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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

versão impressa ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.spe1 Porto abr. 2014

 

Maus-tratos à infância: As referências dos técnicos das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens [CPCJ]

 

Maltrato infantil: Las referencias a los técnicos de las Comisiones de Protección de los Niños y Jóvenes [CPNJ]

 

Child Maltreatment: References to technicians at the Commissions for Protection of Children and Young [CPCY]

 

Paula Sarreira de Oliveira* & Aida Simões**

*Doutoranda na Universidade Católica Portuguesa – Instituto de Ciências da Saúde; Docente na Escola Superior de Saúde Egas Moniz – Departamento de Enfermagem, Quinta da Granja, Monte de Caparica, 2829-511, Caparica, Portugal. E-mail: psarreira@gmail.com

**Doutoranda na Universidade Católica Portuguesa – Instituto de Ciências da Saúde; Docente na Escola Superior de Saúde Egas Moniz, 2829-511 Caparica, Portugal. E-mail: aidasimoes@gmail.com

 

RESUMO

A violência contra crianças e adolescentes é um grave problema de saúde, portanto, deve ser identificado e abordado pelos profissionais e especialistas na matéria. Este artigo tem como objetivo apresentar a perceção dos técnicos face aos maus-tratos da criança. O desenho metodológico baseia-se num estudo com caráter exploratório, descritivo, pesquisa quantitativa, procurando trabalhar com o universo de significados, motivações, e atitudes. A população deste estudo foi formada por todos os elementos pertencentes às CPCJ´s do Distrito de Setúbal. Com base nos resultados obtidos, a atitude substitutiva dos técnicos não favorece o desenvolvimento de competências, aumentando a postura da delegação como também diminui a autoestima da família.

Relativamente a uma eventual mudança de atitude em relação à vítima, de acordo com o número de anos, observou-se que nada ou quase nada havia mudado, já os sentimentos para com o agressor, verificou-se que a raiva é o sentimento mais frequentemente e a passividade era o sentimento menos frequente, quanto ao abuso no geral, o sentimento mais referenciado foi a frustração.O projeto de vida das crianças era uma das preocupações referidas, sendo necessário contextualizar a singularidade de cada caso.

Palavras-Chave: Atitude; Maus-tratos; Criança; Valores

 

RESUMEN

La violencia contra los niños es un problema de salud grave, por lo tanto, deben ser identificadas y tratadas por los profesionales y expertos. Este artículo tiene como objetivo presentar la percepción dos técnicos contra los niños. Nuestra metodología se basa en un estudio de investigación exploratoria, descriptiva cuantitativa, tratando de trabajar con el universo de significados, motivaciones y actitudes. La población de estudio consistió de todos los elementos que pertenecen a Setúbal del CPNJ. En base a los resultados obtenidos, la actitud de sustitución técnica no favorece el desarrollo de habilidades, incrementando la postura de la delegación, pero también disminuye la autoestima de la familia. Para un posible cambio de actitud hacia la víctima, de acuerdo con el número de años, se observó que poco o nada había cambiado desde los sentimientos hacia el agresor, se encontró que la ira es un sentimiento más a menudo y la pasividad era el sentido menos común, el abuso en general, la sensación de mayor frecuencia fue la frustración.

La vida útil de los niños fue una de las preocupaciones planteadas, siendo necesario contextualizar la singularidad de cada caso.

Descriptores: Actitud; Maltrato; Niño; Valores

 

ABSTRACT

Violence against children is a serious health problem, therefore, must be identified and addressed by professionals and experts. This article aims to present the perception of technical against the child. Our methodology is based on a study of exploratory, descriptive, quantitative research, seeking to work with the universe of meanings, motivations, and attitudes. The study population consisted of all elements belonging to the CPCY of Setubal. Based on the results obtained, the attitude of technical substitution does not favor the development of skills, increasing the stance of the delegation but also decreases the self-esteem of the family. For a possible change of attitude towards the victim , according to the number of years , it was observed that little or nothing had changed since the feelings toward the offender , it was found that anger is a feeling more often and passivity was the least common sense , the abuse in general, the most commonly reported feeling was frustration.

The design life of children was one of the concerns raised, being necessary to contextualize the uniqueness of each case.

Keywords: Attitude; Abuse; Child; Values

 

Introdução

Ao analisar a existência e prevalência do abuso a crianças ao longo dos tempos, será imprescindível falar acerca das conceções da infância, enquadrando a sua relação com as conceções de abuso e proteção legal. A problemática relacionada com os maus-tratos é uma realidade com dimensões e implicações gigantescas para a sociedade, à qual não se pode mostrar indiferença. Os maus-tratos em crianças e jovens constituem ainda, um grave e complexo problema social, resultando essencialmente das várias vertentes do conceito de maus-tratos, relacionados com fatores culturais, socioeconómicos e com a área profissional ao nível da qual é feita a sua abordagem. Magalhães (2010, p.19) refere que “(…) os maus-tratos resultam, essencialmente de três aspetos: das várias vertentes do conceito de maus-tratos, relacionados com os fatores culturais, socioeconómicos e com a área profissional ao nível da qual é feita a sua abordagem. A violência contra as crianças e adolescentes é um grave problema de saúde, que deve ser identificado e abordado por profissionais que atuam na área”.

A preocupação e estratégias de proteção expressam-se através de textos e documentos legais. Deve por isso ser um elemento ativo na proteção da criança quando as relações que ela estabelece durante os primeiros anos de vida revelam-se manifestamente inadequadas e prejudiciais ao seu desenvolvimento harmonioso.

A Organização Mundial da Saúde [OMS] (2002) preconiza que as intervenções nestas circunstâncias sejam a nível primário, secundário e terciário. A intervenção a nível primário tem por objetivo evitar a sua ocorrência através de práticas educacionais de paternidade e maternidade responsável. Neste nível de intervenção, as ações propostas incluem a atenção à saúde pré-natal, perinatal e na primeira infância, visando entre outras coisas, melhorar o desenvolvimento e fortalecer os vínculos afetivos. Ao nível secundário, as intervenções devem ser dirigidas para as famílias em situação de risco, proporcionando informações sobre educação e recursos disponíveis na comunidade. Já a intervenção a nível terciário está direcionada para minimizar os efeitos dos maus-tratos, evitar novos episódios e proporcionar uma adequada gestão terapêutica. O reconhecimento imediato desse problema e a rápida intervenção, por parte dos profissionais, representam uma proteção efetiva para estas crianças e uma possibilidade de se rever as relações parentais.

Silva (2011) refere que a violência contras as crianças e adolescentes é um fenómeno complexo e multifatorial, isto é, envolve fatores socioeconómicos e histórico-culturais, bem como a invisibilidade e impunidade. O mesmo autor salienta que, as pesquisas efetuadas mencionam que, os principais tipos de violência ocorrem entre as famílias (violência intrafamiliar), muitas vezes praticada em ambiente doméstico, por pessoas de família, cuidadores ou pessoas próximas da família (violência doméstica). No entretanto também acontece noutros ambientes, como a escola, creches, lares, comunidade e ambientes sociais de uma forma geral (Silva, 2011). Deste modo, a identificação do problema deve, necessariamente, desencadear ações de proteção e notificação, cumprindo com isso, as determinações contempladas na Lei. A atitude dos profissionais na abordagem dos maus-tratos infligida contra a criança e o adolescente encontra-se intimamente relacionada com a visibilidade ou não que o problema assume no seu quotidiano. A reflexão sobre os conceitos dos diferentes tipos de maus-tratos e as ideias a eles associadas contribuem para se entender os possíveis encaminhamentos que dão aos casos identificáveis. Assim, a efetivação de um atendimento depende da possibilidade de ser capaz de identificar a presença ou a suspeita da violência nos diferentes casos. Por outro lado, ter ou não visibilidade depende, de outros aspetos, como o da escuta e do olhar que o profissional consegue no atendimento.

Pesquisas deram origem a novas definições do constructo. De Bogardus (Droba, 1933, p. 515) define atitude como “ (...) uma tendência para agir a favor ou contra algo no meio ambiente, o que se torna por isso um valor positivo ou negativo”. Três quartos de século depois, Eagly & Chaiken (2007) argumentam por uma definição mais inclusiva, em que atitude fosse considerada como uma tendência psicológica expressa pela avaliação de uma entidade particular com um certo grau de favorabilidade ou desfavorabilidade.

Considerando que as instituições, profissionais ou técnicos que contactam com as crianças e jovens em situação de risco ou perigo são um dos pilares no acompanhamento das situações diagnosticadas ou seja, as que estão sobre objeto de intervenção da Lei. Deste modo, pretendemos verificar qual a perceção dos técnicos face à representação dos maus-tratos às crianças, verificar qual a perceção e sentimentos face ao mau-trato, vitima e agressor, bem como qual as sequelas mais observadas e que identificam através da sua experiência, qual a intervenção, recuperação e acompanhamento mais adequado, de forma a uma integração mais adequada dessa criança.

Conscientes da complexidade do fenómeno e das muitas variáveis em jogo, aceitámos o desafio ao procurar respostas para as questões que nos preocupam.

A investigação realizada contribui para um melhor conhecimento dos contextos e práticas profissionais dos elementos constituintes das CPCJ´s, incidindo na construção das atitudes e valores bem como as suas implicações na intervenção institucional destas famílias.

 

Metodologia

Com a convicção de que os maus-tratos deixam marcas emocionais que têm mais dificuldade em sarar que as marcas físicas, cabe a cada técnica ajudar na diminuição dessas marcas, nomeadamente na ajuda na e para a família. A criança que é maltratada no seio da família experimenta de uma forma permanente o facto de ser maltratado por quem deveria ser responsável pela sua proteção, cuidado e amor.

De modo geral os valores humanos têm sido definidos como critérios que guiam o comportamento, desenvolvimento e manutenção das atitudes em relação às pessoas e eventos bem como, capaz de justificar preferências e até para avaliação cognitiva (Lima, 1993). Revendo a temática abordada na tipologia dos valores humanos de Schwartz & Sagiv (1995), referimos como base, de que os valores são como princípios abstratos que guiam ou justificam as atitudes, as opiniões e os comportamentos. Tornando-se desejável que certas formas de pensar, sentir e agir, sejam definidas como a expressão de sistemas organizados e duradouros de preferência, que tanto podem ser analisados e encontrados no plano social, como no plano individual. De facto, Estevam (2011) refere que, os valores podem ser de grande utilidade, pois não só dando orientações de valores que mantêm as relações pessoais, dando prioridade aos seus próprios interesses e valores pessoais, como também indicam uma relação com os outros, focando a relação interpessoal e os interesses coletivos e sociais, que podem predizer certas atividades.

Partindo da análise dos pressupostos teóricos, definiu-se a seguinte questão: Qual a perceção dos técnicos sobre abuso infantil?

Este estudo tem como objetivo, explorar as atitudes do técnico para os pais que abusam, reconhecer os valores fundamentais do técnico e por último mas não menos importante para contribuir e melhorar a implementação de estratégias de intervenção perante a questão do abuso infantil. Foi escolhida uma pesquisa quantitativa de abordagem exploratória descritiva. Na pesquisa efetuada tivemos dificuldade em encontrar um questionário adequado ao nosso estudo, confrontando-nos com a necessidade de construir um instrumento próprio. Na elaboração do questionário, juntamente com a pesquisa bibliográfica, tivemos presente a nossa experiência enquanto profissionais de saúde. Para LoBiondo-Wood e Haber (2001), questionários são instrumentos de registo escritos e planeados para pesquisar dados de sujeitos, através de questões, a respeito de conhecimentos, atitudes, crenças e sentimentos. Neste instrumento de colheita de dados é necessário ter uma atenção cuidadosa na sua preparação e na sua organização. Antes de mais, as perguntas foram organizadas, de uma forma lógica para quem a ele responde, por áreas temáticas claramente enunciadas. A recolha de dados foi realizada através de um questionário anónimo e voluntário, preenchido pelo entrevistado, e composto por perguntas fechadas e mistas.

População deste estudo foi composta por membros da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens do Distrito de Setúbal N=96; sendo a nossa amostra n = 67 elementos, no período de Maio a Julho de 2008, tendo sido recebidos e considerados como válidos para efeitos do presente estudo 67 questionários, representando uma taxa de retorno e adesão de 69.79%.

 

Resultados

Todas as variáveis em estudo foram analisadas individualmente. Com o objetivo de organizar, apresentar e interpretar os dados recolhidos, efetuámos um tratamento estatístico recorrendo ao programa de análise de dados SPSS (Statistical Package for Social Sciences), versão 17.0 para Windows. Na análise univariada, para as variáveis com níveis de medida nominal e ordinal determinou-se as frequências absolutas e as percentagens; no caso das variáveis com nível de medida quantitativo calculou-se os valores das médias e dos desvios-padrão. Seguindo os procedimentos apontados por Vilelas (2009), em primeiro lugar, deve proceder-se à delimitação dos objetivos e à definição do quadro teórico referencial e, em seguida construir “ um corpus ”, isto é, organizar o conjunto dos documentos que serão submetidos aos procedimentos analíticos.

Deste modo, depois de definido o quadro teórico, iniciámos um trabalho exploratório, constituído por todas as questões das entrevistas. Tentámos reconstituir as ideias principais, a coerência e as contradições. Este permitiu estabelecer um plano de categorias cuja orientação teve subjacente o pressuposto teórico.

Começamos por fazer a análise descritiva de algumas caraterísticas da amostra que nos parecem pertinentes, passando depois para a descrição dos resultados obtidos. Para concluir, iremos analisar as relações entre os diferentes dados recolhidos.

Verificamos deste modo que a maioria dos elementos da amostra se situa na faixa etária dos 30 aos 39 anos com 39% da amostra, sendo a média de 38,93 anos com desvio-padrão 9,845. Em relação à análise dos participantes do estudo por género, verificámos, que a maioria dos elementos da CPCJ, concretamente 86,6% era do sexo feminino o que corresponde a n=58 e sendo 13 % do sexo masculino com um n=9. Relativamente ao estado civil verifica-se que, 47% dos inquiridos, com n=31 dos elementos eram casados, seguidos de 38% com a representação de n=25.

Quanto à área da Formação, salientamos que a grande parte da nossa amostra apresenta como área de formação predominante o Serviço Social e a Psicologia com 22.4% o que corresponde a n=15 segue-se com 6.4% a formação ligada à área do Ensino, corresponde a n=11. A Enfermagem e a Educação Social apresentam valores de n=2 ou que corresponde 3% da nossa amostra.

A situação de vinculação designada como de Cooptados representa uma percentagem igual aos elementos que mantêm com a Comissão um vínculo de voluntariado. A percentagem de elementos que integram a comissão há menos de 1 ano, em detrimento dos elementos “seniores” ou seja os que integram as Comissões à 11anos. Na distribuição do número de horas verificasse a não existência de número ou de um horário padrão, para os diversos elementos. Existindo uma diversidade no nº de horas que cada elemento efetiva em trabalho na CPCJ.

Com base nos resultados obtidos, verificou-se que uma grande parte da nossa amostra tem trabalhado na Comissão a menos de um ano, estes resultados vão refletir sobre a prevenção, detenção e monitoramento de situações de maus-tratos, visto que essas famílias são geralmente seguido por uma quantidade enorme de serviços. Relativamente à associação entre experiencia na CPCJ e maus-tratos, é relevante a maioria dos elementos (17,9%), associar imediatamente e em primeiro lugar, a situação em que os maus-tratos estão diretamente ligados a exposição de violência doméstica, Alcoolismo/Toxicodependência e a Abuso Físico por Familiares. Foi respondido que sobre a eventual alteração da atitude perante a vítima ter sido alterada com o número de anos responderam 46,3% da nossa amostra respondeu que Nada ou Quase Nada, ter sido alterado na sua atitude perante a vítima com o número de anos nas Comissões. A análise indica que os sentimentos de Passividade e Negação com 28.4% ou n=19, são nada ou pouco frequentes para a maioria dos inquiridos. Por outro lado, a Angústia e a Frustração surgem como muito ou mesmo extremamente frequentes para bastantes inquiridos.

Em relação a uma eventual mudança de atitude em relação à vítima criança / jovem, de acordo com o número ou anos de exercício na Comissão, observou-se que 46,3 % da amostra respondeu que nada ou quase nada havia mudado. Quanto ao abuso no geral, a frustração foi o sentimento mais comum. Podemos observar os sentimentos perante o agressor de Raiva a Insegurança e a Incerteza surgem como os mais referidos como muito ou extremamente frequentes, sendo a Passividade e a Negação os sentimentos escolhidos pela maioria como sendo pouco ou nada frequentes. Quanto ao acompanhamento recomendado para a recuperação das crianças, observámos que a maior número de inquiridos discorda com a Institucionalização/ Hospitalização da criança/jovem vitimizado.

Verificou-se que o projeto de vida das crianças era uma grande preocupação para os técnicos. A maioria dos elementos classifica o funcionamento das Comissões como Bom com 52.2% (n=35),

Apurou-se que é necessário incorporar a singularidade de cada caso, com o conhecimento elaborado a partir de milhares de famílias auxiliadas sobre situações de abuso infantil e adolescente.

 

Discussão

Assim, muitas crianças ainda experimentam os dissabores das agressões. Infelizmente, o uso da punição ainda é instrumento utilizado com frequência em contexto familiar, na sociedade contemporânea. Mesmo encarado como algo normal para alguns, os maus-tratos na infância podem acarretar problemas que muito provavelmente terão impacto para toda a vida da vítima, levando-a a repetir por vezes o comportamento violento.

O reconhecimento da ocorrência de maus-tratos contra crianças trouxe, como consequência direta a necessidade de protege-la. É importante que os profissionais saibam reconhecer uma criança vítima de maus-tratos e se consciencializem que a omissão pode representar uma opção pela violência.

Deste trabalho podemos referir que houve dificuldade de comparação entre géneros uma vez que as desigualdades, em termos de participação no estudo, entre os sujeitos do sexo masculino e os do sexo feminino foram elevadas (13% homens e 87% mulheres), no entanto poder-se-á extrapolar para a atribuição à mulher, no núcleo familiar, a função dos cuidados educacionais e corporais dos seus filhos (Bustamante e Trad, 2005), assim a sua profissão, assemelha-se a uma extensão do lar, permitindo o aproveitamento desse potencial feminino na prestação de cuidados.

Relativamente ao conceito de maus-tratos, verifica-se que é relevante a maior concordância (concordo fortemente), com a referência a toda a forma de violência, prejuízo ou abuso físico ou mental, descuido ou trato negligente, maus-tratos ou exploração enquanto a criança se encontra sob custódia dos seus pais, de um tutor ou de qualquer outra pessoa que a tenha a seu cargo, bem como toda a forma de violência que afeta negativamente a saúde física e/ou psíquica da criança e comprometem o seu desenvolvimento. O próprio conceito mostra um alerta para como, é um conceito culturalmente construído, indicando que o que se considera violência em determinada época e cultura tem significado historicamente delimitado, como é referido por Faleiros e Faleiros (2008) ao referir que “ (…) as crueldades cometidas contra crianças pequenas fazem parte da história, sem falar do direito de vida ou de morte dado ao pai sobre os filhos. Somente em meados do século XIX começa a se esboçar uma preocupação com a criança, que passa a ser encarada como uma pessoa em formação. (…)”. Este resulta, essencialmente de três aspetos: das várias vertentes do conceito de maus-tratos, relacionados com os fatores culturais, socioeconómicos e com a área profissional ao nível da qual é feita a sua abordagem; dos mecanismos etiológicos, tais como problemas como a precariedade socioeconómica, o alcoolismo, a baixa formação escolar ou o excesso de stress que são frequentemente associados aos maus-tratos físicos, revestindo-se estes de maior visibilidade relativamente a outras formas de violência, como os maus-tratos emocionais, mais característicos dos núcleos socioeconomicamente favorecidos. Depende também das várias modalidades de abordagem da problemática, desde a intervenção (informal ou formal) à prevenção (Magalhães, 2010).

Os trabalhos relacionados com os diversos tipos de maus-tratos, em geral, colocam essa problemática como uma questão de violência doméstica, uma vez que, segundo eles, grande parte dos agressores eram os pais ou parentes. Verificamos que os diferentes fatores que causariam ou influenciariam a ocorrência dos distintos tipos de maus-tratos estariam presentes em quase todas as suas formas de apresentação, não havendo, em geral, uma explicação específica para um determinado tipo de violência. No entanto, a explicação mais recorrente refere-se à reprodução das experiências de violência familiar vividas durante a infância, contribuindo deste modo, para que se perpetuem os maus-tratos. Considera-se que a vivência de determinada forma de violência influenciará no desenvolvimento do sujeito, sendo que em muitas situações marcam profundamente o ciclo vital (Silva, 2011).

A noção de atitude como predisposição socialmente apreendida para o comportamento é aceite clássica e consensualmente pelas ciências sociais. Da mesma forma, aceita-se que as atitudes são organizadas em sistemas cujo carácter distinto é avaliativo e que é expressa afetivamente em termos de intensidade (mais /menos, ou maior/menor) e direção (positiva/negativa) e que orientam a ação tendo um componente cognitivo. Eagly & Chaiken (2007) referem que atitude é uma tendência psicológica que se expressa mediante a avaliação de uma entidade (objeto) concreta, com certo grau de favorabilidade ou desfavorabilidade. No entanto relativamente à atitude, a questão fulcral é que ela é complexa, isto é, simultaneamente estável e suscetível de mudar, tendo algo de subjetivo e de objetivo e tem origem interna e externa. A atitude, não existe no abstrato, está ligada a crenças e valores, com os quais interage, determinando-se mutuamente.

Deste modo, a atitude dos profissionais na abordagem aos maus-tratos encontra-se intimamente relacionada com a visibilidade que o problema assume no quotidiano. Assim a efetivação de um atendimento depende da possibilidade de ser capaz de identificar a presença ou a suspeita da violência nos diferentes casos. Por outro lado, ter visibilidade depende de outros aspetos como a escuta e o “olhar” que o profissional consegue na abordagem à situação. Quanto aos dados que recolhemos sobre os sentimentos que os elementos vivenciaram face aos maus-tratos, podemos concluir que os sentimentos mais manifestados foram a angústia e a frustração e os menos referidos foram a passividade e negação. Contudo, outros autores elegeram outras conclusões.

A atitude perante o agressor a maioria da nossa amostra referiu que a sua atitude não se alterou nada ou quase nada com o decorrer dos anos. Referindo que os sentimentos mais vivenciados são a raiva e a frustração. Podemos concluir que as atitudes podem construir uma explicação psicológica para os maus-tratos, com base na análise da personalidade de quem maltrata pode, de certa maneira, apresentar de forma patológica o agressor, que é reprovado mas compreendido pela sua patologia.

No nosso estudo mais de 50% dos elementos respondeu que as maiores repercussões dos maus-tratos é a dificuldade nos relacionamentos interpessoais, com altos níveis de agressão física e verbal, acompanhados por isolamento, rejeição e não inserção no seu grupo de pares, indo de encontro ao referido por Oliveira (1989) que salienta que as consequências da vitimização física são danos causados no desenvolvimento físico, neurológico, intelectual e emocional. Dentro das consequências psicológicas pode-se citar auto conceito negativo e baixa estima, comportamento agressivo, dificuldade de relacionamento com crianças e adultos, capacidade prejudicada de acreditar nos outros e infelicidade geral. Estes resultados podem ser reforçados com os estudos elaborados por Maughan, Cicchetti, Toth & Rogosch (2007), que ao examinar os efeitos dos maus-tratos, verificaram que existe uma correlação entre os ambientes patogénicos e a proporção na diminuição da regulação da emoção impedindo o bem-estar psicológico quando na interação com o adulto. Vieira (2010) afirma que os maus-tratos infantis são um problema multidimensional, e relacionado com uma multiplicidade de fatores que sendo um fenómeno universal, ocorre em todas as culturas e sociedades. O problema da criança maltratada exige uma intervenção que, de acordo o mesmo autor, só poderá ser eficaz se for interinstitucional e multidisciplinar, essencialmente ao nível dos cuidados antecipatórios e de modo a envolver toda a comunidade.

Para uma melhor recuperação destas crianças, os elementos, referiram que a melhor estratégia seria o “Trabalho de projeto de vida, com o menor e com a família” ou seja foi a opção que reuniu uma concordância mais forte. Esta concordância vai de encontro ao que foi vinculado por Allport, Vernon & Lindzey (1970) que sugeriram que a maioria das atitudes, são adquiridas através do diálogo estabelecido entre a família e amigos, ou seja quando outras instituições começam a moldar o indivíduo, a família já realizou esta transformação. A família é o transformador do organismo biológico em ser humano. A atitude substitutiva em nome dos técnicos não favorece o desenvolvimento de competências e, pelo contrário, aumenta a postura da delegação e assumir, também diminuindo a autoestima da família.

Este material biológico transformado tem como fundamento a cultura a que esta família pertence, embora estas famílias são muito vulneráveis e onde estão presentes múltiplos problemas de natureza fisiológica, psicológica ou social, vivendo frequentes e não contínuas, situações de desorganização, em que o ciclo familiar representa uma sucessão sem fim de crises, impossibilitando o desempenho das funções familiares. O componente social age na formação da atitude, na aquisição e desenvolvimento das mesmas, influenciando o indivíduo indiretamente através da menor unidade do sistema social, que é a família. Esta vinculação social irá, construir os “modelos” que promovem efeitos positivos ou negativos em relação aos diversos agrupamentos humanos, determinando comportamentos. Os “modelos” e as demais atitudes, que os seres em sociedade manifestam, funcionam de certo modo, para compreender o mundo, para proteger a nossa autoestima de forma a ajustarmo-nos no mundo complexo e de modo a expressar os nossos valores fundamentais. Os aspetos que o social fornece vão completar ou corrigir as atitudes iniciadas na família. Os resultados obtidos também estão de acordo com Tyler, Brownridge e Melander (2011), onde são referidas conclusões que apontam para o facto de pais com menor disponibilidade afetiva e mais negligentes.

Quanto à prática corrente e acessível na CPCJ, na recuperação da criança, encontra-se muitas vezes nos sistemas envolventes como a família alargada, vizinhos, conhecidos, amigos, instituições e grupos de voluntários, que sensibilizados pelos muitos problemas e dificuldades daquelas famílias, desenvolvem mecanismos compensatórios que se tornam recursos importantes para a intervenção, realçando a importância de não se tornarem uma forma de diminuir as competências da família mas, antes pelo contrário alargá-las e implementá-las. Cruz (2006, p.34) refere que, perante as famílias com padrões de funcionamento conflituoso, existe uma grande dificuldade em assegurar a totalidade as suas funções, em consequência do seu modo de funcionamento, apresentando “ (…) limites confusos, alianças fracas entre pais e filhos, oposição à mudança, equilíbrio rígido e comunicação pouco clara.”

De facto as Instituições podem ser elas mesmas modeladoras das atitudes nos diferentes grupos sociais através da sua ideologia de uma forma direta ou indireta, sendo os valores que nos orientam e fornecem parâmetros para o julgamento, avaliação e adoção de condutas, doutrinas, crenças, ideologias e culturas. Como referencial, temos os dados da Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco de 2004, que refere as medidas mais aplicadas pelas Comissões, continuam a ser as que se referem ao apoio em meio natural de vida, com destaque para as medidas de apoio junto dos pais.

Do que foi referido acerca dos conceitos de atitude e conceções, é de referir que as conceções são do campo do conhecimento e estão por essa razão, relacionadas com o que pensamos, com conceitos intelectuais e com valores morais. Ou seja as conceções que um indivíduo tem acerca de um assunto determinam a sua atitude face a esse mesmo assunto. Assim, as atitudes estão relacionadas com as posições assumidas, com as ações e pode-se dizer que são do campo da ação.

Fazendo uma abordagem sobre a dimensão do conhecimento, Popadiuk & Choo (2006) apontam que este é baseado na experiência, pensamento e sentimentos num contexto específico, e é composto de componentes cognitivos e técnicos. O componente cognitivo refere-se a modelos mentais de um indivíduo, crenças, paradigmas e pontos de vista. O componente técnico refere-se ao know-how e às habilidades que se aplicam em determinado contexto específico. Também discute um terceiro tipo de conhecimento: o conhecimento cultural, que se esse refere aos pressupostos e crenças usados para descrever e explicar a realidade, as convenções e expectativas usados para atribuir valor e significado à uma nova informação. Lima (1993), referenciou que o componente cognitivo é uma estrutura de conhecimentos ou de crenças compartilhadas com outras pessoas. Tais estruturas possibilitam ao indivíduo organizar e hierarquizar as informações recebidas e assim auxiliam a construção das noções sobre o mundo externo e sobre si mesmo.

 

Conclusões

Partimos do pressuposto que os profissionais são portadores de saberes e experiências que adquiriram ao longo da sua vida pessoal e profissional que ajudaram na formação das suas atitudes e saberes refletindo-se na sua prática do quotidiano influenciando a sua ação e determinação na resolução de situações de maus-tratos.

As questões orientadoras marcaram a direção, imprescindível e necessária a toda a pesquisa, no entanto, sofrendo reformulações no decorrer da investigação; o carácter recursivo da abordagem, as interações estabelecidas e o conhecimento progressivo sobre o objeto de estudo assim o exigiram. O estudo evidenciou a preocupação que os elementos das Comissões têm com as estratégias de recuperação destas crianças bem como o trabalho de projeto de vida com o menor e família. A possibilidade de inverter o destino de exclusão, gerando a mudança de atitudes, valores, padrões de comportamento e alargando os conhecimentos e competências indispensáveis à obtenção de uma qualificação profissional portadora de autonomia económica, dignidade e relacionamentos sociais, depende estreitamente da criação de um meio de socialização rico, não somente no plano do relacionamento e das referências como no da interiorização de conhecimentos e competências. A complexidade e multidimensionalidade dos problemas que impedem estas crianças de serem protagonistas de trajetos sociais inclusivos implicam o recurso a formas de intervenção de grande qualidade, designadamente no que respeita às atividades de apoio ao estudo, de educação de atitudes, valores e afetos, de aquisição de competências culturais em domínios como o desporto, a música e outras formas de expressão artística. A possibilidade de inverter o destino de exclusão, gerando a mudança de atitudes, valores, padrões de comportamento e alargando os conhecimentos e competências indispensáveis à obtenção de uma qualificação profissional portadora de autonomia económica, dignidade e relacionamentos sociais, depende estreitamente da criação de um meio de socialização rico, não somente no plano do relacionamento e das referências como no da interiorização de conhecimentos e competências. Sem esses requisitos decisivos não será possível reparar as marcas profundas e dolorosas deixadas pelas privações materiais e pela debilidade ou rotura dos laços afetivos no seio das suas próprias famílias.

 

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Recebido em 30 de novembro de 2013

Aceite para publicação em 16 de fevereiro de 2014