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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.28 Lisboa jul. 2020

 

RECENSÃO

Recensão / Book review: ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina; SILVA, Gonçalo Melo; PRATA, Sara (eds.) - Inclusão e Exclusão na Europa Urbana Medieval. Inclusion and Exclusion in Medieval Urban Europe. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais-Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2019 (552 pp.) [1]

Maria Helena da Cruz Coelho1
https://orcid.org/0000-0002-8030-4578

1 Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura. 3004-530 Coimbra, Portugal.coelhomh@gmail.com


 

Com muito proveito li este livro que desenvolve o seu conteúdo em cinco partes: I - A intervenção dos poderes; II - Instituições e Processos; III - Marcas de exclusão no urbanismo medieval; IV - Inclusão e exclusão no registo material. Perspectivas desde a Arqueologia; V - Acolher ou excluir: os estrangeiros na cidade.

Percebemos claramente por estas denominações que estamos perante uma temática desenvolvida a partir de diversas fontes - das arqueológicas às escritas - e perspectivada sob múltiplos enfoques históricos, percorrendo poderes, instituições, sociedades, economias e urbanismo. Cruzam-se espaços da Europa urbana e temporalidades. Combinam-se metodologias e conceptualizações. Entrecruzam-se especialistas, dos mais experientes aos mais jovens, entre historiadores, filólogos, arqueólogos, arquitectos e juristas, dos nacionais aos estrangeiros de Espanha, França, Alemanha, Holanda e Itália. Constrói-se uma obra com vinte e dois estudos, saídos da pena de vinte e oito especialistas.

A primeira parte - A intervenção dos poderes - inicia-se com uma ampla e clarividente síntese de Wim Blockmans que nos apresenta o quadro da inclusão e da exclusão na sociedade medieval. Os padrões de inclusão/exclusão podem advir do género - e as mulheres são evidentemente as grandes excluídas -, das crenças - e o Cristianismo reinante exclui os demais credos religiosos -, da etnicidade, da nacionalidade, da família ou parentesco, da pertença a uma comunidade. Os estratos privilegiados da sociedade são por natureza excludentes. Mas os códigos sociais da aristocracia vão ser justamente os que o patriciado urbano irá reproduzir. Aliás a cidade, com os seus muros, torres e portas, mimetizando o modelo do castelo feudal, é inclusiva para os seus cidadãos e exclusora para os de fora. Detem-se ainda o Autor na formação das comunidades urbanas no norte e centro da Europa com as suas associações socioeconómicas, religiosas ou culturais, das hansas, dos mercadores e guildas dos artesãos às confrarias e universidades demonstrando como elas são inclusivas para os seus membros, mas fechadas e exclusoras para os demais. Virá assim a concluir que a paisagem urbana medieval, prolongada por tempos de Antigo Regime, era uma tessitura complexa de variados privilégios e privilegiados locais, identificados por diferentes códigos e marcas sociais.

Abre o caso português Hermínia Vilar com um texto sobre a comunicação entre o rei e as cidades na Idade Média. Definem-se nele as fronteiras e os limites dos intervenientes nesse espaço político e os níveis de sobreposição ou confluência do discurso entre o rei e a cidade. Põem-se em destaque as linhas de interaccão no governo do reino, como no da cidade, que exigiam a ambos os poderes uma política de negociação e de equilíbrios. Analisando a documentação de produção régia - as leis gerais - e de produção local - as posturas e as vereações - evidencia as temáticas centrais e comuns aos dois corpos legislativos, bem como a denominação e justificação das leis produzidas, que nos remetem para os modelos de governação e de articulação entre os diferentes níveis da prática política. No seu todo percebe-se que há mais convergências que divergências de linhas políticas no governo do reino e da urbe e uma profunda contaminação e interacção entre os objectivos e a prática do poder régio e do poder local.

Após estes dois textos, que diríamos introdutórios, mergulhamos na questão das minorias religiosas - judeus e muçulmanos - que, na sociedade cristã medieval, de imediato nos remete para a problemática da exclusão e inclusão.

Jean-Luc Fray, revisitando a historiografia francesa e alemã sobre as novas noções de concivilitas de sentido político, de evolução paralela e de convergência, e convocando a produção historiográfica sobre as pequenas cidades, lança um outro olhar sobre a inserção das comunidades judaicas na “paisagem social” urbana. Seguirá desenvolvendo os paralelismos, as influências e as trocas de serviços entre cristãos e judeus no meio urbano. Demonstra como a progressão geográfica de judeus na Alemanha medieval desenvolveu o processo de urbanização, comercialização e monetarização; como a implantação das comunidades e bairros judaicos na topografia urbana abria espaço à convivência quotidiana; como existia uma colaboração intelectual entre ambos. Em síntese, como afirma, a presença das comunidades judaicas na rede urbana do ocidente medieval apresenta-se como um espelho da própria Europa medieval cristã, que se articula entre coabitações frequentes, numerosas trocas e incontestáveis tensões.

Maria Filomena Barros põe-nos perante o relacionamento entre cristãos, judeus e muçulmanos em que confluem, consoante os tempos e a diferentes níveis, inclusões, exclusões e interacções. Releva para esta análise o conceito de “entrelaçamento”, caracterizando-o desde a formação dos reinos ibéricos até à expulsão dos judeus de Castela e Portugal. Particulariza a inclusão, aludindo ao contexto político da organização e governo das comunas de judeus e mouros e à sua comunicação com os demais poderes, do régio ao concelhio. Acentua depois as exclusões legislativas, exigidas pela Igreja e reproduzidas pelo poder real, particularmente no que se refere às leis do vestuário, em que se visa, através do corpo, demarcar e tornar visível a alteridade destas minorias étnico-religiosas, a par do crescendo de leis que obrigam à separação espacial de mouros e judeus em bairros próprios. Por fim atem-se às interacções entre os concelhos e as comunas de judeus e mouros ou entre os concelhos e membros individualizados das minorias, e à transgressão dos interditos legislativos, o que aponta para um relacionamento social frequente entre todos no quotidiano de vida e de trabalho.

A análise das leis contidas nas Ordenações Afonsinas respeitantes a judeus é objecto de estudo de Ricardo Rodrigues, que analisa trinta e três títulos relativos os judeus, que se condensam no Livro II. Na dilucidação do conteúdo de tais leis, agrupa-as dicotomicamente em privilégios - quer quanto à autonomia das comunas de judeus, quer quanto aos direitos e garantias dos judeus perante os cristãos - e em limitações. Nestas limitações começa por referir o regime fiscal; em seguida as leis de afastamento entre a maioria cristã e a minoria judaica; depois as leis de carácter económico-financeiro e contratual; as leis sobre ofensas dos judeus ao cristianismo; ou ainda outras proibições e penas, como, por exemplo, a interdição de porte de armas. Acentua, a terminar, a existência nas Ordenações Afonsinas de uma transposição do Direito Canónico para o Civil, anota o balanço legislativo entre os privilégios e as proibições, para vir a dar conta, por fim, de um endurecimento da política legislativa contra os judeus a partir do século XV.

Os judeus continuarão a estar presentes nesta obra pela marca indelével das judiarias na paisagem urbana medieval, temática abordada na terceira parte deste livro.

Jean Passim propõe-nos a reconstituição, a partir de textos e da arqueologia, dos bairros judaicos de Toledo. A Grande Judiaria da cidade, composta por três bairros de desiguais dimensões, começou a ser abandonada depois do progrom de 1391 para se esvaziar completamente em 1492, tendo sofrido ao longo de cinco séculos profundas transformações. O Autor estuda os três primeiros séculos da sua existência, bairro por bairro. Havia ainda uma outra judiaria apartada na colina de Alacava, destruída em 1355, que possuía uma sinagoga e uma escola rabínica (midrash). Acrescentavam-se-lhes mais o bairro de Caleros com outra sinagoga, abandonado depois do referido movimento antijudaico de 1391. Percebe-se claramente através deste estudo, bem apoiado em imagens, a inserção da comunidade judaica no tecido urbano da cidade de Toledo.

E de Toledo passamos a Lisboa, desenhando-nos Manuel Fialho Silva, apoiado em elucidativas reconstituições cartográficas, a morfologia urbana das Judiarias Velha e Nova de Lisboa. Permitem-lhe estas um estudo comparado, que não se pode estender à judiaria de Alfama, cuja forma urbana não foi ainda reconstituída, nem ao núcleo populacional da Pedreira, que permanece ainda bastante desconhecido. A morfologia urbana da Judiaria Grande ou Velha, situada no Arrabalde Ocidental, local privilegiado de comércio, foi condicionada pela orografia da colina ocidental do castelo e pelo sistema viário romano ainda existente e caracterizava-se por uma disposição de ruas e casario organizada em torno da sinagoga, situada no centro da judiaria. Já a Judiaria Pequena ou Nova, resultante de um plano de reestruturação da Ribeira, levado a cabo por D. Dinis, apresenta uma estrutura linear com lotes muito provavelmente iguais ao longo da rua que separava a Judiaria Pequena das Tercenas régias. Percebe-se assim como as diferentes géneses das duas Judiarias de Lisboa plasmam uma oposta morfologia urbana, a primeira de complexa matriz mediterrânica, afeiçoada por diversas condicionantes, a segunda baseada numa organização linear, testemunho do modo de urbanização de finais de Duzentos.

De Sul para Norte, somos levados pelo estudo de Maria do Carmo Ribeiro, que se apoia em fontes escritas, cartografia e iconografia, a conhecer a inserção da comunidade judaica no urbanismo da cidade de Braga em tempos medievais. Não existia, até finais do século XIV, um local exclusivo de fixação dos judeus em Braga, os quais se dispersavam por diferentes casas e tendas, situadas nas variadas artérias da cidade, ainda que se detecte uma maior concentração na Rua da Sapataria. A primeira Judiaria da cidade, a dita Judiaria Velha, resultante do aumento do número de judeus na urbe, deverá ter sido criada na primeira metade do século XV. Era aberta e situava-se na Rua da Erva, inserindo-se, portanto, no sector urbano da cidade de malha bastante regular de artérias, herdada da ocupação romana, e na centralidade da cidade cristã, demarcada pela catedral, paços do concelho e açougues, pólo de um vivo fluxo comercial. A Judiaria Nova, para onde se transferiu a comunidade judaica a partir de 1466, estabeleceu-se também na parte sul do núcleo amuralhado, na Rua da Triparia. Estava, porém, numa área mais afastada da catedral, menos urbanizada e concentrava-se numa rua mais estreita e menos extensa, que poderia ser melhor controlada pelos cristãos. Os contrastes entre as duas judiarias, que a Autora destaca a concluir, bem como a dispersão de alguns judeus a morarem fora delas, são sinais do jogo das inclusões e exclusões que se detectam entre a comunidade judaica e a cristã, ditado por fluxos migratórios e por diferentes objectivos políticos do poder real e do poder religioso e civil da cidade.

Emerge pelo estudo de Tiago Ramos, Alcina Camejo e Daniel Martins o enquadramento da Judiaria da Guarda. Data esta de finais do século XIII e situava-se no espaço amuralhado da cidade, na área noroeste, encontrando-se mesmo adossada à muralha, e inseria-se também num espaço privilegiado do núcleo urbano, nas proximidades da Praça e da Rua de S. Vicente, numa área de propriedade régia. Os Autores, à luz dos contributos das intervenções arqueológicas nela realizadas, revêm anteriores propostas historiográficas sobre a sua morfologia e os seus espaços religiosos - sinagoga, banhos rituais e cemitério - ou espaços domésticos, apelando ao incremento de estudos criteriosos e científicos, apoiados numa metodologia interdisciplinar, que permitam conhecer melhor o caso concreto da comunidade judaica da Guarda em particular e desta minoria religiosa da sociedade medieval no seu todo.

As perspectivas da arqueologia, que deixam perceber, através da cultura material, sinais da inclusão e da exclusão, integram a quarta parte desta obra.

Moisés Alonso Valladares e Alberto García Porras detêm-se sobre a cronologia do sector setentrional das muralhas da alcáçova de Granada. Os Autores dão conta das diversas e controversas cronologias propostas por historiadores e arqueólogos ao longo dos tempos, bem como dos resultados de recentes escavações realizadas no século XXI. E se parecem aceitar que a muralha interna da cidade data do século XI, afirmam que a datação da muralha externa continua a ser muito controversa. Exigida esta nova muralha pela expansão urbana dos arrabaldes, deve ter sido construída na época almóada, ainda que com tramos mais tardios dos finais do emirado nazari (provavelmente entre 1425 e 1456). A construção de uma porta e de mais um lanço de muralha podia estar relacionada com a vontade de segregar as propriedades reais face ao entorno urbano mais próximo, ainda que possam também admitir-se outras hipóteses interpretativas de natureza militar, urbanística ou arquitectónica, enunciadas pelos Autores.

Inés María Centeno Cea, Maria J. Negredo García, Ángel L. Palomino Lázaro, Manuel Moratinos García estudam, com base em investigações documentais e intervenções arqueológicas, o nascimento de La Mota, que se integra no município de Castrillo Mota de Judios, situado próximo de Burgos. Este município, antigamente conhecido como Castrillo Matajudios, por vontade dos seus dirigentes locais e da sua população, mudou de nome, em consonância com a realidade histórica, e adoptou uma política activa de uma mais correcta e científica memória judaica e sefardita da localidade. De facto, em La Mota existiu, entre os séculos XI e XIV, uma importante judiaria e foram esses judeus, já convertidos ao cristianismo, que depois deram origem à actual localidade de Castrillo. As escavações arqueológicas recentemente realizadas deram a conhecer que a cerâmica encontrada data dos séculos XII e XIII e é de diferentes tipos, muito detalhadamente estudados pelos Autores, constando de objectos domésticos, sobretudo com fins culinários, e de certas peças especificamente judaicas, os candis, utlizados na conhecida festa das luzes desta religião. As análises arqueobotânicas e arqueozoológicas dos materiais escavados são também do maior interesse, permitindo conhecer a vocação agrícola e ganadeira da comunidade e a sua dieta vegetal e carnívora, o que reforça o valor patrimonial material e imaterial desta judiaria, cujo conhecimento será acessibilizado ao público no Centro de Memória Sefardita da localidade.

Ainda nesta quarta parte do livro, Catarina Meira recua no seu trabalho para tempos romanos, que nos revelam o sítio do Loteamento do Quintal, na cidade de Viseu, junto à igreja de S. Miguel do Fetal. Aí existiu uma necrópole romana, localizada no exterior da cidade junto à porta oriental, que se manteve durante a Alta Idade Média como a mais importante área cimeterial ao redor da mencionada igreja. A Autora remete para as mais antigas e recentes escavações arqueológicas no local e para os seus resultados, estando o abundantíssimo material recolhido a ser analisado pela própria para a elaboração da sua tese de doutoramento. Como nos dá a saber, o mesmo elucida-nos sobre as diferentes produções cerâmicas, sobre as múltiplas tipologias dos objectos, entre peças de servir à mesa, de armazenamento, de cozinha e de contentores de líquidos, e sobre os circuitos de trocas comerciais da cidade. O estudo finaliza com a demonstração e explicação das cinco fases de utilização/abandono desse local, que nos testemunham o dinamismo de ocupação e transformação de um espaço da cidade de Viseu desde a Antiguidade Tardia à Alta Idade Média.

Esta obra contempla ainda duas outras problemáticas de inclusão e exclusão, olhadas a partir dos pobres e dos estrangeiros.

Assim, na parte segunda da mesma, que se agrupa sob a designação Instituições e Processos, engloba-se especialmente a questão das franjas sociais decorrentes da pobreza, sob diversos contextos políticos.

Ana María Carballeira Debasa, tratando fontes árabes de natureza histórica, biográfica e jurídica, analisa a pobreza na comunidade islâmica do Al-Andaluz. Começa por caracterizar o pobre, distinguindo a pobreza involuntária da pobreza voluntária, assumida por ideais ascéticos e místicos. Discute, em seguida, os comportamentos sociais face à pobreza, seja marginalizando-a, tanto do ponto de vista religioso como socioeconómico, o que, no limite, podia remeter o pobre para a criminalidade, seja integrando-a por meio de actos particulares ou públicos de caridade, assumidos tanto como uma obrigação religiosa como também como uma responsabilidade social. E rematará afirmando que a sociedade islâmica não pretendia erradicar a pobreza, que religiosamente era mesmo necessária para que o preceito corânico da esmola se cumprisse, mas antes mitigar as suas consequências e assegurar que ela não pudesse ser um factor que levasse a subverter ou a ameaçar a ordem social estabelecida.

Pablo Ortego Rico atenta na comunidade mudéjar de Madrid durante a Baixa Idade Média, buscando rastrear os mecanismos de integração económica desta minoria religiosa. Na verdade, se a legislação a marginaliza, o papel económico desta minoria no seio das sociedades urbanas promovia a sua integração e mesmo ascensão social, ligada ao desempenho de certos ofícios especializados. Predominam os mudéjares que se dedicavam à actividade artesanal - 67,7% - seguidos dos que se dedicavam à actividade comercial - 22,2% - e por fim os que desempenhavam algum ofício institucional ou religioso - 10,1%. Comprovadamente se evidencia que as interacções económicas entre cristãos e muçulmanos nestes sectores produtivos relegavam para um segundo plano as diferenças religiosas e conduziam a uma convivência social pacífica.

José Manuel Triano Milán fixa-se no sistema de taxação fiscal em Sevilha no século XV para perceber os diversos níveis de enquadramento social. Demonstra como a inscrição do nome do contribuinte nestas listas de fiscalidade era a mais cabal evidência da condição de vizinho, que, todavia, como sabemos, contem em si muitas distinções. Todavia, não menos importante se torna atentar nos que não vêem os seus nomes inscritos em tais listas, que se agrupam, tripartidamente, em privilegiados, minorias religiosas e os que não tinham rendimentos suficientes para contribuir nos impostos, seja os pobres fiscais ou os pobres de solenidade que nada possuíam por velhice, viuvez ou doença. O autor verifica que os padrões fiscais hispalenses e as estratégias das oligarquias municipais que nela se espelham dão conta de um grande dinamismo e mobilidade sociais e evidenciam processos de inclusão e exclusão de vária natureza e conotações de sentido positivo ou negativo.

Os dois últimos estudos desta parte da obra incidem sobre a institucionalização dos pobres e doentes.

Ana Rita Rocha centra-se sobre a rede hospitalar de Coimbra, considerando a sua inserção no tecido urbano, social, religioso e político. Logo a abrir apresenta o desenvolvimento das instituições assistenciais por séculos, verificando-se o seu fortíssimo crescimento no século XIV, e aponta para um total de 45 hospitais, albergarias, mercearias e gafarias entre os séculos XII e XV. Percebe-se, ao particularizar a sua implantação urbana, que a maior parte destas casas se encontra nos arrabaldes e não na Almedina, o que a Autora descreve com desenvolvimento. E virá a concluir que em Coimbra, à semelhança de outras cidades e regiões, as instituições hospitalares se situavam preferencialmente junto dos principais eixos viários, em ligação com portas e pontes, pois que a maioria dos seus ocupantes eram gente que se movimentava, entre pobres, doentes, peregrinos e viajantes, havendo, porém, algumas outras junto a edifícios de prestígio, o que mais comprovava a sua integração na sociedade urbana, que deste modo as protegia mas também melhor as controlava.

Por sua vez Pablo Alberto Mestre Navas estuda o Hospital de São Lázaro de Sevilha, que data de época próxima da conquista da cidade (1248) e cuja fundação se ficou a dever à iniciativa real de Fernando III ou Afonso X de Castela, havendo este último monarca, bem como Afonso XI, obrigado todos os leprosos do arcebispado de Sevilha e do bispado de Cádis a ingressar nele. Foi instalado numa construção islâmica, nas imediações da cidade, que assim o vigiava, mas também amparava. O Autor deixa-nos entrever as suas fontes de rendimento, as autoridades que o regiam, os privilégios que detinha e as normas religiosas e económicas que orientavam a vida no Hospital. E virá a referir que, apesar dos favores concedidos pela Igreja e pela Coroa, o estabelecimento subsistiu sempre em condições precárias devido à má administração e aos sucessivos atropelos cometidos pelos seus oficiais.

Termina este livro com uma última parte intitulada: Acolher ou excluir: os estrangeiros na cidade.

Abre-a Gisela Naegle que procura elucidar as atitudes de acolhimento ou expulsão dos forasteiros na França e na Alemanha na Baixa Idade Média, numa perspectiva de história política e jurídica comparada. No contexto da Guerra dos Cem Anos, o rei de França perseguiu uma política de acolhimento dos forasteiros, justificando-a com a necessidade de aprovisionamento da população, enquanto as cidades pretendiam excluir os intrusos e proteger os seus interesses. Anota, por exemplo, casos de gente especializada repudiada (por exemplo os juristas, em especial nas cidades comerciais alemãs) ou procurada, como os artesãos altamente qualificados. Na realidade, como a Autora vem a evidenciar, a inclusão e a exclusão são duas faces da mesma medalha, que estão ligadas à honra e à prosperidade económica e demográfica da cidade. A nível dos discursos as atitudes justificam-se com o argumento do bem comum e, no caso de refugiados de guerra, com o da caridade, argumentação que encobre por vezes os verdadeiros móbeis das atitudes para com os forasteiros, podendo estes englobar todas as camadas da sociedade medieval.

Elena Maccioni estuda um pleito ocorrido em 1433 entre barceloneses e genoveses, levado perante a rainha de Aragão, por causa de um imposto, que teve grandes implicações diplomáticas e políticas. Sabemos que Barcelona detinha uma forte política protecionista e hostil à presença estrangeira no seu território, que o rei Afonso V de Aragão apoiava. O processo deixa conhecer o nome de mercadores italianos e os produtos que comercializavam, mas igualmente permite averiguar as decisões políticas, económicas e fiscais aplicadas pelas elites mercantis e navais catalãs aos estrangeiros, em particular aos genoveses. A quebra da paz fiscal entre as duas cidades levou Génova, na segunda metade do século XV, a preferir negociar com Valência, como aliás o fizeram outros mercadores estrangeiros.

Javier Añibarro Rodriguez coloca-nos perante a realidade da presença de navegantes do Norte de Castela nos portos irlandeses, nos finais da Idade Média, a partir do caso de estudo de San Vicente de la Barquera e de Laredo. Começa justamente por ilustrar a convivência entre marinheiros castelhanos e mulheres irlandesas, que, tal com noutras partes, era no geral uma fonte de problemas que as normativas procuravam regulamentar. Os cântabros receberam também licenças para pescar nos mares da Irlanda e estabeleceram trocas comerciais com os naturais ou emprestaram-lhes mesmo navios, o que dinamizava a economia local e a enriquecia com o pagamento de taxas fiscais. Mas se havia relações pacíficas também existiam algumas conflituosas, embora as relações de interação, ainda que descontínuas dada a sua característica de sazonalidade, se sobrepusessem às de exclusão, e comprovem mesmo um relacionamento estreito com os senhores locais e os poderes eclesiásticos.

Enrique José Ruiz Pilares perscruta a presença de estrangeiros no governo das cidades da Andaluzia em finais da Idade Média. Percebemos, por exemplo, que em Sevilha marcavam presença, entre os regedores, vários membros da família portuguesa Portocarreiro e, entre os jurados, homens de famílias italianas; em Sanlúcar ascenderam ao poder alguns ingleses; em Cádis encontravam-se certos dirigentes de origem genovesa. Mas, como vem a concluir a Autor, apesar da integração dos estrangeiros nas cidades e vilas andaluzas, a sua penetração nos governos urbanos é muito limitada até meados do século XVI. Também, por sua vez, a comunidade estrangeira estaria mais interessada no controlo do mercado e da fiscalidade que no exercício do poder local.

A finalizar a derradeira parte da obra, Lorenzo Lage Estrugo debruça-se sobre os casos dos genoveses Manuel Pessanha e Egídio Bocanegra, ao serviço das Coroas de Portugal e Castela, comparando as suas diferentes trajectórias de integração. Analisando com minúcia as especificidades de recrutamento de ambos para o almirantado pelos reis D. Dinis de Portugal e Afonso XI de Castela, evidencia como no primeiro caso se está a implantar, sob a supervisão da Coroa, o cargo de almirante de uma forma estável e contínua, enquanto no segundo se recrutava um reformador da marinha castelhana para as lutas a haver no estreito de Gibraltar. Torna-se claro, todavia, que as duas contratações responderam a necessidades de reconfiguração das instituições navais, quando ambas as Coroas pretendiam projectar-se maritimamente, recorrendo a estrangeiros com provas dadas no domínio do mar Mediterrâneo.

Espero ter demonstrado, com o que deixei exposto nesta nota de leitura, que, para conhecer e aprofundar a temática da inclusão e da exclusão, a nível da conceptualização, das metodologias e das concretizações históricas, sob múltiplas abordagens e manejando diversas fontes, este livro se torna imprescindível. Em boa hora o escreveram os seus Autores, o creditaram os seus Avaliadores, o organizaram os seus Coordenadores e o subsidiaram os seus Patrocinadores.

Os conceitos de inclusão e exclusão, relacionados com tantos outros, desde logo os de identidade e alteridade, afeiçoam as duas faces de Janus e imbricam-se na complexidade da sociedade medieval percorrida por estrageiros, pobres e viandantes e composta por maiorias e minorias religiosas devidamente hierarquizadas. Fronteiras, limites, marginalização, interacção, integração, composição descobrem-se nas políticas, nos actos e nos comportamentos sociais ao ler este livro.

Creio não ser preciso mais acrescentar para que todos desejem mergulhar na sua leitura, sentindo-se incluídos no seu saber e excluídos do seu desconhecimento.

 

Como citar este artigo | How to quote this article:

COELHO, Maria Helena da Cruz - “ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina; SILVA, Gonçalo Melo; PRATA, Sara (eds.) - Inclusão e Exclusão na Europa Urbana Medieval. Inclusion and Exclusion in Medieval Urban Europe. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais-Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2019 (552 pp.)”. Medievalista 28 (Julho - Dezembro 2020), pp. 365-378. Disponível em https://medievalista.iem.fcsh.unl.pt.

 

Data recepção do artigo / Received for publication: 12 de Janeiro de 2020

 

[1] Esta recensão corresponde ao texto de apresentação do livro Inclusão e Exclusão na Europa Urbana Medieval. Inclusion and Exclusion in Medieval Urban Europe (2019), apresentado a 10 de Outubro de 2019, em Castelo de Vide, durante as IV Jornadas Medievais Internacionais de Idade Média: Abastecer a Cidade na Europa Medieval, que decorreram entre os dias 10 e 12 de Outubro de 2019.

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