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Revista de Gestão Costeira Integrada

versão On-line ISSN 1646-8872

RGCI vol.13 no.3 Lisboa set. 2013

https://doi.org/10.5894/rgci354 

ARTIGO / ARTICLE

Análise das lógicas de ação de atores sociais em torno do licenciamento ambiental de um terminal portuário no estuário de Santos (Brasil)*

 

Analysis of the logic of action of stakeholders surrounding the environmental licensing of a port terminal in Santos estuary (Brazil)

 

 

Fernanda Terra Stori@, I; Denis Moledo de Souza AbessaII; Nivaldo NordiI

@Corresponding author

IUniversidade Federal de São Carlos, Rodovia Washington Luiz, Km 235, Monjolinho, Caixa Postal 676, CEP 13.565-905, São Carlos-SP, Brasil. e-mails: Stori - feterra@terra.com.br; Nordi - nivaldo@ufscar.br
IIUniversidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Experimental do Litoral Paulista. Praça Infante Dom Henrique, s/n. Parque Bitaru, São Vicente, SP. CEP: 11330-900. e-mail: dmabessa@clp.unesp.br

 

 


RESUMO

A franca expansão industrial-portuária no estuário de Santos (Estado de São Paulo - Brasil) vem ameaçando os ecossistemas marinho-estuarinos, incluindo seus bens e serviços ambientais. Este artigo concentra-se na análise da controvérsia do licenciamento ambiental de um moderno terminal portuário neste estuário e das lógicas de ação de onze atores sociais envolvidos, ou seja, das visões de mundo que foram dominantes para os acordos que promoveram a instalação do empreendimento, com base nos referenciais das Economias de Grandeza e da Sociologia da Tradução. Os atores foram mapeados em diversos ambientes de participação sobre desenvolvimento e meio ambiente na Baixada Santista. Foram selecionados treze atores a serem entrevistados, sendo que onze deles aceitaram realizar a entrevista e dois não responderam às tentativas de contato. Foram formuladas para as entrevistas semiestruturadas questões fechadas para caracterização socioeconômica e questões abertas comuns para todos os entrevistados, sobre: o objetivo da instituição que representa; a visão de mundo a respeito do futuro dos manguezais e da pesca no estuário Santista; e, seu envolvimento na controvérsia entre projetos de expansão portuária e a conservação dos manguezais remanescentes no estuário santista. Ainda foram questionados quanto aos aspectos positivos e/ou negativos do empreendimento, sobre a relação da instituição junto à comunidade pesqueira da Ilha Diana, e ainda, sobre a possibilidade de compatibilizar a expansão portuária com a manutenção do modo de vida caiçara no estuário Santista. Também foram elaboradas questões específicas para cada entrevistado, buscando entender qual é a atividade de cada instituição no território estudado. Ainda, com base no conhecimento prévio de atitudes contraditórias de alguns entrevistados frente ao posicionamento institucional, foram formuladas questões buscando averiguar ações conflitantes com o discurso. Solicitamos aos atores selecionados que representassem a postura de suas instituições e/ou instâncias, contudo, por vezes o opinião individual preponderou sobre a missão institucional. Dezoito horas de falas foram transcritas e classificadas de acordo com as características predominantes dos seis Princípios Superiores Comuns das Economias de Grandeza, e foram escolhidas as frases mais significativas para representar as visões de mundo dos atores entrevistados e que melhor esclarecessem como se deu a emergência da controvérsia estudada e como se decidiu pela instalação empreendimento portuário mesmo contrariando o disposto nos instrumentos legais que dispõem sobre a conservação de áreas manguezal, que dispõem sobre o gerenciamento costeiro e da concessão de áreas federais para fins privativos. Identificamos que as lógicas de ação comerciais e industriais foram as visões de mundo dominantes no território estudado. As visões de mundo amparadas por lógicas cívica, doméstica, opinião e inspiração apenas exerceram o contraponto às visões dominantes, uma vez que os atores que as possuíam, participaram da negociação para que o projeto de empreendimento apresentado inicialmente sofresse ajustes e incorporasse 32 condicionantes socioambientais. Não foi observado um real processo de concertação no licenciamento analisado, apenas um processo de negociação de condicionantes, que resultou em desconfianças e conflitos. Projetos de desenvolvimento no estuário de Santos deveriam ser debatidos com ampla participação popular e, deveriam levar em conta em sua análise de viabilidade econômica, o valor dos bens e serviços ambientais ofertados pelos ecossistemas.

Palavras-chave: Gestão Costeira, Gestão de Conflitos, Sociologia da Tradução, Expansão Portuária, Bens e Serviços Ambientais.


ABSTRACT

The increasing of industrial and port activities in the estuary of Santos (São Paulo State - Brazil) is threatening marine-estuarine ecosystems, including their environmental goods and services. This article focuses on the analysis of the controversy of an environmental licensing of a modern port terminal in this estuary and in the analysis of the worldviews of eleven stakeholders. We investigated the dominant worldviews (logiques d’action) in the agreements that allowed the installation of the project. We selected the stakeholders to be interviewed from various environments participation about development and environment in this region. Thirteen stakeholders were selected for interviews, eleven accepted and two did not respond to the contact attempts. We formulated semi-structured interviews with closed questions directed to state the socioeconomic characteristics and open questions, common to all respondents, as: the purpose of the institution, the world view about the future of mangroves and fishing in the estuary and, their involvement in the controversy between the port expansion projects and the conservation of remaining mangroves over estuary of Santos. They were asked about the positive or negative impacts of the project, on the relationship of their institution with the fishing community of Diana Island, and about the possibility of compatibility with the port expansion with the maintaining of caiçara way of life in the estuary Santos. We also included questions specific to each respondent, seeking to understand the activity of each institution in the study area. Furthermore, based on our prior knowledge about contradictory attitudes of some respondents, in opposition to the institutional placement, we formulated questions to search conflicts among their speeches and their actions. We asked to the interviewed selected to represent the mission of their institutions, however, sometimes the individual opinion prevailed on the institutional mission. Eighteen hours of speeches were transcribed and classified according to the predominant characteristics of the six common principles of listed by the bibliographic referential. The phrases were chosen to represent the worldviews of the stakeholders interviewed and they show how was the emergence of the controversy and the decision to install the port terminal even contradicting the provisions of the legal instruments that assure the conservation of mangrove areas, legal instruments about coastal management and legal instruments that assure the provision of public areas for public purposes. We found that the commercial and industrial worldviews were the dominants in the study area. The civic, domestic, of opinion and inspiration worldview, have exercised the counterpoint to prevailing views, once the stakeholders negotiated adjustments to the project initially presented, which incorporated 32 environmental mitigation conditions to the installation of the project. There was not a real conciliation procedure of the environmental licensing process analyzed, but only a process of negotiation of conditions, which resulted in mistrusts and conflicts. The development projects in the Santos estuary should be discussed with broad popular participation, and should take into account the value of environmental goods and services offered by ecosystems in their analysis of economic viability.

Keywords: Coastal Management, Conflicts Management, Sociology of Translation, Port Expansion, Ecosystems’ Goods and Services.


 

 

1. INTRODUÇÃO

O estuário de Santos (SP – Brasil) é um ambiente peculiar onde convivem o mangue, o povo e o porto. A Baixada Santista abrange um dos maiores remanescentes de manguezais do litoral sudeste brasileiro com uma área contínua de 90 km2, sendo 30,9 km2 somente no município de Santos (Lamparelli, 1999). Ainda, o estuário apresenta um rico patrimônio histórico-cultural e conta com existência de comunidades chamadas tradicionalmente de caiçaras, com forte tradição pesqueira que utilizam o estuário para sua reprodução social (reprodução de costumes e tradições, bem como do meio de vida das populações) e produção de bens e riquezas, de cunho material e imaterial (Stori, 2010).

O termo caiçara tem origem no vocábulo indígena tupi-guarani caá-içara, o homem do litoral (Sampaio, 1987 citado em Adams, 2000). Para estes povos, o termo era utilizado para denominar as estacas colocadas à volta das tabas ou aldeias e o curral feito de galhos de árvores para cercar os peixes. Com o passar do tempo, passou a ser o nome dado às palhoças construídas nas praias para abrigar as canoas e os petrechos de pesca. Mais tarde passou a ser utilizado para identificar os indivíduos de comunidades do litoral Sudeste do Brasil, nos estados do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro (Adams, 2000). As comunidades caiçaras são formadas pela miscigenação de indígenas, colonizadores portugueses e, em menor escala, de escravos africanos (Diegues, 1983).

Os manguezais são ecossistemas de alta sensibilidade ecológica que exercem a função de nos prover bens e serviços. De acordo com o relatório Avaliação Ecossistêmica do Milênio - Milennium Assessment os bens e serviços dos ecossistemas responsáveis pelo suporte da vida na Terra podem ser classificados em quatro tipologias: provisão, regulação, culturais e sustentação. Segundo a “Conservação Internacional”, estima-se que as florestas de mangues sejam responsáveis por prover até 1,6 bilhões de dólares por ano em serviços do ecossistema em todo o mundo, como o controle de erosão e tempestades, e como berçário para peixes e outras espécies que garantem a subsistência das populações costeiras Segundo notícia assinada por Emilio Godoy e publicada na revista Envolverde em Julho de 2008, estimado que um hectare de Rhizophora mangle no Golfo da Califórnia apresente uma produtividade pesqueira anual de quase US$ 37 mil e que em 30 anos este valor superaria US$ 700 mil, 600 vezes a mais do que o fixado pelo governo mexicano para o valor destes terrenos. Também segundo a revista Envolverde, em notícia de Marwaan Macan-Markar publicada em setembro de 2008, a supressão de 82% dos manguezais do Deltado Rio Irrawaddy (Birmânia) deixou as comunidades litorâneas vulneráveis diante da elevação do nível do mar com a passagem de um ciclone o mar adentrou até 40 quilômetros deixando cerca de 300 mil mortos e 5,5 milhões de prejudicados.

Atualmente os projetos de expansão industrial-portuária estão no cerne da questão sobre a sustentabilidade do estuário santista, uma vez que ao suprimir a vegetação dos manguezais e aterrá-los, são promovidas alterações no padrão hidrológico, eleva-se a taxa de assoreamento, aumenta a demanda por dragagens e aumenta poluição hídrica - fatores que promovem o declínio da atividade pesqueira e a perda de resiliência neste sistema socioecológico (Stori, 2010). Para Gunderson e Holling (2000) resiliência seria a capacidade de absorver os distúrbios do ecossistema e ainda assim manter o sistema socioecológico íntegro. No caso dos sistemas sociais, a resiliência diz respeito à sua capacidade adaptativa, isto é, a capacidade que um sistema socioecológico possui de aprender, organizar-se e adaptar-se frente a distúrbios, sem perder sua estrutura e função (Holling, 2001 apud Seixas & Berkes, 2005).

De acordo com o Ministério do Meio Ambiente (2002): “Programas de expansão portuária são por si só, ações de grande impacto ambiental para a região costeira. Essas obras têm como função dotar os estados de infraestrutura necessária para a instalação de parques industriais, cujas atividades beneficiam a economia dos estados em uma escala macro. Porém, os impactos econômicos, ecológicos e sociais desses empreendimentos numa escala que inclui as populações tradicionais pesqueiras que habitam a zona costeira, deveriam ser tratados com muito mais interesse e importância ao considerar essas ações por um prisma do desenvolvimento sustentável”.

A comunidade da Ilha Diana é uma dessas comunidades, reconhecida no município de Santos pela atividade pesqueira artesanal e manutenção do modo de vida caiçara, porém até hoje sem o reconhecimento legal de seu território situado sobre área de manguezal, cuja ocupação remonta à década de 1930 (Stori, 2012). Seus habitantes estão presenciando um novo desafio à sua tradição. No ano de 2006 um terminal portuário privado recebeu do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) a Licença de Instalação (LI) para desmatar, aterrar e construir sobre uma área de manguezal e restinga de 803 mil metros quadrados, território de pesca da comunidade tradicional. O Licenciamento Ambiental é o procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental autoriza a localização, instalação, ampliação e operação de empreendimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores ou que possam causar degradação ambiental (CONAMA, 1997).

A Ilha Diana foi considerada área diretamente afetada (ADA) pelo empreendimento. Desta forma, observa-se a emergência de uma controvérsia entre a necessidade econômica da expansão portuária e a sustentabilidade dos bens e serviços ofertados pelo ecossistema estuarino, com consequências diretas para as comunidades costeiras.

Latour (2000) afirma que as controvérsias precedem um enunciado científico ou uma inovação tecnológica. Ao se estudar as controvérsias, compreendemos a construção dos fatos, da mudança ou inovação. Afirma também que a construção de fatos de mudanças sociotécnicas é um processo coletivo em que se busca a compreensão das lógicas da ação dos atores, seus papéis, do processo de tradução e das interações estabelecidas entre entidades individuais ou coletivas.

A trajetória da controvérsia da instalação de um terminal portuário em um território de pesca bem delimitado, no qual até o momento apresenta elementos da cultura caiçara em meio a um espaço industrial-portuário-urbano, mostra-se um tema que desperta a curiosidade científica e propicia a aplicação dos referenciais teóricos escolhidos para análise.

Com base nos referenciais das Economias de Grandeza e da Sociologia da Tradução (Boltanski e Thévenot, 1991; Callon 1981; Callon, 1986; Amblard et al., 1996; Silva, 2005; Beuret, 2006; Beuret et al., 2006), apresentamos neste manuscrito uma análise da trajetória da controvérsia em torno do licenciamento ambiental de um terminal portuário no estuário santista, bem como a análise das lógicas de ação dos atores sociais envolvidos nesta controvérsia e como estas visões de mundo regem as políticas públicas de gestão territorial e determinam o futuro dos ecossistemas e das comunidades no estuário de Santos (Brasil).

 

2. MÉTODO

2.1. Área de estudo

O município de Santos, localizado na costa Sudeste do Brasil, possui 281 km2 de área (Fig.1). De acordo com o censo de 2010, o município possui cerca de 419.400 habitantes (IBGE, 2010).

O município se desenvolveu economicamente atrelado ao setor portuário. De acordo com o resumo das movimentações de cargas no Porto de Santos (disponível em: http://www.portodesantos.com.br/) o Porto de Santos movimentou mais de 104,5 milhões de toneladas no ano de 2012 e por ele passam 55% do PIB e 49% da produção nacional entre produtos agrícolas e industriais, como: álcool, açúcar, soja, fertilizantes, óleo diesel, sucos cítricos, trigo, carne, café, sal e GLP (gás liquefeito de petróleo). De acordo com o ranking mundial de movimentação de contêineres elaborado pela revista britânica Conteinerisation Internacional, o Porto de Santos ocupou o 30º lugar em 2011 com a movimentação de 2.985.922 Teus (unidade de medida equivalente a um contêiner de 20 pés)”.

O crescimento da região trouxe riquezas, mas gerou também diversos passivos ambientais dentre eles
destacam-se a poluição das águas estuarinas, sedimentos e organismos aquáticos, provocada pela combinação de fontes múltiplas, como o porto, as indústrias, os lixões e aterros industriais, esgotos, entre outros (Lamparelli et al., 2001; Abessa et al., 2008). Para Afonso (1999), a Baixada Santista de fato se destaca como a área mais comprometida de toda a zona costeira paulista, com suas águas, solo, ar e matas, contaminados pelas atividades industriais, portuárias e pelo lançamento de efluente doméstico não tratado. Outro problema histórico é a ausência de planejamento do uso do solo, que provocou a supressão de extensas áreas de florestas de manguezais e restingas e permitiu a instalação de empreendimentos portuários, aterros, desvios e assoreamento de canais estuarinos, além da invasão de ocupações irregulares (Lamparelli et al., 2001; Tommasi, 1979; Afonso, 1999).

O terminal portuário objeto deste estudo, localiza-se na área continental do município de Santos, entre as coordenadas geográficas Lat. 23°55’ S e Long. 46°19’ W (Fig. 1), sobre uma área de 803 mil metros quadrados de manguezal e restinga, classificada no Plano Diretor Municipal como Zona Portuária. Espera-se que quando concluído, o terminal com 1100m de extensão, receba simultaneamente até 8 navios e tenha capacidade para movimentação anual de 1,2 milhão de contêineres, 200 mil veículos, 2 milhões de toneladas de granéis sólidos vegetais e até 5 milhões de metros cúbicos de granéis líquidos, principalmente álcool. Estima-se a geração de cerca de mil empregos diretos e outros 1,1 mil indiretos (EMBRAPORT, 2003).

2.2. Considerações teóricas sobre a abordagem utilizada

Redes de gestão vêm se difundido nos territórios mais diversos, porém nem sempre estas obtêm sucesso em participação, legitimidade, continuidade e efetividade. De acordo com Silva (2005), com vistas a investigar os pontos de sucesso ou insucesso da gestão participativa, Michel Callon e Bruno Latour, (Callon, 1986; Callon, 1999; Latour, 2000), desenvolveram a teoria da Sociologia da Inovação, Sociologia da Tradução ou Sociologia das Redes Sociotécnicas.

Para os autores da Sociologia da Tradução, as inovações ou acordos são viabilizados por redes sociotécnicas, que seriam organizações complexas (ou meta organizações), integradas por entidades humanas ou não humanas (atores ou atuantes); individuais ou coletivas; definidas por seus papéis, suas identidades e programas, colocadas em intermediação umas com as outras (Silva, 2005).

Uma inovação tecnológica não se impõe apenas por suas qualidades, mas sim pela rede sociotécnica que a viabiliza (Callon, 1986). A dinâmica das relações é plena de controvérsias, negociações, ajustes de posições e interesses que, quando migram para um ponto convergente, chamado de “Ponto de Passagem Obrigatório”, forma o núcleo da rede que sustenta a inovação (Callon, 1986).

Traduzir é tornar inteligível para um determinado ator, o enunciado produzido por outro ator que adota uma lógica de ação diversa (Callon, 1986; Callon,1999). O tradutor deve ser um ator social com legitimidade suficiente para estabelecer um elo de inteligibilidade entre os outros atores, favorecendo a recomposição de uma mensagem, de um fato ou uma informação e estimulando a cooperação. É provável que no início do processo de tradução as posições entre os atores envolvidos sejam divergentes, porém é função do tradutor unificá-las e colocá-las em relação de forma inteligível possibilitando compreender as vozes falando em uníssono, se compreendendo mutuamente e convergindo em interesses (Silva, 2005).

Beuret (2006) propõe que a tradução se dê de forma cíclica e compreende três níveis: tradução científica, cruzada e institucional. Para o autor, quanto maior o número de vezes de ocorrência do ciclo da tradução, maior é a sustentabilidade de uma atividade. A tradução científica é normalmente conduzida por um pesquisador, que traduz o resultado de suas pesquisas para os demais atores sociais. A tradução cruzada pode ser realizada por um extensionista, produtor ou pesquisador, que transfere as informações de modo inteligível entre dois ou mais atores distintos. Por fim, a tradução operacional e institucional permite a assimilação das idéias e acordos realizados pelos diversos atores em forma de regras e projetos de desenvolvimento.

Silva (2005) acredita que a identificação das lógicas de ação pode auxiliar na elaboração de estratégias pelo poder público para a melhoria das coordenações entre os diferentes segmentos que integram uma atividade. O autor se baseou na teoria das Economias de Grandeza, desenvolvida por Luc Boltanski e Laurent Thévenot, para identificar as justificativas e princípios que nortearam as coordenações estabelecidas entre atores para a construção das redes sociotécnicas da piscicultura em territórios distintos.

As Economias de Grandeza buscam entender como os acordos estabelecidos são justificados pelos membros da sociedade. Amblard et al. (1996) afirmam que a grandeza é uma caracterização do que é grande ou pequeno aos olhos daqueles que integram um mundo específico e que as relações estabelecidas podem ter referências em uma ou mais grandezas. De acordo com o mundo em que os atores estão inseridos, as atitudes serão percebidas de forma diferente. Boltanski e Thévenot (1991) definiram seis Princípios Superiores Comuns, que são grandezas nas quais os indivíduos estabelecem acordos ou litígios: Doméstica, Cívica, Industrial, Comercial, de Inspiração e Opinião.

A grandeza doméstica compreende ao mesmo tempo três ordens imbricadas: uma é temporal, devido à fidelidade das pessoas aos costumes; outra é espacial, de familiaridade; e uma terceira é hierárquica, de autoridade. A confiança é uma característica dessa grandeza. As figuras de referência são as da família, da tradição, dos ancestrais. As relações motivadas por fatores socioculturais em um determinado território estão inseridas nessa grandeza (Amblard et al.,1996).

A grandeza comercial é fundamentada sobre o princípio da concorrência, e os preços são a referência do valor dos objetos. É o mundo dos interesses particulares e as pessoas estão em relação por ocasião dos negócios. Essas relações estabelecidas são caracterizadas pelo oportunismo. A ligação social é fundamentada somente pelas trocas, que são feitas supostamente em benefício de todos, para contribuir para o bem comum. Esse mundo é caracterizado pelo concorrencial, pela captação de clientela, obtenção dos melhores preços e do máximo proveito das transações. Para essa grandeza, o mundo doméstico não é suficiente, pelo fato das relações domésticas impedirem a obtenção de sucesso com o aproveitamento de todas as oportunidades comerciais (Amblard et al., 1996).

A grandeza industrial não pode ser confundida com as características da grandeza comercial, apesar de ambas constituírem coordenações de ordem econômica. No mundo industrial, o desempenho técnico e a ciência são o fundamento de eficácia. Investir em tecnologia, maquinários, na capacitação de operadores e monitorar a produtividade do sistema, são características típicas do mundo industrial (Amblard et al., 1996). Para esses autores, uma empresa fortemente equipada, moderna na sua forma de produzir, com profissionais que dominam integralmente a tecnologia, constituem essa grandeza.

Para a grandeza cívica o interesse coletivo está acima do interesse particular. As pessoas se mobilizam em torno de noções como equidade, liberdade e solidariedade. O cooperativismo é uma forma de organização que se enquadra nesse tipo de grandeza, com ênfase no coletivo e na solidariedade. O interesse coletivo não significa uma soma dos interesses individuais, mas um interesse superior comum (Amblard et al., 1996).

Para a grandeza opinião, somente a consagração pública importa. Não importa o espírito criador do mundo de inspiração, ou os respeito às tradições do mundo doméstico. No primeiro caso, há o risco de provocar a incompreensão pública e o isolamento. No segundo caso, a limitação da ação a regras, impediria alcançar a celebridade.

A grandeza de inspiração estabelece uma ligação imediata entre as pessoas e uma totalidade. Para Amblard et al. (1996) “o homem criativo e sua equipe em uma agência de publicidade, o pesquisador e seus colegas de laboratório, assim como o arquiteto e seus assistentes, são pessoas fortemente submetidas ao mundo da inspiração”.

2.3. Procedimentos de coleta e análise de dados

Este estudo foi desenvolvido de julho de 2006 a novembro de 2010. Inicialmente, para realizar a seleção dos entrevistados a pesquisadora frequentou, no período entre 2006 e 2009, diversos fóruns de discussão sobre desenvolvimento e meio ambiente na Baixada Santista, tais como: reuniões do Grupo Setorial de Gerenciamento Costeiro da Baixada Santista; Agenda Ambiental Portuária; Rede de Educação Ambiental da Baixada Santista, Audiências Públicas e seminários acadêmico-científicos. Para contatar os representantes institucionais escolhidos foram enviadas cartas-convite (com aviso de recebimento). Representantes de duas instituições selecionadas não responderam ao convite enviado: Secretaria Especial de Portos vinculada à Presidência da República e Secretaria de Assuntos Portuários vinculada à Prefeitura de Santos. A entrevista com o presidente da Associação de Melhoramentos da comunidade da Ilha Diana foi realizada em julho de 2008 e entre Junho e Agosto de 2009, foram entrevistados outros dez atores sociais envolvidos na controvérsia do licenciamento ambiental do terminal portuário, totalizando onze entrevistados. Para a realização das entrevistas semiestruturadas (Viertler, 2002) foram formuladas questões fechadas para caracterização socioeconômica e questões abertas comuns para todos os entrevistados, sobre: o objetivo da instituição que representa; a opinião da instituição a respeito do futuro dos manguezais remanescentes e da pesca no estuário Santista; a opinião da instituição com relação aos projetos de expansão portuária; a opinião da instituição sobre a controvérsia entre a conservação dos manguezais remanescentes no estuário santista e a expansão portuária; os impactos positivos e negativos que o terminal portuário irá causar; o posicionamento da instituição na controvérsia entre a instalação do terminal portuário e a comunidade pesqueira da Ilha Diana, e ainda, sobre o que seria necessário para compatibilizar a expansão portuária com a manutenção do modo de vida caiçara no estuário Santista. Também foram elaboradas questões específicas para cada entrevistado, buscando entender qual é a atividade de cada instituição no território estudado. Ainda, com base no conhecimento prévio de atitudes contraditórias de alguns entrevistados frente ao posicionamento institucional que deveriam ter, foram formuladas questões buscando averiguar tais posturas conflitantes. Solicitamos aos atores selecionados que representassem a postura de suas instituições e/ou instâncias, contudo, por vezes o opinião individual preponderou sobre a missão institucional. A Tabela 1 apresenta a listagem das instituições ou instâncias políticas entrevistadas.

Dezoito horas de falas foram transcritas e posteriormente, identificadas as que melhor esclarecessem como se deu a emergência da controvérsia estudada e como se decidiu pela instalação empreendimento portuário.

Em seguida, procedeu-se a análise da trajetória da controvérsia do licenciamento ambiental do terminal portuário e das lógicas de ação que regeram a negociação da controvérsia no território estudado, com base nos referenciais das Economias de Grandeza propostas por Boltanski e Thévenot (1991) e da Sociologia da Tradução (Callon 1981,1986; Amblard et al., 1996; Silva, 2005; Beuret, 2006; Beuret et al., 2006). As falas transcritas foram classificadas de acordo com as características predominantes dos seis Princípios Superiores Comuns das Economias de Grandeza, e foram escolhidas as frases mais significativas para representar as visões de mundo dos atores entrevistados.

 

3. RESULTADOS

3.1. Trajetória da controvérsia do licenciamento ambiental do terminal portuário

No ano de 1998 o grupo responsável pela construção do terminal portuário privativo comprou o terreno em estudo, cuja escritura remonta ao início do século XIX e que havia sido incorporado aos ativos da Companhia Docas de Santos em 1927 e vendido a um banco nos anos 1980. A partir de então, a empresa iniciou as tratativas para construir o porto.

Em 2000 a empresa apresentou o Relatório Ambiental Prévio (RAP) ao Departamento de Avaliação de Impactos Ambientais da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (DAIA). O DAIA forneceu um parecer negativo ao empreendimento, pelo fato deste incidir sobre manguezal, portanto Área de Preservação Permanente de acordo com o Código Florestal Brasileiro vigente à época (Lei N° 4.771/65- Presidência da República do Brasil, 1965). De acordo com a legislação ambiental, a supressão de tal vegetação só poderia ser autorizada em casos de utilidade pública ou de interesse social e quando não existisse outra alternativa técnica e locacional. A Prefeitura de Santos então emitiu um decreto declarando a utilidade pública ao terminal portuário, embasados na justificativa de que serviços de transporte são de utilidade pública, independente do direito de propriedade do serviço ofertado.

Na sequência, a empresa reapresentou ao DAIA os estudos de impacto ambiental e a primeira audiência pública, que estava prevista para Janeiro de 2002 foi cancelada por liminar (i.e. ordem judicial provisória) do Ministério Público Federal (MPF), contestando a competência do Estado de São Paulo para conduzir o licenciamento, pois considerava que este, por estar dentro de área portuária, deveria ocorrer em âmbito federal. O processo foi direcionado ao órgão federal competente, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que convocou uma nova audiência pública para Janeiro de 2005. A partir de então, o IBAMA conduziu o processo, emitindo a Licença Prévia (LP) em Junho de 2005 e a Licença de Instalação (LI) em Agosto de 2006. A LI impôs 32 condicionantes socioambientais, relativas a todos os programas que a empresa deveria cumprir.

Como medidas mitigadoras e compensatórias o IBAMA estabeleceu 24 programas e subprogramas, somando 32 atividades que condicionariam o licenciamento. Estas condicionantes estão relacionadas à implantação e apoio às Unidades de Conservação, melhorias da qualidade ambiental da obra, comunicação com as populações afetadas, elaboração de um programa de apoio à pesca, condução de um programa de resgate arqueológico nas áreas de ocorrência de sambaquis (depósitos de conchas de bivalves, resíduos da alimentação de antigos povos indígenas), dentre outros (EMBRAPORT, 2003).

Para atender a estes requisitos, o terminal portuário subcontratou empresas de consultorias para fazer o diálogo com a comunidade da Ilha Diana (ADA). Entretanto foi verificada uma grande falta de informação por parte dos moradores da Ilha Diana sobre o que de fato seria o empreendimento, muitos desconhecendo que haveria tambores para armazenamento de etanol, o que traz sérios riscos ambientais ao entorno (Stori, 2010). Verificou-se que não houve neste processo a figura de um tradutor que colocasse em contato os diferentes atores, esclarecendo a realidade do empreendimento que estava sendo concebido, muito menos um tradutor que coordenasse um planejamento comum para o futuro do território estudado – ou seja, não houve um processo de concertação.

3.2. Lógicas de Ação que conduziram aos acordos para a instalação do terminal portuário

Procedemos a análise dos relatos obtidos com base nos referencias teóricos previamente mencionados (Boltanski e Thévenot, 1991; Callon 1981; Callon, 1986; Amblard et al., 1996; Silva, 2005; Beuret, 2006; Beuret et al., 2006), sendo identificados valores e visões de mundo que regeram as lógicas de ação dos atores em torno da negociação da controvérsia no território estudado.

Constatamos que grandeza comercial é predominante nas lógicas de ação de três representantes entrevistados: da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Ator 1), do Terminal Portuário (Ator 2) e da Secretaria de Planejamento da Prefeitura de Santos (Ator 7). Apresentaram grandeza industrial em suas falas os representantes de três instituições: da Secretaria de Planejamento da Prefeitura de Santos (Ator 7), do Instituto de Pesca (Ator 8) e da Federação Paulista de Pescadores (Ator 9). A grandeza cívica predominou no discurso de quatro representantes: do Ministério Público Federal (Ator 3), do IBAMA (Ator 4), da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Ator 5) e da Organização Não Governamental (Ator 10). A grandeza de opinião foi predominante nas falas de dois representantes: Poder Legislativo do Município de Santos (Ator 6) e Instituto de Pesca (Ator 8). A grandeza de inspiração foi observada na fala do representante da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Ator 5). Apenas o representante da comunidade da Ilha Diana (Ator 11) apresentou predominantemente a grandeza doméstica.

As justificativas dadas por esses atores para a viabilidade da instalação do empreendimento constituem-se em suas lógicas de ação, as quais são identificadas pelas visões de mundo destes atores, regidos por grandezas diversas. As falas mais expressivas das grandezas identificadas estão destacadas na Tabela 2.

 

4. DISCUSSÃO

Verificamos que as lógicas de ação comerciais e industriais são as visões de mundo dominantes no território estudado e definem a estratégia da expansão portuária no estuário santista. As lógicas de ação cívica, familiar, opinião e de inspiração, apenas exerceram o contraponto às visões dominantes na forma de condicionantes socioambientais ao licenciamento do terminal portuário instalado. Ou seja, na área estudada a formulação de políticas públicas é dominada pela lógica desenvolvimentista predominante nas lógicas de ação comerciais e industriais. Esses atores formam uma rede de gestão sólida, aliada aos interesses econômicos e políticos dominantes no sistema capitalista. Ambientalistas, cientistas, comunidades tradicionais, dentre outros atores neste sistema, não conseguiram viabilizar a conservação ambiental no estuário santista, desta forma, atuam apenas aportando subsídios técnicos-científicos para que tais projetos não sejam implantados sem a observância rigorosa às lei ambientais, trazendo o aporte de tecnologias sustentáveis e mitigando efeitos negativos às comunidades que sobrevivem da pesca no estuário.

Constatamos, portanto, que a decisão a favor da instalação do empreendimento foi imposta com base no discurso da necessidade da expansão do Porto de Santos de modo a sustentar o desenvolvimento de todo um país. As justificativas para a concentração de uma vasta gama de empreendimentos portuários no estuário de Santos se deram pelo fato da região estar próxima do maior centro consumidor do Brasil e onde já há ampla infraestrutura implantada. Ainda, o histórico de degradação e contaminação ambiental, lhe atribuiu o status de melhor alternativa locacional quando comparado a outros estuários ainda ecologicamente íntegros.

Uma vez que o terminal portuário obteve sua licença de instalação, tal fato foi viabilizado porque houve uma rede que o viabilizou. Os representantes institucionais entrevistados lideraram a negociação para que o empreendimento se viabilizasse através da obtenção da licença ambiental que se constitui, portanto, no Ponto de Passagem Obrigatório, ou seja, o Licenciamento Ambiental é o próprio núcleo da rede desenvolvimentista que sustenta a inovação, que é a instalação do terminal portuário. Percebemos, no entanto, que não exaurimos o universo de representantes envolvidos na controvérsia entre a expansão portuária e a necessidade de conservação da biodiversidade dos ecossistemas costeiros, devido à complexidade deste universo, o que é uma limitação ao estudo. Contudo os referenciais teóricos aplicados de fato possibilitaram o entendimento de como o acordo foi estabelecido.

Por outro lado, a conservação dos manguezais do estuário por meio da criação de Unidades de Conservação não é fato viabilizado, pois não possui rede tão bem consolidada quanto à rede desenvolvimentista. Em momentos de embate entre essas redes, em fóruns de discussão p.ex., verificamos grandes assimetrias de poder, ou seja, diferenciais de poder político ou de poder econômico entre os envolvidos, uma vez que os grupos que representam o poder econômico dominante unem-se ao poder governamental, em oposição aos grupos que defendem a conservação ambiental e a segurança das comunidades tradicionais.

Uma vez que essas entidades investigadas apresentaram diferentes visões de mundo e lógicas de ação diversas, seria necessária a atuação de um tradutor no processo que porta a inovação desejada – neste caso, a instalação do terminal portuário. Apesar de ter sido formada uma rede sociotécnica para debater a controvérsia em torno do licenciamento ambiental do porto analisado, a qual teria sua formalidade instituída através das Audiências Públicas, constatamos que não houve um real processo de tradução que promovesse um ambiente de concertação tal qual os autores da Sociologia da Tradução preconizam. Para esses autores, enquanto a negociação tem por objetivo a obtenção de um acordo ou decisão, a concertação trabalha na construção coletiva de objetivos comuns e propostas de ação, estabelecendo uma visão comum de problemas que de início eram vistos por ângulos diferentes (Beuret, 2006; e Beuret et. al., 2006).

Verificamos neste estudo que os possíveis tradutores neste nosso universo amostral não se posicionaram de modo a traduzir de forma clara e transparente os reais impactos advindos do porto em instalação, mas sim, de modo a interceder com apelos de melhoria financeira, e de modo pontual, seduzindo as comunidades em favor do empreendimento.

A tradução, liderada pela empresa portuária através das consultorias contratadas para dialogar com as comunidades e fazer cumprir as condicionantes do IBAMA, não foram transparentes ao ponto de repassar informações qualificadas e se limitaram a oferecer alguns míseros benefícios aos envolvidos - muitos dos quais seriam de inteira responsabilidade do poder público. Verificamos que o dinheiro foi o principal intermediário que cimenta esta rede, em detrimento da informação.

Neste caso, a gestão efetiva deste processo foi conduzida pelo empreendedor seguindo, portanto, suas lógicas e interesses, através de um processo de negociação de condicionantes ambientais e sociais, que resultou em desconfianças e conflitos e demonstra que a rede em questão não é ampla, fortalecida, vigilante e transparente. Um meio de estabelecer uma rede que pensasse no planejamento integrado do território, seria fortalecer os processos participativos de gestão, disponibilizando informações aos cidadãos e empoderando-os para as tomadas de decisões.

Em um cenário real de concertação haveria a necessidade de distribuir o poder decisório igualmente entre os atores sociais envolvidos. No entanto, é questionável se aqueles que detêm o poder estariam dispostos a abrir mão deste em prol de um bem comum, e ainda, se haveria real interesse em traduzir as informações. Desta forma, a tendência é que os atores com mais poder imponham como gestão efetiva do território a sua gestão intencional e, portanto, suas lógicas de ação. Da mesma forma, os órgãos públicos cuja função é exercer a fiscalização e o controle ambiental tem seu poder reduzido por influência dos poderes econômicos e políticos dominantes. Em consequência, os bens e serviços ecossistêmicos e elementos culturais são expropriados, em detrimento dos interesses coletivos ou de estratégias mais sustentáveis para a ocupação e uso dos recursos dos territórios.

Para Santos (2008) o Estado deve se inserir na rede social do território e buscar fortalecer as redes através do incentivo às relações horizontais baseadas nos valores da grandeza cívica como a transparência, a confiança e a honestidade. Entretanto, caso a inserção do Estado seja apenas para legitimar as lógicas de ação dominantes, este processo será inócuo. Seria necessário fortalecer o próprio poder do Estado como regulamentador e como responsável em preservar o ambiente e promover a equidade social, conforme preconiza a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225 (Presidência da República do Brasil, 1988).

Neste sentido, recomenda-se a instituição de um sistema de concertação para a gestão costeira, no qual as propostas e projetos para o futuro de um território sejam traduzidos, debatidos e planejados entre todos os setores interessados no sistema estuarino de Santos.

Recomendamos ainda, que sejam efetivamente valorados no licenciamento ambiental os custos dos efeitos dos projetos no presente e para as gerações futuras. Externalidades, quando não devidamente valoradas e gerenciadas, geram prejuízos econômicos, sociais e ecológicos (Stori, 2010). Somente uma análise fiel do valor dos bens e serviços ambientais ofertados pelo sistema estuarino de Santos poderia avaliar a viabilidade real da instalação dos empreendimentos, considerando, além dos benefícios econômicos os custos sociais, culturais e das perdas das funções ecossistêmicas. Um empreendimento de significativo impacto ambiental, ao ter seus impactos valorados adequadamente, poderia até ser considerado inviável por acarretar em prejuízos econômicos para toda a sociedade.

Poderíamos até valorar os bens e serviços dos manguezais a partir do valor de uso direto de produção e consumo de produtos da pesca, a partir do valor de uso indireto através dos danos às estruturas públicas e privadas causados por eventos naturais extremos ou pelo valor de uso indireto relacionado ao ecoturismo, educação, ciência e medicina. Tais fórmulas, contudo, sempre contém uma possível subestimação do real valor dessas funções e de sua importância para a sociedade, uma vez que o cálculo é complexo e subjetivo. O valor dos bens e serviços dos manguezais e do estuário santista não está necessariamente vinculado a um valor monetário, mas principalmente à importância destes para a manutenção de sistemas resilientes e sustentáveis.

 

5. CONCLUSÕES

Verificamos que as lógicas de ação comerciais e industriais foram visões de mundo dominantes no território. As lógicas cívica, doméstica, de opinião e de inspiração apenas exerceram o contraponto às visões dominantes, na forma de condicionantes socioambientais ao processo de licenciamento do empreendimento portuário analisado.

A dominância de uma visão de mundo se deu pelo fato viabilizado, não representando necessariamente a assimetria entre o número de atores entrevistados, mas sim pela assimetria de poder que há entre eles.

Esta assimetria de poder é regida pelas forças econômicas e políticas existentes no sistema estudado. Alguns atores apresentaram incoerências entre seu discurso e as postura institucional que deveriam possuir. Agem conforme seus interesses individuais em detrimento do posicionamento institucional e do interesse coletivo.

Destacamos ainda, a fragilidade dos instrumentos de planejamento e gestão ambiental, em especial o licenciamento ambiental e o zoneamento ecológico econômico da Zona Costeira, frente às forças econômicas e políticas que orientam a gestão efetiva no sistema socioecológico estudado.

Recomendamos que os futuros projetos de desenvolvimento no estuário santistas sejam discutidos de forma concertada, incluindo os mais diversos atores, de forma igualitária e que leve em conta o valor dos bens e serviços dos ecossistemas estuarinos, incluindo toda a diversidade de usos neste território.

 

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*Submission: 2 September 2012; Evaluation: 6 October 2012; Reception of revised manuscript: 18 June 2013; Accepted: 30 June 2013; Available on-line: 4 July 2013

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