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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

versão impressa ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.23 Porto jun. 2020

https://doi.org/10.19131/rpesm.0266 

EDITORIAL CONVIDADO

 

O papel do enfermeiro na sexualidade do cidadão com problemas no seu“continuum de saúde”

 

Hélder Lourenço*

*Sexólogo Clínico e Terapeuta Sexual pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica; Secretário da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica da Ordem dos Enfermeiros (mandato 2020-2023); Enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica no Centro Hospitalar Tondela Viseu, EPE, Unidade de Saúde Mental Comunitária, Avenida Rei Dom Duarte, 3504-509 Viseu, Portugal. E-mail: helderacfl@gmail.com

 

O que é a sexualidade? A resposta a esta questão não é simples. Freud observava a sexualidade como uma força psicológica e biológica fundamental para a estruturação da personalidade (Masters, Johnson & Kolodny, 1987; Brandão, 2007), ou seja, o conceito de sexualidade assume-se mais como um processo com que o ser humano se estrutura, organiza e comunica, sendo igualmente uma expressão física e emocional poderosa, estruturante da psique humana e da organização social, conforme é assinalado por vários autores (Nunes, 1987; Foucault, 1994; Alberoni, 2007). Estas considerações sobre a sexualidade humana são essenciais para se conseguir definir, entender ou operacionalizar a saúde sexual, que é definida pela Organização Mundial de Saúde (cit. por Oliveira, 2014, p. 37) como: “…um estado de bem-estar físico, mental e social em relação à sexualidade. Exige uma abordagem positiva e de respeito pela sexualidade e relações sexuais, bem como a possibilidade de ter experiências sexuais agradáveis e seguras, livre de coerção, discriminação e violência”.

Assim, a sociedade, para se tornar sexualmente saudável, deve aceitar os desafios de reconhecer que a saúde sexual é um direito humano fundamental, que devem existir políticas públicas para a sua promoção e proteção, que devem existir leis que protejam os direitos sexuais, que deve existir acesso universal a uma cuidada educação sexual adequada à idade, que deve existir um acesso também a serviços de saúde equipados com profissionais especializados e à vigilância e monitorização adequada de comportamentos e indicadores de saúde sexual. Neste sentido, a saúde sexual não deve limitar-se apenas ao aconselhamento e cuidados de saúde relativamente à procriação e ao evitamento das doenças sexualmente transmissíveis, mas também constituir uma abordagem positiva à sexualidade humana para o enriquecimento da vida e das relações interpessoais (Barros & Figueiredo, 2014).

A sexualidade humana é influenciada por múltiplos fatores (biológicos, psicológicos, sociais, económicos, políticos, culturais, legais, históricos, religiosos e espirituais) e requer sempre um estudo multidisciplinar e multiprofissional para uma correta intervenção em contexto de saúde. Idealizar uma intervenção em saúde sexual requer organizar as respostas e os cuidados de saúde tendo como linha orientadora o ciclo de vida e as múltiplas transições vividas, nomeadamente nos processos de saúde/doença, que não se coadunam com protocolos de atuação e tratamento específicos de uma única problemática ou circunscritos a uma única profissão ou especialidade.

A forma como planeamos os cuidados na área da saúde sexual ao longo destes processos transacionais do ciclo da vida requer a desconstrução de mitos e representações erróneas sobre o género e o sexo, que definitivamente têm que aglutinar as dimensões biológicas, humana e social, assim como integrar os novos conhecimentos da sexualidade humana na formação e no desenvolvimento dos profissionais de saúde.

Sempre que o “continuum” de saúde é quebrado, a dimensão sexual é igualmente abalada, requerendo uma preocupação acrescida na sua promoção, prevenção e identificação da problemática acometida, obrigando os profissionais de saúde, nomeadamente o enfermeiro, como elo essencial da equipa multidisciplinar e fulcral na prestação de cuidados, a defender a privacidade e a intimidade da pessoa doente ou com restrições de qualquer ordem, seja ao nível dos cuidados primários, diferenciados ou continuados.

Na presença de um problema sexual são frequentes os sentimentos de dúvida e medo por parte da pessoa, manifestando enorme dificuldade em abordar este problema com os profissionais de saúde por pensar que é desadequado para a situação, ou mesmo por timidez, ou até por achar que tem que ser o profissional de saúde a determinar quando esta problemática deve ser focada. No entanto, estranhamente e não raras vezes, o mesmo acontece por parte dos profissionais de Enfermagem, que maioritariamente demonstram também uma enorme dificuldade em lidar com esta área da expressão sexual, fazendo imperar o silêncio como forma de resolução desta problemática (Wimberly & Moore, 2007).

Os cuidados de Enfermagem tomam sempre por foco de atenção a promoção dos projetos de saúde de cada cidadão, independentemente da sua raça, credo ou género, e neste contexto procuram sempre, ao longo do ciclo vital, prevenir a doença e promover os processos de readaptação, procurar a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a máxima independência na realização das atividades de vida, ao mesmo tempo que procuram a adaptação funcional aos défices e a adaptação a múltiplos fatores. Neste sentido, a sexualidade e as suas alterações terão que ser sempre objeto, e ou mesmo tempo objetivo, destes padrões de qualidade dos cuidados de Enfermagem e dos seus enunciados descritivos (Ordem dos Enfermeiros, 2012).

A chave para se poder providenciar ajuda no plano sexual das pessoas está precisamente na capacidade que o enfermeiro terá em abordar o tópico sexual, de espírito aberto e através da escuta ativa, com a indispensável isenção de juízos de valor, mantendo sempre a neutralidade mas sabendo reconhecer os seus próprios receios ou limitações (éticas ou religiosas), tratando a sexualidade como abordaria qualquer outro assunto da saúde e de preferência num ambiente descontraído, mas utilizando um espaço físico que respeite a dignidade e a confidencialidade das pertinentes questões sexuais, providenciando assim uma discussão e capacitação serena do utente (Mercadier, 2002).

Cada vez mais os profissionais de saúde estão atentos à temática da sexualidade humana, de tal forma que já existem várias valências ligadas a esta área, tais como a medicina sexual e a sexologia clinica, que se encontram em franca expansão mundial e em Portugal, abrangendo uma multiplicidade de profissionais tais como enfermeiros, médicos, psicólogos e farmacêuticos, entre outros, que permite abordar e intervir nas pessoas que necessitem de ajuda especializada nesta necessidade humana básica, com melhores resultados se o fizerem de forma conjunta e organizada.

Acredita-se que a existência de equipas especializadas em saúde sexual, multidisciplinares e com a participação ativa de vários profissionais, onde o enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica poderá e deverá ter um papel fundamental, quer pelas suas competências especificas, quer pelas suas potenciais competências acrescidas obtidas na área especifica da sexologia humana (educacional e clinica), serão essenciais para o desenvolvimento clinico diferenciado, dando resposta às situações de maior complexidade e diferenciação, devendo igualmente fazer um trabalho de consultadoria com outras equipas e áreas específicas.

No entanto, é impreterível, no primeiro contacto com o profissional de saúde que acolhe a pessoa doente ou com restrição da participação e que a acompanha durante todo o processo de internamento e posterior recuperação e reabilitação (quase sempre o Enfermeiro), criar uma relação empática, de compromisso, e sobretudo profissional, basilar e essencial para debelar a sexualidade protegida e promover uma cidadania sexual saudável e proativa, numa área da saúde quase sempre esquecida, negligenciada, onde não abundam os recursos humanos e materiais, sendo que aqueles que existem são muitas vezes inatingíveis para pessoas com baixos rendimentos (raramente existindo comparticipação estatal) e muito pouco divulgados pelos profissionais de saúde que os assistem, levando a que esta necessidade humana básica seja por vezes estranhamente esquecida e não priorizada.

 

Referências Bibliográficas

Alberoni, F. (2007). Sexo e Amor (2ª ed.). Lisboa: Bertrand Editora.         [ Links ]

Barros, F., & Figueiredo, R. (2014). Manual de medicina sexual: Visão multidisciplinar. Lisboa: Menarini Portugal.         [ Links ]

Brandão, A. (2007). A problemática da sexualidade humanizada: Sexoterapia ou reequilíbrio humano?. Loures: Lusociência.         [ Links ]

Foucault, M. (1987). A arqueologia do saber (3ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.         [ Links ]

Masters, W., Johnson, V., & Kolodny, R. (1987). Amour sexualite: Mieux vivre sa vie sexuelle dans le monde d’aujourd’hui. Paris: InterEditions.         [ Links ]

Mercadier, C. (2002). O trabalho emocional dos prestadores de cuidados em meio hospitalar. Loures: Lusociência        [ Links ]

Nunes, C. (1987). Desvendando a sexualidade (4ª ed.). Campinas: Papirus.         [ Links ]

Oliveira, F. R. (2014). Saúde sexual. In F. Barros, & R. Figueiredo (Eds.), Manual de medicina sexual: Visão multidisciplinar. Lisboa. Menarini Portugal.         [ Links ]

Ordem dos Enfermeiros. (2012). Padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem: Enquadramento conceptual e enunciados descritivos. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros.         [ Links ]

Wimberly, Y., & Moore, S. E. (2007). Doctors, patients, and sexuality. In G. Herdt & C. Howe (Eds.), 21st century sexualities: Contemporary issues in health, education and rights (pp. 92-95). Londres: Routledge.         [ Links ]

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