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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.28 Lisboa jul. 2020

 

RECENSÃO

Recensão / Book review: DONNELLY, Andrew - Cooking pots, and cultural transformation in Imperial and Late Antique Italy. PhD thesis. Loyola University Chicago, 2016 (298 pp.)

José Carlos Quaresma1
https://orcid.org/0000-0003-3139-1975

1 Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais.1070-312 Lisboa, Portugal. josecarlosquaresma@gmail.com


 

Já com três anos de vida, a tese que apresentamos nesta recensão é de uma importância maior para Historiadores e Arqueólogos da Antiguidade Tardia, que se debrucem sobre a evolução da dieta humana e dos utensílios para a sua confecção e degustação - no caso vertente, a evolução das cerâmicas de uso culinário, sob o ponto de vista funcional das morfologias.

Desde a formulação do conceito de Antiguidade Tardia, por Peter Brown, em 1971[1] - à época, um sucedâneo ao marcante estudo sobre o Later Roman Empire de A. H. M. Jones, editado em 1964[2] -, que se marcou no tempo, em definitivo, uma nova etapa de estudo conjugando séculos de profunda transformação entre o sistema tardo-romano e o novo mundo alto-medieval. A definição conceptual de um mundo tardo-antigo permitia abandonar a dicotomia simplista entre um mundo civilizado, romano, de tradição clássica, e um mundo bárbaro, multifacetado étnica e geo-politicamente e que, embora parcialmente herdeiro de mundividências romanas, era tradicionalmente visto pela Historiografia e pela Arqueologia como o fim de um tempo áureo.

Essa ideia, mormente a acumulação neste meio-século de estudos que apontam para tantos vectores de continuidade, ainda tem defensores mais ou menos acérrimos, que vêem na queda de Roma, no ano de 476, o fim definitivo de um mundo ocidental europeu. Esta tese fez sucesso editorial, ainda recentemente, nos anos 2000, através do livro redigido por Brian Ward-Perkins, académico de Oxford, com o inequívoco título de A queda de Roma e o fim da civilização[3].

Por norma, este tipo de estudos baseia-se muito mais em dados de cariz eminentemente historiográfico, i.e., fontes escritas, do que eminentemente arqueológico, i.e., cultura material. Esse pecado original, embora justificável pelas dinâmicas ainda pouco conseguidas e constantes entre estes dois saberes do passado humano, torna-se menos justificável em face dos profundos avanços que a Arqueologia fez do ponto de vista da metodologia estratigráfica, tão crucial (como em qualquer período…) para a identificação dos fenómenos tardo-antigos na cultura material.

Na verdade, fontes históricas como a Crónica do Bispo Idácio de Chaves[4], escrita por volta do ano de 470, marcaram ambos os campos científicos, com a sua imagem negativa da turbulência política do período em que viveram homens como o sacerdote flaviense. A sua mundividência, então suevo-visigótica, estava eivada de pessimismo, um sentimento que marcava muitas das elites cristãs desde o século IV, pelo menos. Por outro lado, até há bem poucas décadas atrás, a falta de dados arqueológicos para o século V em diante era o resultado da persistência de escavações com pouca ou nenhuma base metodológica, que assim destruíram, sem registo, os ruídos, por vezes toscos e heterogéneos, que se sobrepunham estratigraficamente às estruturas arquitectónicas, rurais ou urbanas, de época romana. A isto se podia ainda juntar a tentativa de conjugar dados historiográficos com dados arqueológicos, que originaram, por exemplo, a identificação de níveis de destruição em cidades como Conimbriga, com as descrições de abandono urbano descritas pelo bispo flaviense, para os anos de 465-468. Hoje sabe-se que esta cidade, como outras amiúde, mantiveram-se vivas, ainda com aparente configuração urbana nalguns casos; noutros, com ocupações pontuais, como provas o estudo de López Quiroga, em 2013[5].

Serve este longo introito para enquadrar a falta de estudos tipológicos no âmbito da ceramologia tardo-antiga, já que - num mundo em que muitas das linhas comerciais estavam enfraquecidas ou extintas, e muitos sítios residenciais, urbanos ou rurais, para além de centros produtores, haviam sido abandonados -, identificar, no caso peninsular, estratigrafias posteriores à primeira metade do século V, constitui tarefa árdua. Na verdade, com a escassez ou mesmo inexistência de materiais finos de importação, em circulação, identificar essas realidades pós-romanas exige o estudo aprofundado das cerâmicas comuns, um fenómeno de matriz profundamente local e regional, longe das grandes tipologias de cerâmicas finas de grande circulação. Mas, o que os estudos vão indicando, pouco a pouco, é também que, apesar da evidente atomização do mundo tardo-antigo, algumas linhas de contacto de longa-distância permanecem, por exemplo, entre o extremo Mediterrâneo Oriental e o Atlântico, de que são exemplo primeiro a chegada de Late Roman Amphorae e de Terra Sigillata Foceense Tardia à fachada atlântica peninsular e à Britannia, particularmente até meados do século VI, mas com extensões posteriores; ou o envio de um grande carregamento de cereais por parte do Bispo de Alexandria, João, o Esmoler, para o território britânico, em carestia, já no século VII[6].

A tese de doutoramento de Andrew Donnelly, defendida em 2016 na Loyola University Chicago, versa o estudo comparativo entre fontes históricas, relativas à gastronomia tardo-antiga, e as cerâmicas culinárias encontradas nas estratigrafias do espaço itálico, entre os séculos IV/V e VII d.C.. Do ponto de vista estratigráfico, esta tese propõe-se assim analisar criticamente as morfologias funcionais de cozinha, e subjacentes hábitos alimentares, ao longo de depósitos que atravessam o período tardo-romano, ostrogodo (em parte sob a influência comercial do reino vândalo, instalado no Norte de África entre 439 e 533 d.C.), bizantino e lombardo.

Do ponto de vista historiográfico, analisa três grandes fontes: Vinidário, que representa a tradição romano-gótica, no século V ou VI; Anthimo, que terá trabalhado nas cortes do rei franco Teodorico e do rei ostrogodo homónimo, no século VI, e finalmente o bispo de Sevilha, Isidoro, já do século VII.

A tese divide-se em quatro grandes capítulos:

- um primeiro, dedicado às cerâmicas de cozinha: vocabulário, contexto e uso do ponto de vista arqueológico;

- dois outros capítulos, consagrados às cerâmicas de cozinha e suas referências nas fontes escritas;

- um último, votado à análise das estratigrafias urbanas e rurais, no espaço itálico, que possuem cerâmicas culinárias: evolução cronológica e espacial dos tipos e morfologias e das funcionalidades decorrentes.

Este estudo, tal como muitos dos que vão saindo amiúde, e que procuram fazer uma análise antropológica dos espólios arqueológicos, aplica um método quase que diríamos estruturalista, identificando dois polos básicos: uma gastronomia de matriz clássica-romana que se conjuga com uma gastronomia de cariz bárbaro, multifacetada geopolítica e etnicamente. Tal é-nos revelado por dois grandes conjuntos cerâmicos funcionais: o tacho como grande representante dos guisados e da preferência pelos ovi-caprinos, aos quais se pode juntar, em muito menor grau, a sobrevivência do prato covo/frigideira, para frituras com azeite; a panela como grande representante da confecção de cozidos e da preferência pelo gado vacum. Os tachos (e pratos covos/frigideiras) representam a manutenção do gosto clássico; as panelas crescem em número com a consolidação progressiva do mundo pós-romano.

Esta dicotomia é já abordada em outros autores[7] e muito deve, não só às novas realidades políticas e étnicas que marcam o mundo ocidental europeu, mas também à consolidação do novo período climático denominado como Dark Ages Cold Period, ou seja, do período glaciar vivido entre os séculos IV e VIII, sucedâneo do período interglaciar puro, denominado por Roman Warm Period, que havia durado entre os séculos II a.C. e o século III/IV d.C.. Este novo contexto ambiental influi cumulativamente nas novas realidades políticas que vão separando lentamente o Continente do Mediterrâneo e este último do Atlântico.

No espaço itálico, para além da consolidação progressiva da panela, vemos, porém, até meados do século VI, um papel ainda marcante do tacho, por vezes, e sobretudo em Roma, acompanhado pelo prato covo/frigideira. Para o autor, na Itália ostrogoda dos séculos V e VI, ocorre um aumento significativo do consumo de carne, atestado pelas fontes escritas e no registo arqueológico dos sítios rurais (em clara oposição aos dados referentes ao período médio-imperial), que agora estão menos constrangidos pelas regras fundiárias romanas. A verdadeira ruptura deste mundo tardo-antigo, do ponto de vista alimentar, dar-se-á por volta de meados do século VI e deverá relacionar-se com a crise demográfica, nos espaços mais ligados ao poder bizantino, entretanto reconquistador do Norte de África, de parte de Itália e do Sul hispânico. A Renovatio Imperii de Justiniano é marcada não só por guerras esgotantes a Ocidente, mas também por uma praga de consequências devastadoras e contornos geográficos ainda por determinar com precisão no Mediterrâneo ocidental (e no Atlântico?).

A pertinência do estudo de Andrew Donnelly é hoje evidente, em face do avanço dos estudos crono-estratigráficos e crono-tipológicos, um pouco por todos os espaços da Antiguidade Tardia, mas assume uma importância maior quando comparado com os dados, por exemplo, que a investigação arqueológica está a obter em regiões tão distantes como Lisboa, importante porto da fachada atlântica peninsular, onde sectores como o das Escadinhas de São Crispim, com fases de 500-525 e 525-550 d.C., apontam para um equilíbrio entre tachos e panelas, dando-se a ruptura definitiva em 550-575 d.C., segundo os dados de um sector próximo, o do Palácio dos Condes de Penafiel[8].

Do ponto de vista comercial, a investigação arqueológica já havia começado a intuir uma quebra ao longo do século V, seguida de retoma pontual tardo-vândala, no Mediterrâneo ocidental, com extensão em menor grau ao Atlântico. E que o segundo quartel/meados do século VI representavam um novo decréscimo acentuado das importações, que no caso do território lusitano se tornam mesmo efémeras a partir desse ponto temporal[9]. O que a investigação da cerâmica comum em estratigrafia começa a anunciar é um paralelismo transregional (que urge ainda estudar em quantidade, estando longe de especificado!) ao nível dos hábitos culinários, que sofrem uma atomização clara, não só a partir das convulsões do século V, mas novamente, e em maior grau, a partir de meados do século VI.

 

Como citar este artigo | How to quote this article:

QUARESMA, José Carlos - “DONNELLY, Andrew - Cooking pots, and cultural transformation in Imperial and Late Antique Italy. PhD thesis. Loyola University Chicago, 2016 (298 pp.)”. Medievalista 28 (Julho - Dezembro 2020), pp. 397-403. Disponível em https://medievalista.iem.fcsh.unl.pt .

 

Data recepção do artigo / Received for publication: 12 de Setembro de 2019

 

[1] BROWN, Peter - O fim do mundo clássico. De Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Verbo, 1971.

[2] JONES, Arnold Hugh Martin - The later Roman Empire. 284-602. A social economic and administrative survey. Oxford: Basil Blackwell, 1964-1973.

[3] WARD-PERKINS, Bryan - A queda de Roma e o fim da civilização. Lisboa: Aletheia, 2005.

[4] TRANOY, Alain - Hydace. Chronique. 2 vols. Paris: Les Éditions de Cerf, 1974.

[5] LÓPEZ QUIROGA, Jorge (ed.) - Conimbriga tardo-romana y medieval. Excavaciones arqueológicas en la Domus Tancinus (2004-2008) (Condeixa-a-Velha, Portugal). Archaeopress. (Bar International Series 2466), 2013.

[6] QUARESMA, José Carlos - Economia antiga a partir de um centro de consumo lusitano. Terra sigillata e cerâmica africana de cozinha em Chãos Salgados (Mirobriga?). Lisboa: UNIARQ (Estudos e Memórias, 4), 2012.

[7] Por exemplo, ARTHUR, Paul - “Pots and boundaries. On cultural and economic areas between Late Antiquity and the Early Middle Ages”. in BONIFAY, M., TRÉGLIA, J.-M. (eds.) - LRCW 2. Late Roman Coarse Wares, Cooking Wares and Amphorae in the Mediterranean. Archaeology and Archaeometry. BAR-IS 1662 (I), 2007, pp. 15-27.

[8] QUARESMA, José Carlos - “Late contexts from Olisipo (Lisbon, Portugal): Escadinhas de São Crispim”. in DUGGAN, M.; TURNER, S.; JACKSON, M. - Ceramics and Atlantic Connections: Late Roman and early medieval imported pottery on the Atlantic Seaboard. International symposium. New Castle University, March 26-27th 2014. Oxford: Archaeopress (Roman and Late Antique Mediterranean Pottery; 15), 2020, pp. 94-107.

[9] QUARESMA, José Carlos - Economia antiga a partir de um centro de consumo lusitano…; REYNOLDS, Paul - Hispania and the Roman Mediterranean. AD 100-700. Ceramics and trade. London: Duckworth, 2010.

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