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Medievalista

versión On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.28 Lisboa jul. 2020

https://doi.org/10.4000/medievalista.3302 

DOSSIER

De João das regras ao conselho Régio: os legistas na afirmação da nova dinastia

From João das Regras to the Royal Council: men of law in the affirmation of the new dinasty

Armando Luís de Carvalho Homem1
https://orcid.org/0000-0001-9337-6995

1 Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais; Universidade do Porto, Centro de Estudos de População, Economia e Sociedade; Universidade Autónoma de Lisboa, Centro de Investigação em Ciências Históricas. 4099-002 Porto; 1169-023 Lisboa, Portugal. almisch@gmail.com


 

RESUMO

O organograma da oficialidade burocrática após 1383-1385 reproduz, no essencial, o que se esboçara entre as décadas de 30 e de 70 de Trezentos. Quando se passa aos oficiais concretos o panorama difere, uma vez que se verifica uma acentuada renovação dos burocratas, com destaque para clérigos e homens de Leis. O século XV vai afirmar-se, logo em tempos joaninos, como um tempo de desempenhos da oficialidade mais longos e cada vez mais qualificáveis como carreiras. Quanto ao Conselho Régio, a instância política dos órgãos do poder, com actividade mais ou menos intensa, o monarca reserva-se o direito de o organizar e de designar os seus titulares. A nova dinastia irá ainda reforçar a imagem jurídica da realeza pela vertente do rei-legislador, não tanto agora pela criação como pela recolha e sistematização do Direito vigente.

Palavras-chave: Burocracia régia; Conselho Régio; Códigos legislativos; Legistas.


 

ABSTRACT

The organization of bureaucratic officiality after 1383-1385 essentially reproduces what had been outlined between the 30s and the 70s of the 14th. Century. When it comes to specific officers, the scene differs, since there is an obvious renewal of bureaucrats, mainly clerics and lawmen. The 15th. Century will be, already in the days of King John I, a time when official status is held longer, being increasingly categorized as careers. As for the Royal Council, the king reserves to himself the right to organize the political level of the governmental organs (of more or less intense activity), and to appoint their members. The new dynasty will also reinforce the legal image of royalty, through idea of King-legislator, not so much as the result of creation, as of collection and systematization of the law in force.

Keywords: Legislative codes; Jurists.


 

1. 1383 e depois…: as instituições e os indivíduos

Começarei por uma ideia que anteriormente expus já, mas em que creio não ser demais insistir: o desfecho de 1383-1385 não é propriamente revolucionário em termos de estritos quadros institucionais do poder régio. Com efeito, o organograma da oficialidade burocrática joanina reproduz no essencial aquilo que se fora esboçando entre as décadas de 30 e de 70, reinando os três últimos monarcas da dinastia fundadora. E significativo é, a tal respeito, o ‘desencontro’ revelado entre as reivindicações dos artigos 2.º e 3.º dos Capítulos Gerais das Cortes de Coimbra e as respectivas respostas do Rei:

- Assim, no primeiro dos mencionados artigos, os povos reivindicam para o regimento do que chamam o Conselho régio a existência de um ofício de Chancelaria, outro de Tesouraria, outro do livramento da Fazenda e um último do livramento das graças; o articulado mostra um conhecimento ténue da orgânica existente à data da morte de D. Fernando, ao omitir a existência de ofícios como o de Corregedor da Corte (que vinha dos tempos finais de Afonso IV) e o de Vedor da Fazenda (remontando ao terminus da década de 1360), e isto para já não falar dos escrivães vários, maxime o da Puridade;

a resposta régia é algo ‘esquiva’, escudando-se em expressões tais como “El [o Rei] dara carrego a estes que ham de estar em seu Conselho que muito melhor sabem fazer como ajam introduzir em no Conselho os negocios e cousas que se ouverem de Livrar”, e referindo sequentemente os Vedores da Fazenda para os feitos respectivos;

- quanto ao artigo 3.º, de menor importância no contexto, prende-se com a reivindicação da existência, em Lisboa, de dois ouvidores, com competência tanto cível quanto criminal na área da urbe e do bispado, e do Chanceler; complementarmente se pede a existência de casas de Justiça em Évora e em Coimbra, com competência, respectivamente, a Sul e a Norte do Tejo;

- a resposta, uma vez mais, patenteia a desactualização do requerido: se o Rei concorda com a territorialização das Justiças nos moldes pedidos, já considera escassos dois oficiais para livramento dos feitos de Justiça, subindo o seu número para três, em articulação com o Chanceler[1].

Ou seja: reivindicações não plenamente assentes na realidade próxima-passada das instituições, respostas esquivas, ambíguas (v.g. pelo reiterado uso do termo “Conselho”) e não propriamente expressantes de qualquer programa régio para os órgãos do poder; o que, note-se, nada tem de surpreendente em Cortes.

2. Meio século de reinado como factor de institucionalização das carreiras burocráticas: as três gerações dos oficiais joaninos

Mas se da orgânica institucional passarmos aos oficiais concretos o panorama difere. Desde logo por uma circunstância que se prende ao simples fluir das existências: vivendo até meio da casa dos 70, D. João I terá o mais longo reinado da Idade Média portuguesa, de praticamente meio século; apenas D. Dinis, com 46 régios anos, dele se aproxima. Tal meio século, ainda por cima sem situações de ruptura que se não prendam à simples caducidade biológica das gerações, tem desde logo uma consequência e permite, por outro lado, dar-nos conta de um facto primacial em termos de evolução das instituições:

- Assim, e em primeiro lugar, uma consequência: os oficiais joaninos vão normalmente permanecer em funções até ao fim da existência ou até que a falta de saúde ou de boa forma física (v.g., a capacidade para montar a cavalo, no quadro de uma Corte itinerante) os impeçam de continuar no ofício; e assim poderemos neste reinado, a bem dizer pela vez primeira, dar-nos conta da sucessão de três gerações de servidores do aparelho burocrático da Coroa: 1384-ca. 1405; ca. 1405-ca. 1420; e ca. 1420 ss.

- Em segundo lugar uma constatação de facto: Trezentos havia sido ainda um tempo de fragilidade dos ofícios régios, sendo mesmo problemático o poder falar-se de carreiras burocráticas; situações de mudança de reinado, de guerra, de crise política, de mutações na Corte eram normalmente o suficiente para desencadear uma substituição, radical ou acentuada, do pessoal da Chancelaria; aliás, pode dizer-se que o século XIV conheceu uma única transição de reinado qualificável como normal: a de D. Pedro I para D. Fernando. Ora, Quatrocentos vai afirmar-se, logo em tempos joaninos, como um tempo de desempenhos da oficialidade mais longos e cada vez mais qualificáveis como carreiras, situação que poderá dizer-se consolidada em tempos manuelinos, sem embargo, até lá, da complexidade, por exemplo, dos anos 1438-1449 e 1480-1483; mas a verdade é que percursos da oficialidade estendendo-se por mais de duas ou de três décadas, clara raridade até então, tendem a tornar-se algo de relativa e crescentemente corrente e normal.

Voltando, entretanto, aos tempos iniciais do fundador da dinastia de Avis, e retomando uma ideia já exposta: continuidade, portanto, de uma orgânica institucional, mas desempenho dos ofícios predominantemente por indivíduos sem antecedentes (ou com escassos antecedentes) no serviço régio. De facto, dos 16 oficiais em funções nos tempos terminais de D. Fernando, 12 desaparecem definitivamente da cena pública, havendo supletivamente a ter em conta 2 casos de continuidade quase linear e mais 2 de afastamento com ulterior reintegração, sendo que num destes casos o intervalo de funções é de 8 anos.

Quanto ao total de 24 oficiais que vão estar em funções no período 1384-1395, uma primeira e reiterada observação diz respeito à sua falta de antecedentes pessoais no serviço régio (apenas, pontualmente, no serviço do município de Lisboa). Homens novos, portanto, e até a mais de um título, já que de um modo geral bem poderiam ser mais jovens ao entrar no serviço do Rei do que os seus predecessores. Mas antecedentes de outro tipo podem existir: a circunstância, por demais conhecida, de João das Regras como enteado do antigo oficial petrino e fernandino Álvaro Pais, está longe de ser única. Com efeito, uma investigação já antiga de Maria de Lurdes Rosa[2] veio chamar a atenção para um total de 4 situações de parentesco entre novos desembargadores de D. João I e antigos oficiais de D. Fernando, os quais já não se encontrariam em funções em 1383, mas antes em situações de alguma ‘dissidência’ no quadro de uma sociedade de Corte que, e desde os alvores da década de 1370, vivia algumas perturbações, ligadas a circunstâncias que depois poderei particularizar.

As novidades dos burocratas joaninos não se ficam por aqui:

- Quase ausentes do Desembargo tardo-fernandino, clérigos e homens de Leis vão ter presença destacada nos tempos subsequentes a 1383. Só que, com uma diferença entre uns e outros: os clérigos, em declínio desde o segundo quartel do século, vão ter, na primeira geração joanina, um dernier souffle, prolongado até meados da década de 1410: é o caso de homens como João Afonso da Azambuja, João Afonso Aranha, Martim Afonso Charneca (ulteriores prelados) ou Rui Lourenço (deão do cabido de Coimbra), entre outros. Depois será o quase desaparecimento no âmbito deste subsector da sociedade política (ainda que, por Quatrocentos adiante, prelados, clérigos e mais pontualmente abades de mosteiros possam ser membros do Conselho, encarregados de missões diplomáticas ou presidentes de um dos tribunais superiores do Reino, entre outras tarefas).

- Relativamente aos legistas, não raro, à partida, membros do clero secular, retomam, com a nova dinastia, o caminho ascendente que vinha da quarta década de Trezentos, chegando, nos alvores do novo século, a ultrapassar o terço da totalidade dos oficiais; destaquem-se nomes como o Lic.º Fernão Gonçalves, os irmãos Dr. Diogo Martins e Dr. Gil Martins, o Bach. João Afonso da Azambuja, o escolar João Afonso de Santarém, o Dr. João das Regras, o Dr. Lançarote Esteves, o Dr. Martim Afonso Charneca, o mais tardio Dr. Rui Fernandes ou o Lic.º Rui Lourenço; acrescente-se uma particularidade: a tomada de peso, a partir do início de Quatrocentos, dos doutores em Leis, por vezes formados por Universidades italianas, circunstância iniciada em tempos fernandinos e que agora se retoma, se reforça e se prolonga pela centúria.

3. A instância política: rumos do Conselho de D. João I

Passemos agora à instância propriamente política dos órgãos do Poder, ou seja, o Conselho Régio.

É corrente afirmar-se que os conselhos régios de finais da Idade Média oscilam entre o carácter de órgão representativo da comunidade (qual “micro-parlamento”, micro-Cortes) e o carácter de órgão assessor da realeza. As duas situações acabam por ser verificáveis em tempos joaninos.

Remontemos, uma vez mais, às Cortes de Coimbra e ao que nelas se pede e se responde em matéria de Conselho (salientando de novo que os textos dos Capítulos utilizam então o substantivo “conselho” para referir tanto o propriamente dito quanto a burocracia do Desembargo). A este respeito é também conhecido de há muito o artigo 1.º dos Capítulos Gerais:

- Considerando que o Rei teria “mister” de “boos consilheiros” recrutados nos quatro estados do Reino, propõem os povos a inclusão no Conselho de 14 personalidades, a saber, 2 pelos prelados, 4 pelos fidalgos, 4 pelos letrados e 4 pelos cidadãos de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora;

- o monarca confirma apenas 6 dos propostos, concretamente D. João Eanes (bispo de Évora), Diogo Lopes Pacheco, Vasco Martins de Melo, o Dr. Gil do Sem, o Dr. João das Regras e o Dr. Martim Afonso Charneca; a resposta refere ainda, em termos algo ambíguos, o(s) representante(s) dos quatro meios urbanos referidos[3]; de salientar, entretanto, que nenhum dos nomeados por D. João I possui qualquer antecedente no Conselho fernandino, ainda que um ou outro pontualmente possam ter detido alguma presença na Corte antes de 1383.

Ou seja, o Rei, em última análise, reserva-se o direito de organização do seu Conselho e de designação dos titulares respectivos. A reivindicação em Cortes configuraria um Conselho formado na base da representação “estamental”, conceito este de alguma prática na Historiografia jurídica incidente sobre a Idade Média castelhana[4]. Na prática, uma “estamentalização” racionalizada, isto é, mediante a presença, entre os conselheiros, de indivíduos de todas as condições com poder suficiente para ter acesso a tal órgão do Poder, ainda que o estado dos fidalgos tenda para algum predomínio, que os letrados detenham um montante de presenças que o futuro não confirmará e que o estado dos “cidadãos” se paute normalmente por uma presença algo discreta.

Certo é também que os primeiros 10 / 15 anos do reinado joanino conhecerão, com certa naturalidade, um funcionamento mais assíduo do Conselho e em termos de uma certa colegialidade; o órgão de assessoramento político da realeza intervirá então, e por exemplo, previamente à resposta a agravos em Cortes, em questões diplomáticas, em questões jurisdicionais (normalmente quando estão em jogo direitos na matéria de altas individualidades) e até previamente ao despacho de actos de Chancelaria.

Depois… a assiduidade e a colegialidade atenuam-se, as marcas documentais da actuação do Conselho pontualizam-se, a renovação do mesmo permanece limitada até à década de 1410 e só na ponta final do reinado assistiremos a uma reintensificação da sua actividade. Mas verdadeiramente só a diplomacia e as jurisdições manterão peso constante entre os domínios da actividade do Conselho. Mas quando, em fim de reinado, a tal reintensificação ocorrer, já os protagonismos na condução dos destinos do Reino se terão diversificado.

4. A afirmação de D. Duarte-Infante (1411 ss.)

E isto leva-nos a um último feixe de questões que por hoje quererei abordar. Os 22 anos finais do reinado joanino serão tempo como que de governo a duo, aqui tirei as aspas à francesa e coloquei em itálico por ser uma expressão feita entre o monarca e o herdeiro da Coroa. Dispondo de Casa própria e de um património de elevado montante de direitos a partir de 1408, D. Duarte cedo passará da gestão pessoal da dita Casa e direitos à intervenção directa em assuntos ‘de Estado’, com um corpo próprio de oficiais e conselheiros e produção própria de actos escritos. O monarca atingira, entretanto, os 50 anos (fronteira medieval da juventude e da velhice, considerada esta como tempo de plena maturidade, experiência e sabedoria), e a partir de então - mormente depois de Ceuta - irá reduzir acentuadamente a sua intervenção no quotidiano governativo.

Ora, em 1418, nas Cortes de Santarém, os povos apontam ao Rei os problemas referentes à vigência das múltiplas leis dos monarcas portugueses decretadas desde Duzentos: documentalmente dispersas, muitas delas redigidas em Latim, ou então num Português já não familiar aos oficiais régios de Quatrocentos, por vezes árduas de interpretar pela dissociação entre o conteúdo original e os posteriores e sucessivos aditamentos e modificações de outros monarcas… E requer-se então, para além do aclaramento dos conteúdos, a organização de uma recolha da legislação régia que obviasse os inconvenientes apontados. D. João I mostra-se de acordo. E é este o ponto de partida de um processo que culminará apenas cerca de três décadas mais tarde, com as Ordenações Afonsinas (1446-1448).

A situação presente às Cortes de 1418 não era nova. Pela década de 1390, e no seio da oficialidade régia, concretizara-se um primeiro ‘ensaio’ de recolha legislativa, plasmada no chamado Livro das Leis e Posturas, um códice constando hoje do Núcleo Antigo da Torre do Tombo[5] e contendo um total de 264 leis régias. O critério de organização não se apresenta como particularmente apurado, à luz das subsequentes experiências quatrocentistas: de facto, o conteúdo não se encontra ‘arrumado’ por reinados ou matérias, havendo além disso diversos casos de repetição de textos, não raro com divergências de datação e não total coincidência de conteúdo. Não se pensa hoje que esta primeira recolha deva incluir-se na decorrência de 1418, nem se continua a atribuir a responsabilidade máxima ao Corregedor da Corte João Mendes. Pelo contrário, e apesar de o assunto requerer ainda longo e atento estudo, tende-se a considerar o Livro das Leis e Posturas como algo de pioneiro, sem dúvida, mas isolado face a iniciativas posteriores, em relação às quais é bem mais antigo.

Ora, o ulterior processo de recolha dos textos legais arrancado em 1418 será portanto demorado, e até algo acidentado (apanhou pelo meio com duas sucessões régias - 1433 e 1438 - e uma regência), e o seu grande protagonista, ao nível dos cumes do poder político, será justamente D. Duarte, sucessivamente enquanto Infante associado à governação e enquanto Rei.

O nome de D. Duarte aparece desde logo ligado ao título de uma segunda recolha de textos legais: o códice dos Reservados da Biblioteca Nacional conhecido justamente como Ordenações del-Rei Dom Duarte[6]. Bastante mais apurada na sua organização do que o Livro das Leis e Posturas, esta segunda iniciativa recolectora de leis (num total de 409) apresenta as mesmas arrumadas por reinado e, até certo ponto, sistematizadas por matérias. Remontante, provavelmente, a meados da década de 1430, estas Ordenações poderão ter sido ‘encomendadas’ por D. Duarte como instrumento de consulta dos superiores titulares do Poder - e não para funcionarem como Direito vigente -, poderá o próprio D. Duarte ser o autor da “tauoa” de matérias que as abre, poderão ter integrado a livraria pessoal do segundo dinasta de Avis; e são claramente trabalho preambular às Ordenações Afonsinas [7].

5. Os homens de Leis e a legitimação da dinastia pela construção do “corpus jurídico-normativo”: do Livro das Leis e Posturas às Ordenações Afonsinas

No processo de, como já disse, cerca de três décadas a elas conducente terão sucessivamente intervenção os oficiais régios João Mendes (Corregedor da Corte), Dr. Rui Fernandes (ao tempo Chanceler), Dr. Lopo Vasques de Serpa (Corregedor de Lisboa) e ainda os Desembargadores Luís Martins e Fernão Rodrigues. Nem todos serão estritamente homens de Leis, i.e., com habilitações jurídicas académicas. Mas faça-se notar que o Corregedor João Mendes, o primeiro a superintender no empreendimento, era à data alguém com quase duas décadas numa área fulcral do serviço régio como era a intervenção em matérias jurisdicionais[8]; e, para além disto, interveniente na elaboração e publicitação da maior parte das leis de D. João I subsequentes a 1402[9].

Processo longo e acidentado, repito. Legislar era algo já remoto no reino de Portugal. Fizera-o, pioneiramente, Afonso II, em 1211, coevamente à Magna Carta inglesa ou a Filipe Augusto de França. Continuadamente se voltara a fazer, e agora sem soluções de continuidade, a partir de Afonso III. O primeiro dinasta de Avis, sem deixar de legislar, iria no entanto presenciar e ajudar a protagonizar os primeiros tentames de compilação dos textos; e, também nisto, os Reis de Portugal foram precoces em termos ocidentais. A iniciativa essencial (1418) deu-se, entretanto, já em fase de protagonismo, outrossim, do herdeiro da Coroa, que nessa matéria será mesmo de protagonismo redobrado. Ou seja, se dos tempos pré-1383 nos ficara mais de um século de normativização régia, a nova dinastia logo iria reforçar a imagem jurídica da realeza pela vertente do rei-legislador [10], não tanto agora pela criação como pela recolha e sistematização do Direito vigente.

Um superavit legitimatório? Sem dúvida. Mas, pelas circunstâncias apontadas, com algumas consequências porventura inesperadas. Assim, as “Ordenações Afonsinas” irão, antes de mais, apresentar, qual reflexo de diferentes mãos organizadoras, um contraste de fundo entre:

- Por um lado, o livro I, cujos artigos apresentam aquilo que o jargon histórico-jurídico costuma designar como estilo decretório, i.e., uma abstracção e uma impessoalidade que o aproximam do discurso jurídico que vimos conhecendo a partir de Oitocentos;

- e, por outro, os livros II a V, onde nos sucessivos títulos frequentemente se apresenta a genealogia da norma, por vezes a partir de monarcas de Duzentos, e até à forma final, procedimento este, está bem de ver, claramente

Para além disto, e talvez até mais fundamental, o Código Afonsino, em termos de conteúdo, apresenta-se-nos mais como uma compilação e adaptação de sucessivas leis de Duzentos e de Trezentos, bem mais do que um legislar ex novo. E não é por acaso que, mal entradas em vigor, se começa a legislar sobre matérias omissas ou a alterar matérias efectivamente consignadas. Não será, pois, de estranhar que diversos historiadores, para além de apontarem a vigência relativamente efémera das Ordenações Afonsinas (1448-1521), questionem a própria intensidade da sua vigência, tendo até em conta o baixo número dos manuscritos quatrocentistas.

Ou seja: a recolha legislativa com o seu minuto zero no ano de 1418 acaba por se revelar uma das circunstâncias responsáveis por um acentuado cristalizar do legado institucional da nossa Idade Média Tardia, sobrevivendo inclusivamente às duas versões (1512-1514 e 1521) da reforma manuelina das Ordenações, para só se deter, verificada em Quinhentos a feição já bem diversa do montante da população do Reino, perante - quem diria? - os impulsos reformadores do monarca predominantemente ainda recordado pela introdução entre nós do Tribunal do Santo Ofício…

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Como citar este artigo | How to quote this article:

HOMEM, Armando Luís de Carvalho - “De João das Regras ao Conselho Régio: os legistas na afirmação da nova dinastia”. Medievalista 28 (Julho - Dezembro 2020), pp. 67-86. Disponível em https://medievalista.iem.fcsh.unl.pt.

 

Data recepção do artigo / Received for publication: 1 de Dezembro de 2019

Data aceitação do artigo / Accepted in revised form: 27 de Abril de 2020

 

[1] Torre do Tombo [TT] - Livro II de Cortes, fls. 1-18; publ. em apêndice, doc. n.º 4, a CAETANO, Marcello - “As Cortes de 1385” [1951], reed.in CAETANO, Marcello - A Crise Nacional de 1383-1385. Subsídios para o Seu Estudo. Lisboa / São Paulo: Verbo, 1985, pp. 109-111.

[2] ROSA, Maria de Lurdes - Pero Afonso Mealha. Os bens e a gestão de riqueza de um proprietário leigo do século XIV. Redondo: Patrimonia, 1995.

[3] Fonte cit. supra, nota 1; publ.: CAETANO, Marcello - A Crise Nacional de 1383-1385. Subsídios para o Seu Estudo …, pp. 108-109.

[4] DIOS, Salustiano de - El Consejo Real de Castilla (1385-1522). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982; TORRES SANZ, David - La Administracion Central Castellana en la Baja Edad Media. Valladolid: Universidad de Valladolid, 1982.

[5] Livro das Leis e Posturas. Ed. Nuno Espinosa Gomes da Silva e Maria Teresa Campos Rodrigues. Lisboa: Faculdade de Direito, 1971.

[6] Ordenações del-Rei Dom Duarte. Ed. Martim de Albuquerque e Eduardo Borges Nunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1988.

[7] Veja-se um ponto da situação, com indicações de Fontes e de Bibliografia, em HOMEM, Armando Luís de Carvalho - “Estado moderno e legislação régia: produção e compilação legislativa em Portugal (séculos XIII-XV)”. in COELHO, Maria Helena da Cruz; HOMEM, Armando Luís de Carvalho (coord.) - A Génese do Estado Moderno no Portugal Tardo-Medievo (séculos XIII-XV). Lisboa: UAL, 1999, pp. 111-130.

[8] HOMEM, Armando Luís de Carvalho - O Desembargo Régio (1320-1433). Porto: INIC/CHUP, 1990, pp. 346 e 442-443.

[9] Cf. o trabalho cit. supra, nota 7.

[10] NIETO SORIA, José Manuel - Fundamentos ideológicos del poder real en Castilla (siglos XIII-XVI). Madrid: EUDEMA, 1988, pp. 151-164.

 

Anexo

 

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