SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número26Etudes menées sur les sculptures d'Auvergne en bois polychroméRecensão: PELAZ FLORES, Diana - Rituales líquidos. El significado del agua en el ceremonial de la corte de Castilla (ss. XIV-XV) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Med_on  no.26 Lisboa dez. 2019

 

RECENSÃO

Recensão: DESEMBERG, Antoine - L’honneur des universitaires au Moyen Âge: Étude d’imaginaire social. Paris: Presses Universitaires de France (puf), 2015 (389 pp.)

Rui M. Rocha1[*]

1Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 1600-214, Lisboa, Portugal. rrocha@fl.ul.pt


 

No dia 1 de dezembro de 2010, Antoine Destemberg defendia a sua tese de doutoramento na Universidade de Paris - Panthéon-Sorbonne, centrada na história da instituição universitária parisiense no período medieval (entre os séculos XIII e XV). Na obra defendia a formação de um grupo individualizado e autónomo, com uma identidade bem definida, procedendo à descrição e caracterização pormenorizada dos seus elementos constituintes (professores, escolares e oficiais), das relações com os vários poderes (régio, papal e civil) e das vários formas de expressão material e simbólica do Studium Generale, matizando assim um conjunto de estratégias de afirmação do grupo académico. O sucesso e a importância dos resultados de tal investigação para a historiografia do tema, assentes numa metodologia inovadora e interdisciplinar, motivaram a sua publicação em 2015.

Assim, num momento em que a historiografia nacional sobre as universidades atravessa uma revitalização, há muito esperada, ancorada não somente num conjunto de teses de doutoramento - defendidas[1] e em curso[2] - mas também em projetos de investigação científica financiados[3], esta obra vem sistematizar e, acima de tudo, representar o melhor que está a ser feito além-fronteiras sobre a mesma temática. Por esse motivo, a sua recensão é de relevante pertinência pela inserção do objeto de estudo na Christianitas universitária medieval, que permite estabelecer perspetivas comparadas fundamentais.

O autor da obra, ainda bastante jovem, iniciou no ano de 2013 a carreira de docente na Universidade de Artois, no norte de França, onde integrou o departamento de História Medieval. Os seus interesses de investigação residem na história social e cultural, focando-se sobretudo nos intelectuais e na universidade nos últimos séculos da Idade Média. Além da tese de doutoramento, já havia desenvolvido a tese de mestrado em torno do mesmo tema, dessa vez sobre os procuradores da nação inglesa e alemã no Estudo Geral de Paris, entre o fim do século XIV e início do século XV[4]. Desta forma, o autor demonstra um conhecimento profundo do objeto de estudo, a Universidade de Paris, que estudou ao longo de mais de uma década.

Nas palavras do autor - Antoine Destemberg -, a obra em recensão corresponde a uma versão abreviada da sua tese de doutoramento, defendida em 2010 na Universidade de Paris - Panthéon-Sorbonne, perante um júri constituído por grandes vultos da história intelectual europeia - nomeadamente Jean-Philippe Genet e Jacques Verger -, o que por si atesta bem a qualidade da obra. Ainda antes da sua publicação, reforçando a pertinência da opção editorial, a obra foi premiada com o prestigioso galardão Le Monde de investigação universitária (edição de 2011), que distingue anualmente os melhores trabalhos de académicos francófonos, desde que dotados de uma abordagem interdisciplinar.

A obra procura assim, com base num conjunto muito diversificado de fontes, aclarar e elaborar uma história da construção social e definição de um grupo através do domínio cultural do meio em que se inseriam (“faire une histoire de la construction sociale de la domination culturelle”[5]), estudando a instituição de produção e divulgação cultural por excelência - a universidade - na cidade de Paris. A abordagem do autor foca-se na noção de honra (honneur), por ser um conceito operatório de grande relevância para decifrar a formação gradual de uma identidade profissional, atribuída aos mestres, escolares e oficiais da universidade. Com esta fórmula inovadora, que combina as áreas de história, sociologia e antropologia, Destemberg abandona propositadamente o conceito de identidade, evitando assim anacronismos temporais, já que, nas suas próprias palavras, o Homem medieval, mais do que falar de identidade, gosta de falar em honra (“les médiévaux, plutôt que de parler d’identité, parlent volontiers d’honneur”[6]). Em suma, a obra estuda as estratégias desenvolvidas pela comunidade intelectual parisiense para se afirmar enquanto categoria autónoma, não somente a partir da relação com os outros (através de fenómenos de cooperação e concorrência), mas também consigo mesma (com manifestações simbólicas individuais e coletivas de autonomia). O autor, ao inaugurar a obra com a definição de Tomás de Aquino de honra, enquanto recompensa da virtude (“l’honneur comme une récompense de la vertu”[7]), esclarece de forma clara que a tese analisa a semiótica do conceito de honra, que abrange e oscila entre uma noção mais material, de posses, terras e privilégios, e uma noção mais abstrata, ligada ao estatuto, virtude e influência social.

A abordagem interdisciplinar não se resume ao cruzamento das áreas de história, sociologia e antropologia (de influência claramente bourdieusiana, que dá ao trabalho um enquadramento conceptual e lexical), mas também à diversidade de fontes utilizadas, onde reside outro fator de novidade. Deste modo, Destemberg serve-se não somente de fontes institucionais produzidas sob a chancela da própria universidade de Paris (fontes normativas e administrativas), mas também de literatura escolástica, didática e moral; de literatura narrativa, histórica e política; e de fontes judiciais, iconográficas e até arqueológicas.

De facto, da articulação entre a abordagem centrada no conceito de honra e a utilização de fontes textuais, iconográficas e arqueológicas fica bem patente a ideia de um estudo inovador, em contraponto com os estudos precedentes, que ora são tremendamente genéricos, ora são excessivamente focados num aspeto muito concreto, falhando nas análises que cruzam as várias dimensões da história da universidade de forma relevante e interdisciplinar, e não respondendo a algumas questões basilares que agora se colocam. Esta obra responde assim, com sucesso (apesar das limitações que tentaremos expor mais adiante) aos desafios atuais da historiografia.

A versão abreviada em análise foi feita sobretudo em prejuízo dos abundantes exemplos e citações de documentação original, que conferiam à obra primitiva um aparato crítico que não se justificava numa publicação desta natureza. Desta forma, o livro, com a dimensão mais modesta de 389 páginas, sintetiza as ideias expostas na versão original, sem abdicar do rigor científico, e eventualmente tornando o texto mais acessível ao leitor. A obra está organizada em três partes principais, subdivididas num total de doze capítulos, que, por sua vez, se subdividem num número variável de subcapítulos.

Na primeira parte (“Honor et fama: les universitaires dans le système de communication medieval”), dividida em três capítulos, o autor foca a sua atenção na relação entre fama (reputação) e honor (honra) da universidade, ou seja, estabelece um encadeamento lógico entre a forma como os académicos eram percecionados e se relacionavam com as autoridades, e como essa conjuntura se refletia na concessão de privilégios. Para isso estuda a relação com as várias esferas de poder: com o poder régio e papal, tendo sempre como pano de fundo o conceito de honra. Através da análise da concessão de privilégios do papa e do rei (frequentemente numa dimensão concorrencial), Destemberg evidencia a importância e ligação emotiva que estes privilégios acarretavam (enquanto elementos definidores da honra), ao invés de os observar como simples benefícios materiais. O autor analisa ainda o papel do Estudo Geral na cidade de Paris, enquanto espaço físico e simbólico da formação da honra, estudando por exemplo a função da universidade nas entradas e funerais régios, também sintomáticos de uma relação que ia além de uma simples dependência financeira ou económica. Por fim, o autor verifica, através de uma grande diversidade de discursos, uma construção homogénea da imagem dos académicos - tanto nos vícios como qualidades - que conferem uma identidade muito própria e característica ao grupo.

A segunda parte (“De la bona fama à l’honor magistralis: production et expressions d’un honneur communautaire”), dividida em cinco capítulos, estuda a construção de uma identidade académica, ou seja, da honra dos universitários, através de modelos comportamentais fortemente ritualizados - tanto coletivos como individuais - que não só legitimavam internamente como expunham a autonomia do grupo. Esta autonomia e esta identidade não dependiam só das ações enquanto grupo, mas também do comportamento individual de cada membro da corporação. Estes modelos, ou formas de agir, eram transmitidos sucessivamente, estando assegurados por mecanismos de transmissão e reprodução. Por isso, o autor estuda as várias etapas do percurso académico, desde os rituais de iniciação - marcados por uma forte componente de humilhação e difamação (diffamatio) através de insultos e maus-tratos que tendiam a condicionar o jovem escolar (béjaune) e transformá-lo gradualmente num deles - até aos exames, juramentos, cerimónias de graduação e procissões que marcavam a vida de um académico e o fidelizavam à comunidade. Assim, Destemberg fala de “une transformation ritualisée d'un jeune homme sans fama en un maître depositaire de l'honor de son grade et de communauté qui le lui avait conféré”[8], através de um processo de integração altamente complexo e ritualizado.

Por fim, a terceira e última parte (“L’honneur en conflits: la domination de soi et des autres”), dividida em quatro capítulos, realça as relações de conflito e competição entre a universidade e outras autoridades, bem como entre os próprios elementos da comunidade académica. Coloca claramente a cidade como palco de enfrentamentos, por ser um meio capaz de exacerbar fenómenos de violência. Neste ponto, o autor aborda os ataques à honra da universidade, e os mecanismos públicos de defesa e retaliação, dos quais são exemplos as greves. Ademais, com recurso à iconografia, Destemberg demonstra a constituição de uma consciência de grupo, estudando o conflito entre as várias representações visuais, que oscilavam entre representações estereotipadas e representações apologéticas e laudatórias dos universitários. O autor termina o livro com um tema bastante inovador, estabelecendo uma conexão entre o fenómeno da honra universitária e as expressões de masculinidade, visto que a identidade sexual e a carreira intelectual eram construídas simultaneamente. Daqui resultou a continuidade de uma ideia de domínio masculino da sociedade, e uma certa permissividade nas demonstrações ostensivas dessa superioridade de género dentro da esfera académica. No âmbito deste tema, tendo como pretexto o facto de as universidades serem instituições exclusivamente masculinas, Destemberg aborda assim a repressão sexual, o celibato intelectual e o recurso à prostituição.

Entre várias conclusões, o autor termina a obra com uma definição de honra que vale a pena retomar: “une capital symbolique individuelle et collectif, reposant sur la reconnaisance du mérite de la vertu, mérite dont la source peut être naturelle (naissance, sang) ou sociale (la société tout entière ou une autorité reconnue par elle, comme Dieu, le roi, les chef, etc…)”. Assim, Destemberg clarifica finalmente o entendimento de honra enquanto capital simbólico (bem mais do que um simples agregado patrimonial e de privilégios) através do qual um dado grupo social é capaz de demarcar a sua autonomia e posição social. Capital com o qual a universidade se reveste continuadamente através das relações com as autoridades régia e pontifícia, mas também através da construção de um imaginário assente em manifestações e expressões ritualísticas, entre outras.

Num projeto académico global em que a interdisciplinaridade é altamente valorizada, pelo menos num plano teórico, esta obra responde aos anseios de historiadores da universidade, da arte, da sociologia, etc… A diversidade de fontes e a qualidade das abordagens premeiam a obra com uma claridade fora do vulgar e uma organização temática extraordinariamente bem delineada.

De destacar também que a obra oferece ao leitor, dado o recurso inovador a fontes iconográficas nesta temática, um apêndice com um conjunto de imagens e figuras de apoio ao texto. O autor encerra a monografia com a lista de fontes e bibliografia analisadas, e com um extenso índice onomástico e toponímico, facilitando assim a sua consulta. Deste modo, o livro revela algumas preocupações editoriais, das quais decorre uma estrutura bem delineada e organizada da informação.

Evidentemente, a metodologia inovadora (a diversidade de fontes e a abordagem interdisciplinar) e os resultados da investigação tiveram um impacto significativo no panorama internacional. Foi, assim, uma obra globalmente aclamada pela qualidade que revela e por constituir efetivamente um contributo singular para a história das universidades, mais concretamente para o conhecimento da construção da identidade das elites intelectuais e culturais medievais.

No entanto, apesar do carácter inegavelmente inovador, há que chamar a atenção para a complementaridade com o ensaio de Serge Lusignan, intitulado “Vérité garde le roy”: la construction d’une identité universitaire en France (XIIIe-XVe siècle)[9], publicado em 1999 pela Sorbonne, por abordar a mesma temática, no mesmo espaço, durante a mesma cronologia. Contudo, esta abordagem de Lusignan está limitada a uma perspetiva legal e institucional, até pela escolha de fontes, não retirando qualquer originalidade ao estudo em análise, muito mais abrangente.

Finalmente, é fundamental salientar um aspeto menos bem conseguido pelo autor. Referimo-nos ao carácter falacioso do título da obra (L’honneur des universitaires au Moyen Âge. Étude d’imaginaire social), que transmite a ideia enganadora de ser uma análise de abrangência europeia, ao omitir propositadamente o objeto de estudo - a Universidade de Paris. Na verdade, a obra foca-se exclusivamente no caso singular parisiense, inserido num universo complexo e diversificado de mais de uma centena de corporações universitárias, algumas das quais extremamente prestigiadas e profundamente estudadas. Está assim implícito um interesse exclusivo na Universidade de Paris, que o autor vê e estabelece de forma imprudente como modelo identitário para todas as outras instituições homólogas. Esta opção acaba por ser a grande limitação da obra, que, apesar do enorme mérito do autor em conjugar diversas dimensões temáticas, disciplinares, metodológicas e documentais, está condenada a ser um estudo de caso, modelar pela abordagem e não nos resultados.

 

Como citar este artigo

Referência electrónica:

ROCHA, Rui M. - “DESEMBERG, Antoine - L’honneur des universitaires au Moyen Âge: Étude d’imaginaire social. Paris: Presses Universitaires de France (puf), 2015 (389 pp.)”. Medievalista 26 (Julho-Dezembro 2019). [Em linha] [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA26/rocha2609.html ISSN 1646-740X.

 

Data recepção do artigo / Received for publication: 2 de janeiro de 2019

 

NOTAS

[*] Este trabalho é financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional Factores de Competitividade - COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto “OECONOMIA STUDII. Financiamento, gestão e recursos da universidade em Portugal: uma análise comparativa (séculos XIII-XVI)” (PTDC/EPHHIS/3154/2014).

[1] NORTE, Armando - Letrados e cultura letrada em Portugal (sécs. XII-XIII). 2 vols. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2013. Tese de Doutoramento.

[2] Estão em execução as teses de doutoramento, no âmbito do Programa Interuniversitário de Doutoramento em História, de André Leitão (Escolares portugueses na Christianitas (séculos XII-XV): circulação, redes e percursos); de Ana Ferreira (A cidade de Lisboa e a Universidade: o poder da escrita, 1377-1438); de Carlos Alves (A Ordem Natural nas reformas universitárias de Salamanca e Coimbra (1769-1803)); e mais recentemente do autor da recensão (A Reforma Manuelina da Universidade: sociedade política e cultura letrada no Renascimento).

[3] Entre 2007 e 2013, no âmbito do Programa de comemorações do centenário da Universidade de Lisboa (ULis2011), a Reitoria da Universidade financiou o projeto “História da universidade medieval em Lisboa (1288-1537)”. Desde 2016, está em curso o projeto de investigação, financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, intitulado “OECONOMIA STUDII. Financiamento, gestão e recursos da universidade em Portugal: uma análise comparativa (séculos XIII-XVI)” (PTDC/EPHHIS/3154/2014). Mais recentemente, desde 2017, Armando Norte desenvolve o projeto de pós-doutoramento “Debuerit et habuerit. Património, receitas e despesas da universidade portuguesa no período medieval e moderno” (SFRH/BPD/115857/2016), também financiado pela pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

[4] DESTEMBERG, Antoine - «De communi consensu». Les Procureurs de la nation anglaise-allemande de l’Université de Paris (1368-1418). Paris: Universidade de Paris - Panthéon-Sorbonne, 2000 (Tese de Mestrado).

[5] DESTEMBERG, Antoine - L’honneur des universitaires au Moyen Âge. Étude d’imaginaire social. Paris: Presses Universitaires de France (puf), 2015, p. 9.

[6] DESTEMBERG, Antoine - L’honneur des universitaires¼, p. 6.

[7] DESTEMBERG, Antoine - L’honneur des universitaires¼, p. 1.

[8] DESTEMBERG, Antoine - L’honneur des universitaires¼, p. 96.

[9] LUSIGNAN, Serge - “Vérité garde le roy”: la construction d’une identité universitaire en France (XIIIe- XVe siècle). Paris: Publications de la Sorbonne, 1999.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons