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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.28 Lisboa jul. 2020

 

DOSSIER

“Eclesiásticos na diplomacia, na administração e na legitimação das monarquias medievais: Portugal, Leão e Castela, França e Inglaterra”: uma apresentação

“Ecclesiastics in diplomatic affairs, the administration of the Realm and the Legitimation of Medieval Monarchies: Portugal, León and Castile, France and England“: a foreword

Maria João Branco(a)
https://orcid.org/0000-0002-7165-5958

Hermínia Vilar(b)
https://orcid.org/0000-0003-3300-8335

(a)Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais.1070-312 Lisboa, Portugal mjbranco@fcsh.unl.pt

(b)Universidade de Évora, CIDEHUS - Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades. 7000-803 Évora, Portugal. hmav@uevora.pt


 

Em Setembro de 2013, dávamos início ao projecto DEGRUPE, acrónimo do título A Dimensão Europeia de um Grupo de Poder: o clero na construção política das Monarquias Peninsulares (sécs. XIII-XV)[1], liderado por Hermínia Vilar e sediado no CIDHEUS, com a colaboração activa de diversos outros Centros de Estudos portugueses, entre os quais o IEM. O DEGRUPE, como ficou conhecido, propunha-se elaborar uma base de dados prosopográfica sobre os membros do clero com ligações às monarquias peninsulares, de forma a permitir aprofundar a nossa reflexão sobre o papel e a importância desse grupo social, maxime do clero secular, na criação de um espaço de mobilidade e de circulação de modelos culturais e políticos extensível ao conjunto da christianitas europeia e consequentemente do seu contributo para o perfil das monarquias peninsulares.

O projecto, que decorreu durante os dois anos e meio subsequentes, nasceu de forma muito subsidiária de um anterior, no qual a grande maioria dos membros da equipa também tinha estado envolvida, e que influenciou, de forma decisiva, o progresso no nosso conhecimento acerca do grupo social e a esfera de influência que este projecto se propunha estudar. Falamos, obviamente dos Fasti Ecclesiae Portugaliae: prosopografia do clero catedralício português (1071-1325)[2], cujo decurso e resultados nos tinham aberto muitas perspectivas críticas de investigação e que nos permitira já determinar um conjunto de dinâmicas internas destes eclesiásticos, as quais, dez anos mais tarde, queríamos explorar. O DEGRUPE nascia também em estreita colaboração com um Grupo de Investigação Europeia do CNRS que entretanto se formara, e no qual participava activamente o GDRE - At the Foudations of the Modern European State: the Legacy of the Medieval Clergy. Todos estes elementos - todos os projectos têm a sua história, e este não é excepção a essa regra - contribuíram de forma fundamental para a forma como o trabalho decorreu, para os resultados a que chegámos e para a formulação de questões de investigação que, depois de tantos anos de trabalho, continuam a mostrar-se plenas de novidade.

É esta a história e a razão de existir do dossier temático que hoje trazemos a público, um dossier que teve origem no segundo encontro internacional do Projecto DEGRUPE (realizado em Setembro de 2015), subordinado ao tema “The Medieval Monarchy and its Legitimating Strategies: The Role of Ecclesiastics, Scholars and Jurists (12th-15th centuries)”, mas que, passados cinco atribulados anos e fruto da erosão que o tempo sempre causa nos formatos e planos iniciais, acaba por se concretizar de forma bastante autónoma em relação aos trabalhos desse encontro de 2015, embora fiel ao seu espírito inicial.

É impossível evitar comparar o estado da produção sobre o papel dos eclesiásticos junto ao poder régio, quer do ponto de vista da sua intervenção como agentes políticos activos, quer da perspectiva da sua contribuição teórica para a consolidação e legitimação das monarquias, nos anos 10s deste século, quando este processo começou a tomar forma, e nos dias de hoje, período durante o qual o panorama historiográfico se alterou de forma muito sensível.

Os progressos feitos nos estudos sobre a importância do clero como elemento fundamental na fase de constituição e afirmação das monarquias, a diferentes níveis, desde o da influência pessoal e jurídica ao contributo dado na construção da legitimação política, do exercício de cargos administrativos ou no oficialato régios ao controle de redes de influência, do exercício de funções e responsabilidade por missões diplomáticas até ao mais expectável papel de capelães ou confessores régios, têm vindo a ser sistematicamente escalpelizados por autores de quase todas as nacionalidades.

Embora dependendo do diferente grau de tratamento dos dados de base, ou seja, do melhor ou pior conhecimento que temos das circunstâncias das vidas destas personagens eclesiásticas e dos que circulavam no seu entorno, bem como do progressivo alargamento dos estudos que pretendem observar as suas carreiras individuais como integradas em tendências e modelos que os interligavam a todos num comum ambiente politico-cultural, os últimos anos têm assistido a uma proliferação de trabalhos sobre indivíduos específicos, sobre dioceses, regiões e relações entre diferentes instituições. Mais recentemente, o papel dos eclesiásticos na diplomacia tem sido objecto de uma particular atenção através dos estudos dos seus percursos como agentes diplomáticos e das suas estratégias de desempenho.

Muito embora se tenha operado um progresso decisivo nos estudos sobre o papel dos eclesiásticos junto aos poderes temporais e espirituais, e sobre a influência que carreiras individuais ou de grupos de indivíduos tiveram na constituição de modelos de inter-relacionamento entre poderes de naturezas distintas - por vezes opostas - e mesmo na criação de uma auto-percepção desses indivíduos em relação ao seu próprio estatuto e ao seu grupo de pertença, essa evolução não foi homogénea, e variou muito de país para país. As bibliografias patentes nos artigos colacionados no presente dossier revelam com clareza esta realidade díspar.

Talvez se possa aventar a hipótese de que, nesta evolução dissemelhante, o papel desempenhado pela pré-existência de bem sucedidos projectos prosopográficos ou repositórios de referências documentais, como é o caso dos Fasti Ecclesiae Anglicanae para Inglaterra e dos Fasti Ecclesiae Gallicanae para França, seja a chave para a compreensão dessa diferente produção historiográfica. Os projectos inglês e francês não estão separados apenas pela geografia ou pela cronologia de produção que os separa, antes foram concebidos em moldes muito diversos e com objectivos, também eles, fundamentalmente diferentes, num caso listas de bispos e dignitários com as respectivas referências documentais exaustivas, noutro reconstituição prosopográfica e enquadramento institucional na diocese.

Parece lógico que, detentora de um tal poderoso mecanismo de busca e recurso de investigação com o potencial dos Fasti Ecclesiae Gallicanae, a França pareça, neste momento protagonizar uma profícua e inovadora investigação de “segunda” e “terceira” geração, sobre o papel destes eclesiásticos, quer ao nível das suas dioceses, quer ao nível da representação junto à monarquia, quer ao nível diplomático. Uma historiografia que alterna entre a análise de percursos individuais e sínteses de conjunto que os dados ao seu dispor permitem.

Os estudos em Inglaterra, com base nos levantamentos documentais, se parecem menos exuberantemente numerosos, não abandonam a já antiga e profícua tradição da observação das carreiras de eclesiásticos - e não eclesiásticos - junto ao poder régio, na corte e na administração, no tesouro, na justiça, na escrita e no aconselhamento espiritual. O papel dos bispos e das dioceses junto à Realeza e como agentes das comunidades políticas acompanha sintetizando, esse esforço. Para a Península Ibérica, a realidade dos estudos sobre estas relações tem-se centrado sobretudo em torno de historiadores que investigam estes homens e estas carreiras no âmbito de trabalho sobre as dioceses, ou no âmbito da biografia de personagens - chave que representam bem o grupo, ou que estudam a realidade política e pactual da realeza medieval e das relações entre poder político e eclesiásticos, com especial enfoque para os séculos mais tardios da Idade Média.

Em Portugal, os anos mais recentes, no rescaldo dos trabalhos do projecto Fasti Ecclesiae Portugaliae[3] e do empenho das diversas gerações que nesse projecto confluíram, e que desde então se têm sentido seduzidas pelo tema, assistem também a uma renovada produção nos mesmos âmbitos, com um crescimento que se poderia apelidar de sensível, muito embora moderado pelo número daqueles que se dedicam a estes temas e pelas hipóteses de poder continuar a trabalhar em investigação depois do doutoramento. Ainda assim, algumas obras de vulto sobre diversos episcopados e micro-biografias sobre clero catedralício, bem como teses de Mestrado e Doutoramento onde as carreiras de eclesiásticos e o seu papel como agentes diplomáticos, jurídicos, culturais e políticos junto à monarquia e em Roma, têm vindo a proliferar, parecem revelar uma renovada apetência, plena de promessa e possibilidade.

O conjunto de artigos que hoje apresentamos à vossa apreciação crítica deriva, como já se disse, da reestruturação dos trabalhos realizados nesse encontro de 2015, mas integra também colaborações de investigadores membros do projecto que não participaram nesse evento ou que nele participaram com outras comunicações. Todas foram profundamente reestruturadas e actualizadas.

Apesar das vicissitudes, o dossier que vos apresentamos, subordinado ao tema “Eclesiásticos na diplomacia, na administração e na legitimação das monarquias medievais: Portugal, Leão e Castela, França e Inglaterra”, título que pretende corresponder ao conteúdo da colectânea, constitui mais um output do projecto que envolveu a equipa de investigadores, os consultores e todos os colegas de outras latitudes que deram a sua contribuição nos nossos encontros e debates. Os artigos presentes nesta compilação alternam entre a revisão da síntese de conjunto e os estudos de caso tendentes a apresentar resultados que questionam realidades há muito tomadas como consensuais, interpelando o leitor a repensar as lógicas de interpretação por vezes reproduzidas sem bases, colocando-lhes novas questões.

O texto de Hermínia Vilar, ao analisar as petições e respostas do clero do tempo de D. Pedro I, tal como ficou patente nas cortes de 1361, acaba por nos colocar, ou recolocar, a questão da relevância do elemento eclesiástico na governança, especialmente num tempo em que as relações entre o rei e o clero estavam tensas e pouco claras. Com a sua análise, reforça não só algumas constatações já levadas a cabo por Armando Luís de Carvalho Homem, mas, recorrendo a dados recolhidos no âmbito do Projecto DEGRUPE de forma mais sistemática que anteriormente, reitera a ideia de que o século XIV assistiu, em determinadas cronologias e conjunturas, neste caso, no reinado de D. Pedro, a um recuo da influência da presença dos eclesiásticos junto à corte régia. Designados como executores ou diplomatas para missões e questões específicas, o seu papel deixa de ser sistémico e passa a ser mais pontual, pautado pela necessidade do momento e não pela centralidade da sua presença como únicos possíveis conselheiros régios. Verificando embora esta realidade, a autora não deixa de constatar, de forma bastante eloquente, como o clero acaba por encontrar formas “alternativas” de participar e beneficiar do favor régio e da proximidade da corte do rei, reencontrando assim um lugar na ordem da res política.

O texto de Armando Luís de Carvalho Homem, investigador do Projecto DEGRUPE, cuja participação não decorreu dentro do marco do encontro de 2015, mas que se integrou neste dossier pela coerência temática óbvia, alerta-nos com especial acuidade para a realidade oposta àquela que Hermínia Vilar tinha identificado para D. Pedro I de Portugal, a saber, a da presença numericamente considerável de eclesiásticos junto a D. João I, quer como juristas e legistas, primeiro, quer como conselheiros régios mais tarde. Descrita por ele como a primeira geração de homens junto ao rei no que ele mesmo qualifica de dernier souffle dos clérigos junto aos monarcas, o autor descreve-nos como esta conjuntura abriu aos eclesiásticos que se encontravam junto de D. João I e integravam o seu controverso Conselho, a possibilidade de um protagonismo activo, num último fulgor, a fazer lembrar o seu peso e influência em séculos anteriores. Mas também nos alerta para as renovações levadas a cabo pelo primeiro rei dos de Avis, no sentido de trazer um conjunto de homens novos para a sua administração e justiça, que no futuro permitiria encarar este tipo de funções como “carreiras” de corte, afastando assim os eclesiásticos da cena política. Neste contexto, o recurso à capacidade legislativa régia como elemento e símbolo de afirmação inquestionável e legitimador da soberania régia, presente já desde o século XIII, mas apenas evidente aos olhos de todos a partir dos séculos XIV e XV, resulta evidente na sua análise conjuntural, que engloba os anos finais de D. João, mas também o período de governação de D. Duarte, que ganha de novo um protagonismo destacado na sua análise.

O estudo prosopográfico do clero que assessorou a construção da legitimidade “internacional” da dinastia de Avis, que o artigo de Néstor Vigil Montes põe em relevo, vem muito na linha do artigo anterior e permite, com uma abordagem minuciosa, reafirmar e confirmar com casos concretos todas as afirmações do artigo que o precede. A sua abordagem dos homens novos de D. João I, entretanto reconfirmada pelas microbiografias publicadas, em 2018, na obra Bispos e Arcebispos de Lisboa, permite-nos olhar para estes homens à luz de uma nova perspectiva. Ao analisar o seu papel na esfera internacional e nas negociações diplomáticas, Néstor Vigil desvenda um mundo mais dinâmico, mais multifacetado, que não pretende já reduzir os eclesiásticos a lógicas unívocas de interpretação, mas que acolhe a ideia de alterações na orgânica deste relacionamento em períodos mais curtos, o que nos permite olhar as diferentes situações à luz de cambiantes raramente equacionadas, ou seja, à luz de mudanças que podem inverter as equações do poder consoante os reinados, as épocas, os contextos históricos, políticos e teóricos. E isto não só de um reinado a outro, mas até mesmo dentro do mesmo reinado.

Estes três artigos permitem e promovem a ideia de que o mundo medieval dos homens de poder e nesse o relacionamento entre os poderes temporais e espirituais, nem é estático nem permanente, nem unívoco. Tem de ser visto à luz das dinâmicas da época e dos contextos específicos em que se desenrola. Não deveremos mais pretender verificar a presença ou ausência continuada de eclesiásticos junto às monarquias nem querer para eles papéis que, uma vez alterados, não possam ser revertidos, ou pretender que neste jogo de influências recíprocas possa haver estabilidade permanente, ou tendências constantes, ou fluindo sempre num ou noutro sentido. A realidade, quando estudada com profundidade, revela-se sempre muito mais complexa do que poderíamos imaginar.

De natureza diferente é o artigo de Francisco Diaz Marcilla, que nesses anos de 2013 a 2015 foi um dos bolseiros do Projecto DEGRUPE. O seu trabalho incide sobre os dados compilados pela equipa de investigação e parte da recolha inserida na base de dados do Projecto DEGRUPE. Disponível para consulta, embora em constante construção e actualização, foi pensada tendo como base os objectivos específicos do projecto, ou seja, os eclesiásticos que encontramos junto à corte e na esfera de influência dos reis peninsulares. E é disso que nos falam as extensas tabelas e listas de nomes com que Francisco Diaz nos brinda. Neste momento, há uma recolha considerável de dados que podemos começar a trabalhar, para podermos olhar com outros olhos o conjunto dos eclesiásticos peninsulares. Os oficiais da administração e da esfera doméstica em Leão e Castela recenseados por este investigador permitem-nos vislumbrar com bastante precisão a riqueza dos dados que a base de dados pode oferecer no que respeita, quer às funções e suas designações, quer àqueles que ocuparam essas funções e cargos. Neste momento, pouco mais temos que as listagens, mas a exploração dos documentos que levantámos sobre todas e cada uma das personagens por ele elencadas revelam um promissor campo de trabalho, onde os estudos de caso poderão alimentar as sínteses mais inovadoras.

Um exemplo diverso do que se pode fazer com uma base de dados prosopográfica bem estruturada e ricamente fornecida é o artigo de Óscar Villarroel, que desde há muito trabalha com clero castelhano na baixa Idade Média e com a sua relação com a monarquia, e que recentemente tem estudado o papel dos eclesiásticos ao serviço da diplomacia régia e dos processos diplomáticos. Num trabalho exaustivo e bem ilustrado, Óscar Villaroel leva-nos pelos meandros da construção e legitimação da monarquia castelhana, pela mão dos eclesiásticos ao serviço dos reis, através do estudo das biografias dos clérigos, mas também dos processos diplomáticos onde eles se envolvem ou são envolvidos. Nesse percurso, atravessamos reinados e conjunturas políticas que mudam de forma sensível a nomenclatura dos cargos e da relevância que eles vão ganhando, assim como as diversas missões diplomáticas formais e as redes de influência informais que esses homens integraram. Os muitos casos e carreiras por ele trabalhados convergem no sentido de nos alertarem para outro elemento relevante neste tipo de abordagem, ou seja, como as conjunturas globais e os conhecimentos pessoais podem permitir e facilitar a ascensão e o protagonismo de indivíduos que por seu lado também se esforçam por conseguir chegar aos lugares onde sabem que podem ter influência e poder.

Thierry Pécout brinda-nos com um impressionante quadro, quer sob o ponto de vista da teorização das relações entre o poder real e os bispos no mundo angevino, de meados do século XIII aos inícios do XIV, no que toca ao papel desempenhado pelos segundos como diplomatas ao serviço do rei, quer sob o ponto de vista da exemplificação que leva a cabo, através de quatro casos paradigmáticos que escolheu de forma cirúrgica, para ilustrar os pontos que pretende realçar.

Começando por esclarecer o que para ele é e deve ser considerado diplomacia e diplomata, nos finais do século XIII e no século XIV, é com pragmatismo que nos fala de como a diplomacia pode estar ligada ao nascimento e desenvolvimento do direito das gentes e do conceito jurídico de paz, mas como ela também é uma necessidade básica de gestão de conflitos e de relações de força entre poderes temporais. Não restam dúvidas quanto à importância dos homens que devem desempenhar este papel de pacificadores e mediadores e da influência que daí lhes advém. Do artigo de Thierry Pécout ressalta com muita força o poder desta combinação de vontade e determinação - ambição pessoal e conjuntura política, ao mesmo tempo que se entende como a monarquia e os sectores eclesiásticos mais influentes beneficiam reciprocamente da entreajuda que se proporcionam. E de quão frágil essas harmonias também podem ser, sujeitas à influência de um elemento externo ou interno, de um mau passo ou uma má palavra, que podem condicionar esse mesmo relacionamento e alterar os pactos não escritos de lealdade e colaboração entre as duas instâncias de poder. Mas o artigo de Thierry Pécout também nos alerta para como o desempenho de cargos importantes nas missões diplomáticas relacionadas com questões do interesse régio também foi utilizado por estes homens como uma forma de notoriedade que, pelo menos em dois dos casos estudados, os conduziram ao cardinalato, sem passar pelo episcopado. Mais uma vez, um artigo muito sugestivo, que nos leva pelo mundo da diplomacia, das ambições pessoais e do não conformismo à aceitação de modelos pré-convencionados, que um estudo menos minucioso desta realidade poderia enganosamente distorcer no sentido da generalização grosseira.

O artigo de Tiago Viúla Faria fecha este dossier, com um estudo biográfico de caso, que analisa, com um extraordinário detalhe, a vida de um clérigo inglês que acompanhou a rainha D. Filipa de Lencastre para Portugal e que aqui viveu e foi seu chanceler privado durante muitos anos. Este artigo fecha de forma singularmente interessante o conjunto de estudos que compõem este dossier, pois o clérigo cujo percurso o autor escolheu como objecto de estudo tem uma vida particularmente relevante, na medida em que, por um lado, se enquadra no paradigma do oficial régio, neste caso chanceler da rainha, mas que, por outro lado, não se adequa ao “nosso” preconcebido paradigma sobre o que deveria ser a carreira de um chanceler da rainha Filipa de Lencastre. Este foi um simples clérigo de uma paróquia pouco notável de Inglaterra, que acaba por ser escolhido pelos Lencastre para acompanhar a futura rainha de Portugal, ascendeu ao cargo de seu chanceler e homem de sua confiança e aparentemente também de D. João I, envolvido em diversos processos diplomáticos, e que acaba por regressar a Inglaterra, aparentemente por vontade própria, onde as suas expectativas eram apenas as de conseguir um benefício modesto que lhe permitisse sustentar-se com dignidade, noutra paróquia decente. Este é um caso que permite colocar de novo em perspectiva muitas das asserções sobre o tipo e formas de poder que a influência junto à realeza pode granjear aos eclesiásticos, sobre o tipo de clérigos que esperamos ver a desempenhar cargos destacados e alegadamente de poder e sobre as ambições que os próprios actores desse relacionamento acalentam. Despertando-nos, de forma ainda mais acutilante, para a necessidade de mantermos sempre em aberto a forma como encaramos esta realidade e a necessidade de continuarmos a entender quão fundamental é não sermos reducionistas quando tentamos construir modelos e esquemas interpretativos para um mundo muito mais plurifacetado do que por vezes aceitamos, sob pena de não nos apercebermos de todas as nuances de um universo humano muito mais rico do que nós conseguimos imaginar.

Todo o dossier, na sua análise deste complexo universo humano sob tão diversas perspectivas, nos convida à já diversas vezes mencionada revisitação das nossas anteriores concepções acerca dos papéis e desempenhos dos agentes e actores deste relacionamento, ao longo da leitura dos sete artigos que o compõem. O estudo aprofundado dos casos que agora vêm a público permite-nos reposicionar e questionar temas e certezas anteriores, que à luz destas multifacetadas mas coerentes abordagens resultam muito mais ricos e potencialmente desafiantes do que antes de os termos podido analisar. Reassegurando-nos que o estudo da História em geral é sempre um campo inesgotável de novas e provisórias observações e hipóteses e o estudo das relações entre os eclesiásticos e o poder real nas suas inúmeras vertentes um campo de estudo inesgotável.

 

Como citar este artigo | How to quote this article:

BRANCO, Maria João; VILAR, Hermínia - “Eclesiásticos na diplomacia, na administração e na legitimação das monarquias medievais: Portugal, Leão e Castela, França e Inglaterra: uma apresentação”. Medievalista 28 (Julho-Dezembro 2020), pp. 23-34 [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em https://medievalista.iem.fcsh.unl.pt.

 

[1] DEGRUPE - A dimensão europeia de um grupo de poder: o clero e a construção política das monarquias ibéricas (XIII-XV) / The european dimension of a group of power: ecclesiastics and the political state building of the iberian monarchies (13th-15th centuries), com referência FCT PTDC/EPH-HIS/4964/2012 financiado por fundos FEDER através do Programa Operacional Factores de Competitividade - COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCTFundação para a Ciência e Tecnologia.

[2] Fasti Ecclesiae Portugaliae: prosopografia do clero catedralício português, 1071-1325, com referência POCTI/HAR/42885/2001, financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia e sedeado no Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR-UCP).

[3] Cuja base de dados ainda não está disponível ao público.

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