociais, desemprego, problemas laborais ou escolares, problemas económicos, diminuição de motivação, etc.) e por fim as necessidades das famílias (diminuição da qualidade de vida, dificuldades nos processos familiares). Para estas necessidades em saúde vamos tendo evidência que muitos destes problemas, quando atendidos, são sensíveis aos cuidados de enfermagem (Seabra, Amendoeira, & Sá, 2017), com ganhos evidentes em muitos casos, obtidos pelas intervenções dos enfermeiros (Comiskey et al., 2019; Erim et al., 2016; Patrício et al., 2016). Se a estas necessidades que decorem do uso, juntarmos as necessidades em saúde que decorrem do próprio processo de envelhecimento (Seabra & Sá, 2011), visto que a média de idades dos utentes em tratamento, principalmente por drogas e álcool, não parar de aumentar (SICAD, 2018b podemos facilmente extrapolar para crescente necessidade de cuidados de enfermagem por parte desta população (WHO, 2018)

É chegado o momento em que é necessário, para responder a estas necessidades em saúde e assumir cada vez mais um papel determinante no que se refere à prevenção junto de populações potencialmente em risco para diferentes CAD, os enfermeiros assumirem a responsabilidade e liderança de projetos de intervenção que vissem a minimização dessas necessidades em saúde, baseados na evidência do conhecimento em enfermagem. Veja-se que as necessidades principais podem ser minimizadas quando se capacita as pessoas para o autocuidado (abstinência e redução de riscos e minimização de danos (RRMD)) e para as adaptações necessárias ao impacto que estes CAD têm na sua vida e na vida das suas famílias. Veja-se que os utentes apelam a um papel mais ativo dos enfermeiros nos seus processos de acompanhamento e valorizam o respeito do cuidado e quando participam na decisão sobre seu plano de cuidados (Comiskey et al., 2019; Seabra, Amendoeira, & Sá, 2018; Seabra, Sá, Amendoeira, & Ribeiro, 2017).Os enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde mental e psiquiátrica (EEESMP), no quadro das suas competências especificas e acrescidas, são profissionais que sem dúvida, estão munidos dos requisitos necessários para fazer todo o espectro de intervenções desde a prevenção, o tratamento, a RRMD e o recovery. Competências que vão desde a dimensão do autoconhecimento necessário para enfrentar os sentimentos que muitas vezes são gerados quando confrontados com algumas características e comportamentos dos seus utentes; assistência e ajuda ao longo do ciclo de vida em contextos muitas vezes de proximidade, adversos mas sempre complexos; realização de intervenções psicoterapêuticas, sócio terapêuticas, psicossociais e psicoeducacionais, tão necessárias para fazer face a necessidades psicoemocionais e de capacitação emergentes em diferentes fazes da doença (OE, 2018).

Pensando ainda o quadro de competências do EEESMP importa refletir sobre a formação e competências especificas dos “Addiction Nurses” (Enfermeiros dos CAD). Refira-se que em Portugal, como em muitos outros países há enfermeiros com outras áreas de especialidade (especialmente de Enfermagem comunitária e saúde pública) a trabalhar nesta área de cuidados. Neste quadro importa repensar uma formação mais especifica, reforçada, baseada na evidência e até reforçada pelo aumento do número de pessoas com CAD, em risco ou em tratamento. Os CAD alteram-se a um ritmo que nos conduz a uma apreciação que provavelmente hoje, não conseguimos prever quais as consequências no futuro. A formação especifica deve ser reforçada no quadro dos enfermeiros em geral e no quadro dos EEESMP em particular. Já existe formação especifica (certificação como enfermeiros de adição) em muitos contextos (EUA, Canadá) e a Europa deve seguir o mesmo caminho. Ainda neste sentido importa a discussão sobre algo muito sensível no nosso quadro legal e de enquadramento profissional, a prescrição de medicamentos por parte dos enfermeiros devidamente habilitados. É uma evidência em muitos países, até na Europa (Inglaterra, Irlanda, Holanda, Espanha). Existe em contextos de prescrição com pessoas com doença crónica, e esta é uma delas (note-se que nos países onde esta prescrição acontece, ela surgiu sempre pela necessidade satisfazer de forma mais eficaz as necessidades das pessoas). Especificamente sobre a prescrição de medicamentos relacionados com o comportamento aditivo com substâncias, existe na Inglaterra e na Holanda (Clancy et al., 2019) e esta resposta é ainda solicitada pelos próprios utentes em outros países como a Irlanda (Comiskey et al., 2019). A discussão deve prosseguir, tal como a discussão sobre a necessidade de se aproveitar um conjunto de competências dos enfermeiros especialistas(Clancy et al., 2019) para de forma mais concreta se exercer uma enfermagem avançada, ou seja, responder com cuidados às necessidades das pessoas com maior efetividade das nossas intervenções(Woo et al., 2017)

 

Referências Bibliográficas

Clancy, C., Kelly, P., & Loth, C. (2019).State of the Art in European Addictions Nursing. Journal of Addictions Nursing, 30(3), 139–148.

Comiskey, C., Galligan, K., Flanagan, J., Deegan, J., Farnann, J., & Hall, A. (2019). Clients’ Views on the Importance of a Nurse-Led Approach and Nurse Prescribing in the Development of the Healthy Addiction Treatment Recovery Model. Journal of Addictions Nursing, 30(3), 169–176. Doi: 10.1097/JAN.0000000000000290.

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Erim, Y., Bottcher, M., Schieber, K., Lindner, M., Klein, C., Paul, A., Beckebaum, S., Mayr, A., & Helander, A. (2016). Feasibility and Acceptability of an Alcohol Addiction Therapy Integrated in a Transplant Center for Patients Awaiting Liver Transplantation. Alcohol And Alcoholism 51(1), 40–46.

Gonçalves-Pinho, M., Bragança, M., & Freitas, A. (2019). Psychotic disorders hospitalizations associated with cannabis abuse or dependence: A nationwide big data analysis. International Journal of Methods in Psychiatric Research, September, 6–11. Doi: 10.1002/mpr.1813.

Larney, S., Hickman, M., Fiellin, D. A., Dobbins, T., Nielsen, S., Jones, N. R., Mattick, R. P., Ali, R., & Degenhardt, L. (2018). Using routinely collected data to understand and predict adverse outcomes in opioid agonist treatment: Protocol for the Opioid Agonist Treatment Safety (OATS) Study. BMJ Open, 8(8), 1–6.Doi: 10.1136/bmjopen-2018-025204.

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