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Angiologia e Cirurgia Vascular

versão impressa ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.13 no.1 Lisboa mar. 2017

 

CASO CLÍNICO

Fístula aorto-entérica secundária — uma solução incomum para um caso complexo

Secondary aortoenteric fistula — an uncommon solution for a complex case

Tiago Ferreira 1; Augusto Ministro; Pedro Martins; Ana Evangelista; Mariana Moutinho e José Fernandes e Fernandes

1Clínica Universitária de Cirurgia Vascular; Hospital de Santa Maria – CHLN; Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Centro Académico de Medicina de Lisboa

 

* Autor para correspondência

 

RESUMO

Introdução: A fístula aorto-entérica secundária é uma temível complicação da cirurgia aórtica que comporta uma elevada morbi-mortalidade. O seu tratamento é complexo e em grande parte determinado pela possibilidade de infecção protésica.

Caso clínico: Os autores apresentam o caso de um doente do sexo masculino de 55 anos, com antecedentes de ressecção parcial de aneurisma da aorta abdominal justa-renal e interposição de prótese aorto-aórtica. Aos 3 meses de pós-operatório foi diagnosticado enfarte renal esquerdo durante investigação de quadro de lombalgia persistente. É internado 14 meses após a cirurgia por febre, sudorese nocturna e perda ponderal. Para esclarecimeno do quadro realizou angioTC que revelou densificação dos tecidos peri-aórticos e colecção na vertente anterior do psoas-ilíaco esquerdo. O estudo por PET-scan mostrou foco de hipercaptação ao nível da prótese aórtica, admitindo-se o diagnóstico de infecção protésica.

No mesmo tempo cirúrgico foi submetido a revascularização dos membros inferiores através de bypass axilo-bifemoral, revascularização do rim direito por intermédio de bypass hepato-renal com veia grande safena invertida e remoção da prótese aórtica com laqueação da aorta para-renal. Intra-operatoriamente constatou-se orifício fistuloso na 3ª porção do duodeno, pelo que se procedeu a duodenectomia com gastro-jejunostomia em Y de Roux. Cumpriu três semanas de terapêutica tripla antibiótica e anti-fúngica e uma semana de antibioterapia dupla com melhoria clínica e laboratorial, tendo alta ao 30º dia de internamento. A angioTC de controlo às seis semanas documentou a permeabilidade das revascularizações e a ausência de complicações intra-abdominais.

Conclusão: A cirurgia aberta permanece como a abordagem mais eficaz em doentes de bom risco. A adopção de soluções cirúrgicas alternativas é uma necessidade para fazer face às particularidades anatómicas em casos mais complexos.

Palavras-chave: Fístula aorto-entérica; infecção protésica; bypass axilo-bifemoral; bypass hepato-renal; revascularização renal

 

ABSTRACT

Introduction: Secondary aortoenteric fistula is a fearsome complication of aortic surgery due to its high morbidity and mortality. Therapeutic decision-making is mostly determined by the possibility of concomitant prosthetic infection.

Case report: We present the case of a 55 year old male patient with previous juxta-renal aortic aneurysm resection and tube graft interposition. A left kidney infarction was detected at the third post-operative month during investigation for persistent lumbar pain. The patient was admitted 14 months after the surgery with a four-month history of fever, night sweats and weightloss and. A CT angiogram revealed thickening ofperi-aortic tissues and a fluid collection anteriorly to the left iliopsoas muscle. A PET scan showed increased uptake around the graft, indicating the presence of infection.

The patient underwent axillobifemoral bypass and removal of the infected graft with ligation of the para-renal aorta. Revascularization of the right kidney was achieved via hepatorenal bypass with inverted great saphenous vein. A fistulous tract in the third portion of the duodenum was noted, mandating duodenectomy and Roux-en-Y gastrojejunostomy. The patient completed a three-week course of triple antibiotic and anti-fungal therapy and a further week of double antibiotic therapy, being discharged after 30 days. A CT angiogram at six weeks showed continued patency of the revascularization procedures and no intra-abdominal complications.

Conclusion: Open surgery remains the most effective treatment in good-risk patients. The adoption of alternative solutions is a necessity to cope with the anatomic singularities of more complex cases.

Keywords: Aortoenteric fistula; graft infection; axillobifemoral bypass; hepatorenal bypass; renal revascularization

 

INTRODUÇÃO

A fístula aorto-entérica secundária é uma das mais temidas complicações tardias da cirurgia aórtica convencional, pois apesar de ocorrer em menos de 1% dos casos comporta uma taxa de mortalidade que varia entre os 15 e os 50% e uma taxa de amputação em torno dos 10%[1–3]. A expressão clínica de maior gravidade desta patologia é a hemorragia digestiva; porém mesmo na ausência de uma verdadeira comunicação entre o tubo digestivo e o lúmen aórtico (situação designada por fístula para-protésica), a problemática da infecção protésica está subjacente a toda a decisão e planeamento terapêutico. Neste contexto, a solução mais frequentemente utilizada passa pela remoção da prótese com laqueação do coto aórtico e revascularização dos membros inferiores por via extra-anatómica. Embora seja um procedimento incomum neste contexto, a revascularização visceral pode ser necessária quando se verifiquem complicações infecciosas locais após tratamento cirúrgico de aneurismas de maior complexidade (justaou para-renais).

Os autores apresentam um caso de fístula para-protésica num doente com antecedentes de ressecção de aneurisma da aorta justa-renal que, pelas suas particularidades anatómicas, obrigou à adopção de uma solução inusual para preservação da vascularização renal.

 

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino de 55 anos com antecedentes de tabagismo, úlcera péptica e esplenectomia pós-traumatismo abdominal. Em Fevereiro de 2014 foi submetido electivamente a ressecção parcial de aneurisma degenerativo justa-renal (que se verificou intra-operatoriamente encontrar-se em rotura contida posterior), com interposição de prótese de Dacron em posição aorto-aórtica e reconstrução termino-terminal da veia renal esquerda (Fig. 1). Cerca de três meses após a intervenção desenvolveu quadro de dor lombar persistente, com episódios frequentes de agudização. Na sequência de uma dessas agudizações efectuou TC abdomino-pélvica onde foi visível atrofia do rim esquerdo, o qual apresentava áreas de enfarte (Fig. 2). Aos 14 meses de pós-operatório foi internado por quadro com quatro meses de evolução de astenia, anorexia, febre e sudorese nocturnas e perda ponderal de 10 Kg. Referia igualmente persistência da dor lombar prévia. Analiticamente apresentava leucocitose com neutrofilia e elevação da velocidade de sedimentação, estando a creatinina sérica dentro da normalidade. O ecocardiograma mostrou função sistólica global conservada, sem sinais de endocardite. Realizou angioTC que revelou densificação dos tecidos peri-aórticos (Fig. 3) e colecção na vertente anterior do psoas-ilíaco esquerdo. O estudo por PET-scan mostrou foco de hipercaptação ao nível da prótese aórtica, admitindo-se o diagnóstico de infecção protésica. Como avaliação preliminar foram realizadas hemoculturas e serologias para VIH, hepatite B e C, sífilis, brucelose e Salmonella (todas negativas).

 

 

 

 

 

 

Fístula aorto-entérica secundária — uma solução incomum para um caso complexo

No mesmo tempo operatório foi efectuada a revascularização extra-anatómica dos membros inferiores através de bypass axilo-bifemoral com PTFE 8 mm, a revascularização do rim direito por intermédio de bypass hepato-renal com veia grande safena invertida (Fig. 4) e a remoção da prótese aórtica com laqueação da aorta para-renal. Para o efeito foi necessário proceder a laqueação da veia renal esquerda e clampagem supra-renal. A artéria hepática foi abordada a nível do pequeno epíploon e a artéria renal direita acedida a nível do hilo após manobra de Kocher. Intra-operatoriamente constatou-se a contaminação da prótese com conteúdo entérico proveniente de orifício fistulosona 3ª porção doduodeno(Fig. 5). Comoapoio da Cirurgia Geral procedeu-se a duodenectomia e gastro-jejunostomia em Y de Roux. Após lavagem do leito aórtico este foi colocado sob drenagem passiva e o retroperitoneu encerrado sob o coto aórtico. O pós-operatório não teve intercorrências de relevo, verificando-se remissão da dorlombare ausência de novos picos febris. A creatinina sérica não sofreu alterações e ocorreu normalização dos parâmetros inflamatórios. O exame bacteriológico da parede aórtica e do exsudado peri-protésico foi negativo. De acordo com indicação da Infecciologia, cumpriu duas semanas de terapêutica tripla com meropenem, daptomicina e fluconazol e uma semana adicional de terapêutica antibiótica dupla (meropenem + daptomicina), tendo alta ao 30º dia de internamento.

 

 

 

 

 

Em ambulatório manteve-se apirético e sem dor abdominal ou lombar. A angioTC de controlo às seis semanas de pós-operatório documentou a permeabilidade das revascularizações e a ausência de complicações intra-abdominais (fig. 6 e7).

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

O tratamento de escolha na fístula aorto-entérica secundária está longe de ser consensual, dada a multiplicidade de opções e a elevada morbi-mortalidade que lhes está associada. A classificação proposta por Vollmar e Kogel divide as fístulas aorto-entéricas entre aquelas onde existe uma efectiva comunicação entre o tubo digestivo e o lúmen aórtico (tipo I) e aquelas em que existe perda da integridade da parede do tubo digestivo, sem compromisso da parede vascular ou da prótese, tal como no caso clínico descrito (tipo II oufístulas para-protésicas)[4].

Na ausência de hemorragia digestiva, a contaminação protésica por contacto com o conteúdo entérico é o factor que norteia toda a abordagem terapêutica desta patologia. Decorre desse princípio a noção geralmente aceite de que o tratamento definitivo passa pela remoção do material protésico infectado. A revascularização dos membros inferiores constitui assim o principal ponto de divergência de práticas. A estratégia mais largamente utilizada pela sua rapidez é a revascularização extra-anatómica dos membros inferiores, seguida da remoção da prótese infectada e laqueação do coto aórtico. Uma abordagem faseada, com a revascularização extra-anatómica a preceder a ressecção da prótese infectada em 24–72h, está associada a menor taxa de mortalidade e de amputação[5]. A sua aplicação depende da estabilidade do doente e abre a possibilidade de deterioração clínica no período entre cirurgias. Na presença de um doente jovem e com bom risco cirúrgico, a opção tomada foi a de proceder à revascularização dos membros inferiores e remoção da prótese no mesmo tempo operatório. A principal desvantagem é o risco de reinfecção do material protésico, que pode atingir os 40% aos dois anos[1].

A reconstrução in situ procura atingir no mesmo acto cirúrgico a remoção da prótese infectada e a revascularização aorto-ilíaca directa, obviando a necessidade de laqueação aórtica e o risco de blowout do coto. Clagett descreveu uma forma de reconstrução aorto-ilíaca utilizando a veia femoral[6]. A revascularização imediata dos membros inferiores e a utilização de um conduto autólogo associou-se a taxas de amputação e de reinfecção mais reduzidas. A utilização de material protésico ou a preservação da prótese previamente implantada podem ser consideradas nas seguintes situações: infecções de enxertos de PTFE, pouco extensas e sem envolvimento das anastomoses, com manifestações precoces (inferiores a 4 meses), extra-cavitárias e provocadas por micro-organismos Gram-positivos (por oposição a infecções polimicrobianas ou por micro-organismos Gram-negativos, particularmente Pseudomonas aeruginosa). No caso em apreço, tratando-se de infecção de uma prótese de Dacron com manifestações tardias e conspurcação intra-abdominal por flora previsivelmente polimicrobiana, a revascularização extra-anatómica afigurou-se como a estratégia mais adequada. O desenvolvimento de próteses revestidas por antibiótico pode modificar o paradigma da reconstrução aorto-ilíaca in situ no contexto de infecção protésica.

A realização de um procedimento de revascularização do rim direito foi ditada pela necessidade de laquear com segurança a aorta nativa, uma vez que a anastomose da prótese aorto-aórti-cafora efectuada imediatamente após a emergência das artérias renais. A opção pelo bypass hepato-renal configurou-se como a mais natural dada a impossibilidade de obter influxo a partir da aorta infra-renal e das artérias ilíacas. Esta técnica apresenta resultados satisfatórios no âmbito do tratamento da doença renovascular aterosclerótica, particularmente em doentes de alto risco ou com calcificação aorto-ilíaca extensa[7–9]. Lerussi e colaboradores descreveram a utilização do bypass hepato-renal como procedimento de debranching no tratamento híbrido de um aneurisma juxta-renal[10]. Contudo, não existem na literatura descrições da aplicação desta técnica como adjuvante no tratamento de fístula aorto-entérica ouinfecçãode prótese aórtica.

 

CONCLUSÃO

Em doentes com bom perfil de risco, uma estratégia cirúrgica agressiva envolvendo a remoção da prótese infectada e a revascularização extra-anatómica oferece as melhores hipóteses de tratamento eficaz. Situações de particular complexidade requerem uma abordagem adaptada às especificidades de cada caso e a capacidade de pôr em prática soluções alternativas. A revascularização renal a partir das artérias viscerais é uma opção a ter em conta sempre que haja necessidade de sacrificar a aorta para-renal.

 

BIBLIOGRAFIA

Batt M, Jean-Baptiste E, O'Connor S, et al: Early and late results of contemporary management of 37 secondary aortoenteric fistulae. Eur J Vasc Endovasc Surg 2011; 41:748-57        [ Links ]

Seeger JM, Back MR, Albright JL, et al: Influence of patient characteristics and treatment options on outcome of patients with prosthetic aortic graft infection. Ann Vasc Surg 1999; 13:413        [ Links ]

 

*Autor para correspondência

Correio eletrónico: tiagojpferreira@gmail.com (T. Ferreira).

 

Recebido a 07 de junho de 2016;

Aceite a 11 de dezembro de 2016.

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