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Medievalista

On-line version ISSN 1646-740X

Med_on  no.26 Lisboa Dec. 2019

 

APRESENTAÇÃO DE TESES

As representações do saber. Uma visão dos letrados nas crónicas portuguesas tardomedievais.

Dissertação de Mestrado em História Medieval apresentada na Universidade de Évora, Dezembro de 2018. Orientação da Professora Hermínia Vasconcelos Vilar

José Manuel Simões*

*Escola de Ciências Sociais, Universidade de Évora, 7000-812, Évora, Portugal. zemanuelsimoes@gmail.com


 

Na produção cronística portuguesa tardomedieval, desenvolvida em círculos afetos à cúria régia ou tratando da figura de um ou mais monarcas, a expressão letrado não parece surgir em data anterior ao século XIV. Com origem no vocábulo latino literattus, era já grafada em galaico-português nas cantigas de Estêvão da Guarda no início dessa centúria de trezentos ou, ainda antes, por João Soares Coelho em meados do século XIII.

No ambiente da cronística, onde nos detemos para que não se perca a maleabilidade do objeto, o conceito de letrado seria sobretudo um “epíteto de honra”, um adjetivo aplicado segundo critérios algo obscuros, mas que ainda assim nos permitem identificar traços gerais da sua composição. Evidencia-se, grosso modo, a representação de homens que dominavam a leitura e a escrita, que haviam recebido uma certa educação ou instrução, não necessariamente universitária ou de algum modo formal, mas cuja qualificação remetia para as virtudes de quem frequentava esses contextos. Atribuía-se, desse modo, por antonomásia, mas em nenhuma ocasião o vemos tornar-se um substantivo como aqueles que em alusões próximas serviam para designar os astrólogos ou os físicos. Letrado situar-se-ia antes na categoria dos entendidos, dos conhecedores ou sabedores, e embora fosse também uma heterodesignação distinguia-se de todos estes por se associar a um saber mais epistémico do que técnico. Certo é que o letrado funciona aí como um elemento bifronte, como todos os outros aliás, voltado simultaneamente para a realidade histórica e para a mimetização ficcional, ambas aproveitadas e utilizadas no processo de construção das narrativas pelos cronistas.

O exercício a que nos propusemos foi o de observar as formas de representação desse conceito nos textos, precisando para isso, de olhar os textos nos seus respetivos contextos. Esse processo de “arqueologia” dos discursos implicou ter em atenção vários pontos. Desde logo, compreender que a imagem que nos surge nas crónicas não é um reflexo rigoroso da realidade, mas que as narrativas prolongam grande parte das vezes o que parecem ser as sombras dos tempos e dos espaços dos cronistas. A leitura das representações dos letrados será, por isso, a desconstrução desse chiaroscuro entre o simbólico e o real, da simbologia que lhe está associada, mas igualmente um desenredar da genealogia dos fragmentos que serviram para formar o texto que hoje podemos ler. Por último, será também uma leitura dos contextos socioculturais e político-militares de produção em que as obras se escreveram, uma leitura dos próprios percursos dos seus autores e da sua ligação a todo o cenário em que se movimentavam.

A seleção dos textos procurou formar um grupo satisfatoriamente homogéneo a um nível cronológico e geográfico, mas também ao nível da sua produção e transmissão, e ao mesmo tempo heterogéneo o suficiente para permitir uma elaboração dos focos de análise. Quer a IVª Crónica Breve, quer a Crónica Geral de Espanha de 1344, na sua versão original e na refundição de 1400, a Crónica de Portugal de 1419, ou as três crónicas redigidas por Fernão Lopes - a Crónica de D. Pedro, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João - oferecem-nos um conjunto complexo de perspetivas sobre os temas e os problemas do Ocidente peninsular, a partir das figuras régias e alinhavadas no espaço português entre os anos 40 do século XIV e os últimos anos da mesma década do século XV. Simultaneamente, permitem-nos recuar vários séculos e ver num tempo passado a projeção do tempo em que se escreveram e se difundiram as crónicas.

Dessa forma, pelas próprias características intrínsecas dos textos, uma grande parte dos letrados parece gravitar em redor de diferentes monarcas. Essa proximidade será mais evidente na cronística dos primeiros anos da dinastia de Avis, evidenciando décadas de estruturação do aparelho burocrático e administrativo do reino que levariam a uma maior presença de gentes do saber nos cargos do Desembargo Régio e em que o próprio Estudo Geral, fundado no período dionisiano, ganharia um novo impulso. As pesoas leteradas e sabedores que o cronista de 1419 referia aquando dessa mesma fundação seriam os escolares, mestres e doutores formados ou que aí se formariam e viriam posteriormente a desempenhar muitos dos cargos da administração. Associava-os não apenas a D. Dinis, mas também a D. João e ao próprio D. Duarte, estabelecendo uma ligação simbólica entre esse centro de saber e a nova dinastia. Não eram, em todo o caso, designados como letrados esses reis. Na verdade, uma das exceções no conjunto das crónicas seria Sisebuto, o muy leterado, piadoso, justiçoso e muyto entendudo e sabedor de juízo monarca que conduzira os destinos do reino visigodo entre 612 e 621, como apresentava o refundidor da Crónica de 1344.

Conhecido pela sua devoção religiosa e pela política desembaraçada, mas também pela autoria de alguns textos e pela forte repressão antijudaica, o refundidor atribuía-lhe um conjunto de virtudes que Isidoro de Sevilha e Rodrigo Ximenez de Rada propagandearam e que Afonso X, a sua provável fonte, optara em parte por aligeirar na sua Estoria de España. As interpretações sobre este destaque serão tantas quantas se desejarem. Pensamos poder ver aqui uma parte de um programa ideológico do refundidor para afirmar Sisebuto e as suas políticas como modelares, se não mesmo para o associar a uma personagem régia ou com pretensões ao trono nos finais do século XIV.

Outro caso, bastante peculiar, será aquele de um nobre, Álvar Fáñez, conhecido como Minaya e aparentado de Rodrigo Díaz, o Cid. Referido também pelo refundidor de 1400 da Crónica de Espanha, parece ser incluído entre os outros mui honrrados homẽes e mui leterados enviados por Fernando I de Castela e Leão numa demonstração de força contra o rei de França e o Imperador Henrique III do Sacro Império Romano- Germânico. Embora se trate de uma passagem baseada numa narrativa forjada pelo autor da Crónica de Castilla, não deixava de assinalar a importância concedida à presença de letrados nas ações diplomáticas que visavam obter o apoio do Papa contra o jugo transpirenaico, reforçando assim um discurso que apelava a uma unidade da Hispânia que viria depois a ser praticamente alcançada por Afonso VI de Castela e Leão. Exemplo de um mesmo programa seria a referência à eleição de dom Bernaldo, homen bem leterado e de muy sancta vida, para o lugar de primeiro arcebispo de Toledo após a conquista dessa cidade em 1085. Essa forma de regressar a um espaço que fora simbólica e efetivamente a capital da Hispânia visigótica através de um homem que conjugava em si a fé e o saber transportava também uma ideologia unificadora e agraciava o próprio rei pela sua conquista, tanto militar quanto espiritual.

Também em Fernão Lopes podemos observar a forma como alguns letrados são representados na relação com o rei. Primeiro de forma menos evidente na Crónica de D. Pedro, onde o conceito de letrado praticamente não figura, mas em que burocratas que poderíamos facilmente denominar como intelectuais, homens do saber ou letrados trabalham em prol do seu monarca e colmatam as brechas abertas pelos seus momentos de irracionalidade. A esses homens, de quem poderíamos dizer que seriam a “outra face de Jano”, sucedem na Crónica de D. Fernando outros que agem em contracorrente, procurando a estabilidade de um reinado periclitante e funcionando como a garantia da independência do reino aquando da regência da rainha Leonor Teles. Mais evidente será o papel desempenhado pelos letrados junto de D. João I, no texto homónimo. Vemos aí, de resto, como o cronista apresenta um rei que se faz rodear de homens do saber, fossem-no de facto ou não, e lhes delega a presença em algumas das ações mais significativas. Não só nas garantias de paz com Castela, mas também na legitimação do seu reinado e passando ainda pelas táticas de persuasão para que Nuno Álvares Pereira permanecesse no reino, ele próprio anunciado por hũu gram leterado e mui profumdo astrollogo, que chamavom meestre Thomas.

Mas a representação dos letrados vinculou-se também à fé, que em alguns casos intermediou a sua presença na narrativa, evidenciando-os mais como garantia da espiritualidade do rei do que necessariamente seus agentes. É o caso de Taio, bispo de Saragoça entre 651 e 664, que era homen muy leterado e amava muyto os livros das Sanctas Scripturas e cuja espiritualidade o leva a procurar os livros de Gregório Magno em Roma e trazê-los para a Hispânia, num gesto que evidencia a procura pelas fontes da fé na refundição da Crónica Geral de Espanha. Como será também o caso dos franciscanos que Fernão Lopes coloca estrategicamente em alguns dos momentos-chave da narrativa da Crónica de D. João I. Começando pela pregação que mestre Rodrigo de Simtra, gramde e notavell pregador mui leterado em teholesia, faz após o cerco de Lisboa de 1384, passando pelo sermão que frey Pedro conduz na mesma cidade após a Batalha de Aljubarrota e terminando com a leitura que Rodrigo de Simtra, mais uma vez, faz das cartas enviadas pelo Papa Bonifácio IX acerca da legitimidade do casamento do monarca de Avis com Filipa de Lencastre. Representavam dessa forma a garantia espiritual da Coroa, participando nos atos litúrgicos que sacralizavam a superação das adversidades, as vitórias e a legitimação da linhagem.

Por outro lado, seriam também os letrados a representar em Fernão Lopes a oposição às ações menos cuidadas dos monarcas. Na Crónica de D. Pedro, como já dissemos, afirmam-se não apenas como a face da razão, mas também como a oposição ao casamento do rei com Inês de Castro, parecendo-lhe de todo seer muito contra rrazom, já que dessa união resultariam dois dos pretendentes ao trono que D. João I assumia como seu. Opor-se-iam também, por exemplo, ao posicionamento de D. Fernando durante o Cisma do Ocidente, apelidando o Papa de Roma como homem de boa vida, leterado em teologia e discreto. Nestes e noutros casos eram esses homens quem encarnava o contraditório das situações, posicionando-se a favor ou contra uma determinada ação. Noutros casos, era o facto de determinado indivíduo ser apresentado como letrado aquilo que conferia ao cronista o direito a moralizar, explícita ou implicitamente, sobre o sucedido.

Uma outra dimensão de análise que procurámos estabelecer foi a da formação, no imaginário medieval, de um modelo de letrado ideal. Colocadas num espaço e num tempo construídos a posteriori pelos cronistas, as personagens que convocam medir-se- ão não somente nesse jogo de representações pelas suas ações no plano narrativo, mas também pelas palavras que proferem, pela maneira como quer as ações quer as palavras são adjetivadas e pela forma como as próprias personagens foram qualificadas e distinguidas. Nesse último campo, é interessante notar como determinadas figuras acumularam um conjunto de epítetos, prefigurando um igual número de virtudes que concorreriam para uma distinção social baseada naquilo a que poderíamos chamar a honra letrada ou a honra dos letrados. De entre elas destacavam-se, por serem repetidas um maior número de vezes, a piedade, a caritas, a discrição ou temperança nos gestos e nas atitudes e a prudência (apresentada sobretudo como entendimento, sabedoria e domínio da scientia).

A concentração de um maior número destas virtudes indiciaria a importância relativa de determinada personagem na narrativa ou, numa outra dimensão de análise, uma tendência de apresentar os letrados com base numa imagem até certo ponto idealizada, tomando como ponto de partida relatos anteriores ou mesmo uma ficcionalização retrospetiva que tenderia a imaginar essas qualidades. Podemos imaginar que uma e outra estariam associadas na maior parte das vezes, marcando profundamente a forma como as personagens eram criadas para servir a narrativa, em certas ocasiões, e noutras servirem como figuras exemplares. Os modelos sucedem-se dentro de cada crónica, sugerindo práticas e discursos diferenciados, associando o saber e as virtudes análogas a homens de diferentes categorias sociais e, com isso, introduzindo elementos de leitura na própria cronística.

Tanto na Crónica Geral de Espanha de 1344 como na Crónica de 1419, e mesmo na produção cronística de Fernão Lopes, conseguimos distinguir algumas personagens letradas que parecem encarnar verdadeiramente um modelo letrado. Em traços gerais, são aquelas que mais epítetos recolhem dos cronistas, caso de Julião de Toledo, arcebispo dessa cidade, na refundição da Crónica de 1344 e de João das Regras na cronística de Fernão Lopes. Entre essas duas figuras quase que se esgota a lista de adjetivos utilizados para caracterizar todos os restantes letrados. Funcionam, por isso, como autênticos exemplos destacados entre a multidão, servindo a narrativa e evidenciando - talvez os principais - personagens, temas, relatos, motivações ideológicas ou discursos propagandísticos. Em Fernão Lopes, João das Regras seria o exemplo maior de um letrado ao serviço do rei, garantindo-lhe a legitimidade e o serviço, tal como o próprio cronista faria ao escrever as suas crónicas. Para o refundidor de 1400, por seu lado, Julião de Toledo personificaria, no seu confronto com o Papa, a autoridade daquela arquidiocese e um certo discurso de emancipação face ao poder de Roma, sobretudo numa altura em que a Cristandade se dividia entre duas autoridades papais. Podemos igualmente pensar que a esse discurso estaria subjacente um apelo à unidade hispânica que já o Conde de Barcelos anunciava na crónica original de 1344.

No caso da Crónica de 1419, além disso, encontramos ainda as duas únicas figuras letradas como modelos antagonistas entre si, sem, no entanto, deixarem de representar aquelas funções: um muçulmano que disputará com um dos cinco franciscanos que terão sido martirizados em Marrocos em 1220, frey Bernardo de Carbio, e Gilberto de Hastings, o primeiro bispo de Lisboa após a conquista da cidade em 1147. O mouro sem nome, o qual avyom por muyto bom leterado e santo amtre os mouros, seria no olhar do cronista, a antítese de Gilberto de Hastings: um modelo negativo que, embora letrado, se basearia numa falsa crença e cuja derrota no debate contra o franciscano aguçava a vergonha por não professar a verdadeira fé.

Num último ângulo de análise, conclusivo, mas a que não chamámos propositadamente conclusão por remeter de novo para o início do trabalho, para que o círculo se feche, questionámos se os letrados formariam no país ficcionado, diegético, o país das crónicas, um grupo social diferenciado dos restantes, com atributos específicos e aspetos idiossincráticos. Se, como vimos, as figuras modelares para que olhámos anteriormente tipificavam de algum modo o conjunto dos letrados de cada crónica porque nelas convergiam as suas características e virtudes, podemos então considerar que entre elas coexistia também uma certa unidade. Uma unidade que se desenhava não apenas pela expressão da singularidade dos indivíduos, mas de igual forma pela oposição e pela distinção. Seria essa mesma unidade que levaria Fernão Lopes a inserir os letrados entre os quatro estados do reino, a par dos perllados, fidalgos e cidadãos. Esboçava-se assim a delimitação de um grupo social, ainda que no plano literário, mas refletindo uma hierarquização que possivelmente nunca chegara a ser verdadeiramente tripartida.

 

Como citar este artigo

Referência electrónica:

SIMÕES, José Manuel - “As representações do saber. Uma visão dos letrados nas crónicas portuguesas tardomedievais”. Medievalista 26 (Julho-Dezembro 2019). [Em linha] [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA26/simoes2614.html ISSN 1646-740X.

 

Data recepção do artigo / Received for publication: 6 de março de 2019

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