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Observatorio (OBS*)

versión On-line ISSN 1646-5954

OBS* vol.14 no.1 Lisboa mar. 2020

https://doi.org/10.15847/obsOBS14120201447 

Imaginar Angola: o nascimento de uma nação no cinema

 

Imagining Angola: the birth of a nation on cinema

 

 

Maria do Carmo Piçarra*

*Universidade Autónoma, Lisboa, Portugal

 

 

RESUMO

Quarenta anos após a independência de Angola e de um investimento inicial que visou pôr o cinema ao serviço de um programa político e cultural nacional, existe uma cinematografia angolana? Entre aqueles que julgam que sim está José Mena Abrantes, que, em Angola, o nascimento de uma nação. Vol. 3 O cinema da independência, intitulou o capítulo de sua autoria "Cinema angolano. Um passado com o futuro sempre adiado". Mas se a memória do cinema dos pioneiros, que nasceu, com a nação, a partir de uma política cultural desenhada por Luandino Vieira, e a arrancada do início do milénio continuam a fazer acreditar num futuro para esta cinematografia, o autodesignado "cinema da poeira" – ou "cinema do gueto" –, que tem Nollywood como modelo, pode agora ser pensado como a forma de expressão dominante quanto à produção de filmes em Angola?

Palavras-chave: Cinema Angolano, política cultural, "cinema da poeira", Luandino Vieira, Ruy Duarte de Carvalho

 

ABSTRACT

Forty years after Angola's independence and an initial investment aimed at putting cinema at the service of a national political and cultural program, is there an Angolan cinematography? Among those who think that José Mena Abrantes is, that, in Angola, o nascimento de uma nação. Vol. 3 O cinema da independência, entitled the chapter of its authorship "Angolan cinema. A past with the forever postponed future ". But if the memory of the cinema of the pioneers, who was born, with the nation, from a cultural policy designed by Luandino Vieira, and the start of the millennium continue to make believe in a future for this cinematography, the self-appointed "cinema da poeira [dust cinema] "- or "ghetto cinema"- which has Nollywood as a model, can now be thought of as the dominant form of expression for film production in Angola?

Keywords: Angolan Cinema, Cultural policie, "dust cinema"; Luandino Vieira, Ruy Duarte de Carvalho

 

 

Introdução

Quarenta anos após a independência de Angola e de um investimento inicial que visou pôr o cinema ao serviço de um programa político e cultural nacional, existe uma cinematografia angolana? Entre aqueles que julgam que sim está José Mena Abrantes, que, em Angola, o nascimento de uma nação. Vol. 3 O cinema da independência, intitulou o capítulo de sua autoria "Cinema angolano. Um passado com o futuro sempre adiado". Mas se a memória do cinema dos pioneiros, que nasceu, com a nação, a partir de uma política cultural desenhada por Luandino Vieira, e a arrancada do início do milénio continuam a fazer acreditar num futuro para esta cinematografia, o autodesignado "cinema da poeira" – ou "cinema do gueto" –, que tem Nollywood como modelo, pode agora ser pensado como a forma de expressão dominante quanto à produção de filmes em Angola?

No presente possível - com os "filmes da poeira" e algumas obras, isoladas, de autor, que não bastam para poder falar-se da existência de uma cinematografia angolana - surgiu um projecto em que a necessidade de resgatar a memória da independência se encontra com a vontade de cinema, enquadrada, senão numa certa militância, ao menos numa genealogia do cinema como um "cinema de urgência" - uma expressão usada por Ruy Duarte de Carvalho para caracterizar o seu modo de fazer cinema após a independência, referindo-se então à necessidade de documentar o nascimento da nação -, capaz de criar espaço público.

O projecto Angola – Nos trilhos da independência, iniciativa da Associação Tchiweka de Documentação em colaboração com a produtora Geração 80, assume que "pretende contribuir para uma pesquisa abrangente, que permita o registo de testemunhos no mosaico do movimento nacionalista". Visa registar e preservar testemunhos daqueles que lutaram pela independência de Angola, pois, e que ainda podem partilhar essa memória, de modo a que a História seja feita a partir de todos os relatos possíveis ainda disponíveis – e que seja também uma "história dos vencidos" no sentido que Benjamin (1992) deu a esta designação - e não só daqueles que conquistaram o poder e acederam aos meios dominantes para contar a história. O general Paulo Lara, além do produtor Jorge Cohen, a directora de fotografia Kamy Lara, e o realizador Mário Bastos, estes últimos membros da produtora Geração 80, constituíram a equipa que, por toda a Angola, mas também em Moçambique, criou este arquivo da memória que apresentou o primeiro filme em Novembro de 2015, no quadragésimo aniversário da independência de Angola.

 

O nascimento filmado de Angola

Ainda antes da proclamação da Independência, a 11 de Novembro, iniciou-se em Luanda a formação de técnicos de cinema de modo a suprir o abandono do território pelos portugueses. O ambiente era de esperança e de grande entusiasmo criativo e o cinema cumpria um papel na definição e projecção da alma angolana. Recém-nascido, o seu surgimento apoiara-se na criação, em 1969, e pelo Departamento de Informação e Propaganda do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de um núcleo de produção cinematográfica, que investiu predominantemente no registo documental das operações militares e na organização da vida quotidiana.

Os filmes feitos – incluindo a longa-metragem de Sarah Maldoror (n. 1938) [1], filmada no exterior, Sambizanga (1972), resultante da adaptação de A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961) de Luandino Vieira (n. 1935), mas também outras, mais panfletárias, como La vittoria è certa, de Lionello Massobrio [2] –, contribuíram para dar a conhecer internacionalmente a existência de um movimento de libertação com meios para, através do cinema, contar a história da luta e fixar as condições de vida nos territórios libertados do colonialismo português.

Em meados de 1975, a cooperativa Promocine e a ainda inactiva televisão, deixada quase pronta a funcionar pela administração colonial, chamam a si os interessados em fazer televisão e cinema, aos quais se juntam os membros da equipa Angola Ano-Zero, constituída logo no início de 1975. [3] Ministram-se cursos intensivos de imagem, som e laboratório. Na novíssima Televisão Popular de Angola (TPA) as equipas recebem formação dada por três franceses da Unicité – ligados aos grupos Medvedkine [4] e colaboradores habituais de Jean-Luc Godard, Jean Rouch e Chris Marker –, o director de fotografia Bruno Muel, o engenheiro de som Antoine Bonfanti (1923-2006) e o jornalista Marcel Trillat (n. 1940), em Angola a convite de Luandino Vieira. [5] Os formandos assistem também às filmagens da longa-metragem que Muel realiza para o Partido Comunista Francês, Guerre du peuple en Angola (1975) [6], no qual Luandino Vieira serve de "cicerone" enquadrando o contexto político e social de então. [7] Em Junho e Julho realizam também "dez inquéritos filmados" sobre o trabalho em Angola, reunidos sob o título Sou angolano, trabalho com força. Ruy Duarte de Carvalho, que nessa altura concorre para tornar-se quadro da TPA e que tem mais formação do que os companheiros, assegura a realização de metade dos títulos resultantes (e cujo paradeiro é desconhecido): Ferroviários do caminho de ferro de Benguela, Gráficos, Operários têxteis I e II e Padeiros.

Serão, pois, aqueles formados por Promocine, TPA e Equipa Ano Zero a assinar os primeiros filmes pós-independência. Em 1976/77 haverá nova formação dada por uma equipa do Instituto Cubano de Rádio e Televisão (ICRT). Mena Abrantes (2015: 17) considera que "Do mesmo modo que o foram Carlos Sousa e Costa na Promocine, António Ole e Ruy Duarte na TPA, Francisco Henriques na equipa Ano Zero, Asdrúbal Rebelo (n. 1953) é o realizador mais destacado desse novo grupo". Até 1985 serão eles a contribuir para o projecto de criação de uma cinematografia angolana.

Neste contexto, Ruy Duarte de Carvalho filma, para exibição pela TPA, um documento que fixa as expectativas e tensões nos 15 dias que antecedem a independência, a 11 de Novembro: Uma festa para viver. Encerra com uma sequência simbólica: o primeiro hastear oficial da bandeira angolana sobre a bandeira portuguesa, entretanto arriada.

Se, à época, o cinema era sobretudo político e a câmara – e os olhares através dela – projectava imagens de esperança num futuro nacional partilhado, Geração 50, também de Ruy Duarte de Carvalho, é precursor, em termos de documentários culturais, de uma linha cinematográfica que António Ole (n. 1951) desenvolverá, com talento em Carnaval da vitória (1978) e O ritmo dos Ngola Ritmos (1978), homenagem  ao grupo musical exemplo de resistência cultural. [8] Tendo como foco a poesia de Agostinho Neto (1922-79), de António Jacinto (1924-91) e de Viriato da Cruz, surge, pois, como um interlúdio mais "poético", embora nunca desenquadrado da luta política.

Além desta incursão no documentário cultural, que emerge quase isolado no recurso dominante ao "cinema directo", Duarte de Carvalho ensaia a primeira experiência ficcional. Com produção da TPA, Faz lá coragem, camarada (1976, 120') – ou a A noite dos cem dias, título alternativo – é uma ficção de reconstituição, com actores não profissionais, das dificuldades vividas pela população e por um grupo de militantes do MPLA durante a ocupação de Benguela pelas forças da UNITA e do exército sul-africano.

 

Re-imaginar a angolanidade

Em Fevereiro de 1976, uma equipa da TPA dirigida por Ruy Duarte de Carvalho parte de Luanda rumo ao sul. O propósito é registar a realidade do país após a retirada do exército sul-africano. O cineasta quer participar na definição da linguagem e identidade do que caracteriza como "cinematografia de urgência". A necessidade e a vontade de mergulhar atrás das tropas angolanas que vão retomando o controle de um território marcado pela destruição mas "fremente de excitação" é que impõem a urgência:

Estávamos perante a evidência explícita do nascimento de um novo país africano, de uma consciência nacional alargada pela independência a toda a extensão de um território ainda ontem dividido num considerável número de ex-nações [...] (2008: 389).

A experiência ficcional Faz lá coragem, camarada (1977) enquadra-se neste projecto assim como Angola 76, é a vez da voz do povo? (1976), que inclui três documentários, com 100 minutos de duração total. Sacode o pó da batalha (40') foi filmado logo em Fevereiro mostrando as dificuldades da reconstrução à medida que se retiram as tropas invasoras sul-africanas. Como foi, como não foi (20') é a reconstituição, feita a partir de relatos de velhos camponeses de Balaia, no Kwanza Sul, das duríssimas condições de vida durante o colonialismo. Está tudo sentado no chão (40') fixa as dificuldades de integração dos pastores nómadas do Sudoeste de Angola, os kuvale (ou mucubais), no processo revolucionário em curso. Da vontade de fixar e conhecer as especificidades culturais kuvale surge, à parte da trilogia, O deserto e os mucubais (20'), em que o realizador traduz, em imagens poéticas, o seu interesse pelos pastores do deserto.

O ritmo intenso da filmagem e a urgência na montagem não foram impedimento à reflexão, por Ruy Duarte de Carvalho, sobre a natureza do cinema que estava a dirigir. Foi à antropologia que recorreu para um conhecimento mais profundo da realidade filmada e reactivada na mesa de montagem. Porém, desenvolveu um modo de trabalhar valorizador do contributo das populações no processo criativo:

Para as populações em causa nós aparecíamos como enviados do governo, o que em si mesmo não era um facto inédito. O regime colonial também enviara fotógrafos e até cineastas interessados em recolher imagens mais ou menos folclóricas, de acordo com os interesses e o carácter do regime. A compensação era efectuada monetariamente, com maior ou menos generosidade, e a passagem desses profissionais da imagem não deixava traços de maior: partiam com o seu material e nunca mais voltavam, nem eles nem o material (2008: 439).

Na descrição de Carvalho (2008: 439), publicada em A câmara, a escrita e a coisa dita, o contraste entre a prática colonialista e a da equipa da TPA impôs-se, não obstante a surpresa inicial das populações filmadas. Ficou claro que seria estabelecido um outro tipo de relação. A compensação ficava dependente do bom termo do projecto, que previa a realização e projecção de filmes reveladores dos modos de vida, cultura, problemas e posições dos mumuíla no presente angolano.

Ao princípio, a resposta foi seca. Reserva, ironia e indiferença, foram as reacções iniciais. As novas práticas é que forjaram a mudança de atitude - não se tratava, como antes, de filmar corpos e objectos. O que se pretendia filmar diferia, tematicamente, do que fora visado pela óptica colonial. "Logo desde o início foi dado grande destaque à palavra e ao testemunho, o que em si mesmo constituía um procedimento inédito" (2008: 439). A surpresa aumentou à medida que se foi projectando o material previamente captado, de modo a prosseguir o filme em função do que a projecção à população sugeria e a actualidade mumuíla então determinava. Para a população terão ficado demonstrados o investimento do Estado e o empenho da equipa de cinema.

Em 1979, Duarte de Carvalho regressa ao sul, centrando-se na filmagem de zonas rurais. A série filmada, "Presente angolano: tempo mumuíla", com uma duração de cerca de seis horas, dispõe títulos com uma duração entre os 20 e os 60 minutos, muitos dos quais com fotografia de Victor Henriques e mistura de som de Antoine Bonfanti.

A Huíla e os mumuílas (18'55''), Lua da seca menor (59'13''), Ofícios (28'41''), Kimbanda (20'34''), Pedra sozinha não sustém panela (36'), O kimbanda Kambia (40'), Makumukas (28'), Hayndongo: o valor de um homem (44'54''), Ekwenge (24') e Ondyelwa: festa do boi sagrado (42') [9] foram apresentados como uma fixação do presente dos mumuíla. Mas o autor assume esta série também como uma reflexão sobre o equilíbrio entre o homem e o meio bem como sobre o equilíbrio, frágil, entre o progresso e a cultura. É esta a série que mais obviamente – e não obstante alguns filmes isolados anteriores – remete para o enquadramento dos títulos resultantes como "cinema etnográfico". [10]

Um texto escrito por Ruy Duarte de Carvalho integra sinteticamente os vários filmes numa abordagem comum, global, ao presente dos mumuíla no novo contexto da nação angolana:

Tyongolola, chefe de linhagem, cuja mãe é viva ainda e terá sido testemunha da instalação dos primeiros brancos na região, preside aos funerais de um sobrinho morto por acidente nas obras da construção de uma barragem que se constrói a 20 km de sua casa.

Entre a sede do antigo reino do Jau, onde todos os anos se cumpre ainda a cerimónia de encerramento do cortejo do boi sagrado, manifestação ritual que envolve toda a população do reino e pressupõe a cessação de qualquer actividade económica durante um período de dois meses, e a Universidade do Lubango, onde as novas gerações (futuros dirigentes, saídos alguns também desse mesmo antigo reino) são iniciadas nos termos de uma actuação adaptada aos imperativos de um modelo de desenvolvimento que se quer industrial, distam apenas 40 km.

Que pensam, uns dos outros, do lugar que ocupam no mundo e do próprio mundo que ocupam aqueles que, perante a câmara, são chamados a depor?

É, pois, este pensamento que o olhar (e a câmara) de Ruy Duarte de Carvalho – que, após esta série, realizará ainda Balanço do tempo na cena de Angola e a longa-metragem de ficção, Nelisita (1982) - quer reter.

Entretanto António Ole, para além dos documentários sociais e políticos (Ferroviários do caminho de ferro de Malanje, Aprender para melhor servir, Resistência popular em Benguela), enveredara pelo documentário cultural com FESTAC (1977), Carnaval da vitória, O ritmo do Ngola Ritmos (1978) e No caminho das estrelas (1980), que fixa a homenagem de figuras populares ou eruditas da cultura angolana ao primeiro presidente, Agostinho Neto. Antes de viajar para Los Angeles, onde veio a diplomar-se como realizador de cinema no American Film Institute, filmou ainda o documentário Conceição Tchiambula – Um dia, uma vida (1982), obra sobre uma camponesa que se vê obrigada a migrar, abandonando a sua região, para sobreviver.

Francisco Henriques, ligado ao grupo Angola – Ano Zero, enveredara por um cinema assumidamente político, relativo à defesa e segurança do país, assinando títulos como Ponto da situação, O golpe, Nova vida, Viva o 4 de Fevereiro, Adeus à hora da partida, e Cerimónias fúnebres.

Já Asdrúbal Rebelo segue a via do documentário social interessando-se pelos problemas infanto-juvenis em obras como Velhos tempos – Novos tempos, A luta continua, Nascidos na luta, Vivendo na vitória, O balão, Filhos da rua e Vento de esperança.

Orlando Fortunato (1946) é outro dos pioneiros a manter-se activo cinematograficamente. Depois de filmar, em 1978, Um caso nosso, estudou cinema na London International Film School, após o que realizou vários documentários. Entre eles conta-se Memória de um dia (1982), relativo ao massacre de Icolo e Bengo, perpetrado pela polícia portuguesa em 1960 e tendo como alvo uma manifestação pacífica de protesto, na sequência da prisão de Agostinho Neto. Já no período do "impasse", assim designado por Mena Abrantes e a que aludo de seguida, veio a estrear-se na realização de longas-metragens de ficção com O comboio da canhoca (2004), cuja acção se passa também durante o colonialismo, e que se notabilizou pelo longo processo de produção que Fortunato ultrapassou com obstinação.

 

Impasse no cinema em tempo de guerra

Depois de 1985 a produção de cinema entrou num impasse, criativo e produtivo, que se prolongou até ao final do milénio e que foi atribuído oficialmente a "razões conjunturais". A guerra e a decorrente indisponibilidade financeira foram motivos avançados para o desinvestimento no cinema. Profundo conhecedor da realidade local, Mena Abrantes diz, porém, que:

As soluções mais criativas (designadamente a "ginástica" financeira que muitos outros sectores adoptaram) teriam impedido ou atenuado o abandono de quadros nacionais e estrangeiros de reconhecida competência e dedicação e poderiam favorecer também a busca de contactos no exterior para se continuarem a fazer filmes em regime de co-produção. (2015: 27)

A produção cinematográfica estagnou quase completamente, muitos dos mais talentosos e qualificados profissionais do cinema e audiovisual abandonaram o sector ou tentaram prosseguir o percurso fora do país. Ruy Duarte de Carvalho foi fazer a segunda longa-metragem, Moia – o recado das ilhas (1989), a Cabo Verde – para onde já emigrara Asdrúbal Rebelo que, depois de concluído Levanta, voa e vamos (1986), aí realiza a série Ilha a ilha e Escrever a vida (1990).

Em 1999, no âmbito de uma remodelação do aparelho estatal, estruturas como o Instituto Angolano de Cinema (IAC) e o Laboratório Nacional de Cinema (LNC) foram extintas.

Não obstante as adversidades, porém, o cinema deu sempre sinais de querer resistir. Fora do país, alguns angolanos da geração posterior à dos pioneiros perseveraram em fazer filmes. Entre os cineastas "auto-exilados" destaque-se Mariano Bartolomeu (n.1967) que, após formação na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Havana, se radicou em Itália, onde assinou vários documentários e curtas; Zezé Gamboa (n.1955), que, tendo assegurado funções como técnico de som no cinema pós-independência, se impôs como realizador fora de Angola, em França e Portugal, na década de 90; ou Maria Esperança "Pocas" Pascoal (n.1963). Antiga operadora de câmara da TPA, Pocas Pascoal forma-se em montagem no Conservatoire Libre du Cinéma Français, realizando várias curtas-metragens e documentários antes de assinar, em 2011, a primeira longa-metragem de ficção, Por aqui tudo bem, inspirada no exílio de Pocas em Portugal.

Mantiveram-se algumas co-produções destacando-se a co-produção com Cuba, Caravana (1992) de Rogélio Paris, e a primeira entre Portugal e Angola, assinada pelo português Jorge António (1966) que, com O miradouro da Lua (1992), se estreia na realização de longas-metragens. A este propósito, António fez um depoimento que esclarece como se processava então a produção de filmes em Angola:

De cada vez que voltávamos a Angola a realidade era diferente. Mas a verdade é que, apesar de todas as circunstâncias adversas, na altura existiam estruturas como a Cinemateca, o Laboratório de Cinema, o Instituto Nacional de Cinema. No Laboratório, por exemplo, trabalhavam técnicos que vinham da televisão e das formações do boom do cinema no pós-independência e havia algum material funcional e disponível. E os directores e vice-directores que estavam à frente dessas instituições eram pessoas competentes, com um sentido de responsabilidade e um orgulho pelo que estavam a representar e fazer. Foi fácil trabalhar e ficar amigo de pessoas como o Bito Pacheco, o Manuel Mariano, o Lourenço Roque, a Manuela Arcanjo, o Bilito, o Domingos Magalhães. E o filme tornou-se efectivamente a primeira co-produção entre os dois países porque Angola fez questão de assumir compromissos na produção do projecto: material e técnicos, pagamento a actores e figurantes locais, polícia, décors, catering, tanta coisa. E, pelo meio, o filme fez-se com tantas histórias, aventuras, dificuldades. Mas é isso que o faz ainda hoje ser falado. Acabou por tornar-se um filme mítico. (Piçarra, 2015: 156)

Ole, regressado de Los Angeles, assinara, entretanto, um dos últimos títulos da sua filmografia, Sonangol: Dez anos mais forte (1987). Neste panorama caracterizado pela rarefacção da actividade e pela forte migração de autores, a fixação do português Jorge António em Luanda, o regresso de Ole a Angola, a obstinação em filmar do pioneiro Orlando Fortunato – além de A herança e A festa da ilha (1985), realiza Kilamba, o poeta guerrilheiro (2000), documentário sobre Agostinho Neto, enquanto vai mantendo o projecto, que só virá a estrear em Angola em 2004, O comboio da canhoca –, são sinais de uma ligeira revitalização a que os prémios conquistados por vários dos realizadores da nova "arrancada" darão sequência.

 

Alento e, de novo, futuro adiado

O início do novo milénio e uma nova "arrancada" do cinema em Angola são coincidentes. Em 2002, talvez para aligeirar os efeitos da então recente extinção do IAC e do LNC, o governo atribui um apoio de um milhão de dólares americanos ao sector cinematográfico, do qual os principais beneficiários são Orlando Fortunato, Maria João Ganga (n. 1964) e Zezé Gamboa. Tal apoio será determinante para Fortunato terminar O comboio da canhoca; para que Maria João Ganga, com formação em cinema feita em Paris e, após ser assistente de direcção em documentários como Rostov-Luanda (1998), de Abderrahmane Sissako, se estreie como a primeira realizadora angolana com Na cidade vazia; e para que Zezé Gamboa, no regresso do seu "exílio", dirija O herói.

A estreia, em 2004, dos três títulos foi um marco na projecção, interna e externa, do cinema feito em Angola. Os prémios acumulados pelos filmes criaram a esperança de uma nova alvorada para a cinematografia angolana.

Comboio da Canhoca, o único que, à época, teve estreia em Angola apenas - retrata a brutalidade da polícia política portuguesa através da história de Njololo, um empregado de limpeza, cuja mulher é violada pelo Cabo Faria. Ao revoltar-se, Njololo será disciplinado pela PIDE, recém-chegada a Malange, onde, em 1957, se desenrola a intriga. Porém, a acção da polícia extravasa o propósito de disciplinar o revoltado - 59 homens que gozam de prestígio localmente são presos e enviados, em condições desumanas, de comboio para Luanda.

Filme que assinala, no grande ecrã, o fim da guerra civil, Na cidade vazia dramatiza a história de um grupo de órfãos de guerra que viajam para Luanda na companhia de uma freira. Aí chegados, um deles, N'dala, escapa-se para conhecer a cidade onde se amontoam os escombros, testemunhos-monumento sem dignidade de uma guerra fratricida. N'Dala fantasia com o regresso, impossível, à casa e à vida familiar perdidas. Porém, na cidade vazia, crepuscular, cemitério de ilusões revolucionárias, N'Dala tem encontros tão perigosos quanto fascinantes.   

Estreia na longa-metragem de ficção de um técnico pioneiro do cinema angolano pós-independência, Zezé Gamboa, O herói alcançou notoriedade em festivais de prestígio como o de Sundance onde ganhou o Grande Prémio do Júri. Nas palavras do realizador: [11]

O herói é uma história inspirada numa fotografia que a agência Reuters faz de um mutilado de guerra, deitado numa rua de Luanda com uma prótese ao lado, e é a partir daí que nasce o filme. Esta imagem traz-nos uma realidade que é comum numa Luanda pós-colonial. Houve uma guerra civil muito violenta, que durou até 2002, e que deixou marcas profundas na sociedade angolana. Partimos dessa ideia para mostrar como era a vida socialmente e as dificuldades que as pessoas poderiam ter, no caso dos jovens que eram obrigados a ir para a guerra. Muitos deles ficaram mutilados, outros morreram e eu quis fazer esta história.

Como a obra de Ganga, o filme de Gamboa aborda as cicatrizes deixadas pela guerra civil através do drama do Sargento Vitório, a quem foi amputada uma perna após ter pisado uma mina, que voltará à vida civil carregando esta e outras marcas deixadas pela guerra. O Herói fixa ainda a história de um órfão que procura o pai, desaparecido, e que partiu para a guerra quando ele era ainda muito pequeno. O filme configura-se, pois, como uma metáfora da sociedade angolana após a independência, com cicatrizes profundas que mostram o país como um paraíso perdido, cujo futuro está inevitavelmente ensombrado pela perda.

Ainda antes da estreia desta tríade, em 2003, fôra criado o Instituto Angolano de Cinema, Audiovisuais e Multimédia (IACAM), traçando-se então um plano para a recuperação, restauro e conservação do acervo fílmico de Angola, através da redinamização da Cinemateca Nacional. Procurou-se ainda estimular a actividade da Edecine, uma distribuidora de filmes.

É também relevante, nesta fase, a realização, em Julho de 2005, do I Encontro Nacional de Cinema, Audiovisual e Multimédia, em que é feito um diagnóstico rigoroso do contexto da produção, distribuição, exibição e conservação de cinema no país, reconhecendo-se o seu colapso, de montante a jusante. Deste encontro surgem promessas de investimento na formação e no fomento de parcerias público-privadas para incentivar a produção, além daquelas relativas à regulamentação da actividade do IACAM e Cinemateca Nacional e à aprovação de uma Lei do Cinema e do Audiovisual.

Após 2006 verificou-se, de facto, um aumento de filmes produzidos, fruto da iniciativa privada e não de uma política estatal para o sector. Acordos institucionais com o Brasil e Cuba foram firmados no sentido da recuperação do acervo fílmico e de reforçar a formação. O IACAM fomentou encontros, ciclos e debates sobre cinema e organizou formação através do acolhimento de eventos como, em 2007, o Programa de Formação para Jovens Cineastas na Área do Documentário, AFRICADOC.

É por essa altura que nasce – o Festival de Cinema e Vídeo Amador terá sido um dos motores - e vai ganhando lastro um movimento de "cinema da periferia". O dinamismo do início do milénio não teve, no entanto, continuidade.

 

Internacionalização dos autores e o sonho de uma "Angollywood"

Sem que haja um apoio institucional sustentado capaz de manter consistentemente uma cinematografia, o cenário contemporâneo é dominado pela iniciativa de realizadores com diferentes opções estéticas.

Na linha do cinema com raízes naquele dos pioneiros perfilam-se os realizadores que tiveram que estudar no exterior mas assinam hoje filmes com projecção internacional. Essa projecção internacional – via festivais de cinema mas também circuito comercial – é, aliás, mais viável do que a projecção no próprio país onde a distribuição de filmes é praticamente inexistente. [12] Neste âmbito, destaque-se a estreia, nos últimos anos, das longas-metragens de ficção O grande Kilapy (2013), de Zezé Gamboa, co-produzido com dinheiro europeu, e a da já mencionada Por aqui tudo bem, de Pocas Pascoal. Na área do cinema documental, saliente-se a estreia do documentário Tango negro, as raízes africanas do tango (2013), do realizador de origem angolana Dom Pedro, marcado pelo encontro deste com o músico Juan Carlos Cáceres, e resultado de um processo de produção que demorou dez anos, além do último trabalho do norte-americano de origem angolana Jeremy Xido, The Angola project, Road movie que fixa a reconstrução do caminho de ferro de Benguela por chineses. Destaque ainda para a trilogia da música, assinada por Jorge António, que foi iniciada com Angola – Histórias da música popular (2005), seguindo-se o grande sucesso Kuduro – Fogo no musseke (2008), e O lendário Tio Liceu e os Ngola Ritmos (2010).

Noutra linha, alternativa à do cinema dos pioneiros, desenvolve-se hoje uma produção de filmes – com títulos como Assaltos em Luanda (Henrique Narciso "Dito", 2007), Assaltos em Luanda 2 (Henrique Narciso "Dito", 2008), Resgate (Mawete Paciência, 2010) ou Rastos de sangue (Mawete Paciência, 2015) -, que está a tornar-se hegemónica em Angola. Esta, além de dinamizar uma produção barata, em vídeo, criou paralelamente um circuito alternativo de exploração. Imediatez, de uma e outro, é uma das chaves do sucesso popular destes filmes [13]. A fluidez com que esta produção chega ao público e facilidade da adesão à subcultura que retrata – inspirada noutra, americana, de acção e de afirmação do gueto – são também determinantes para o seu sucesso.

Em 2009, Manuel Trovoada, um dos expoentes da realização do autodesignado "cinema da poeira", queixou-se, em entrevista, da inimizade da anterior direcção do instituto de cinema relativamente ao movimento, a qual teria desconsiderado os seus filmes "pelo simples facto de serem produzidos em vídeo" (Abrantes, 2015: 37). "No dia em que se escrever a história do cinema angolano seremos chamados a ‘geração rebelde', porque queremos fazer cinema e, como não nos respeitaram, entrámos de forma violenta no mercado", concluiu.

A investigadora Tatiana Lévin, que colaborou na produção de um documentário de João Guerra sobre o cinema feito em Angola [14], sintetiza deste modo duas concepções da produção de filmes, actualmente antagónicas em Angola:

Se o primeiro cinema foi feito por intelectuais que reconheciam nele a missão de fazer chegar ao povo a ideia de uma nação, o novo cinema nascido nas periferias é feito de jovens agarrados à vontade, bancada pelos seus bolsos, com longas-metragens de orçamentos diminutos, alimentados pelo salário do mês e pela sustentação de um ciclo artesanal feito de exibições em cinemas alugados e DVDs vendidos na feira aos fins de semana. Esses realizadores pensam no seu cinema angolano feito em vídeo como a próxima nova onda africana a seguir ao fenômeno nigeriano, conhecido como Nollywood. Esquecem-se que a Nigéria é um dos países mais populosos do mundo e portanto capaz de ter um público interno a sustentar o movimento audiovisual nacional. (2015:76)

A autora caracteriza ainda o modo de produção, artesanal, destes cineastas (idem):

Pegam na câmara, produzem, realizam, exibem e distribuem seus filmes, recriando de forma caseira todo um processo industrial. Quando conseguem alugar alguma sala de cinema para exibir o filme têm, por vezes, filas a dar voltas ao quarteirão. No lançamento dos filmes autografam capas de DVDs comprados pelo público.

Lévin e Guerra fizeram o levantamento de testemunhos de vários "realizadores da poeira". A palavra a Tonton, nome artístico de Manuel Narciso:

[...] Quem movimenta o cinema angolano atualmente são filhos de "pobres". Pobres entre aspas. Não somos os miseráveis, mas somos pessoas que na sociedade, no mundo económico e político, não temos som de voz que possa nos acudir. Somos pessoas que vieram de baixo. (Manuel Narciso "Tonton", 2011)

Para além das evidentes diferenças técnicas e de linguagem, vale a pena relevar algumas sincronicidades entre o cinema dos pioneiros - um "cinema de urgência" com o qual se pretendeu afirmar uma identidade nacional - e o "cinema do gueto", ou "da poeira", que visa a afirmação identitária da periferia e que, em comum com o "cinema de urgência", tem o querer dar voz a quem nunca a teve.

Há diferenças culturais e de linguagem entre o "cinema de urgência" e o "cinema da poeira"? Sem dúvida. Ambos partilham a necessidade de afirmação cultural? Certamente. Porém, e apesar de o "cinema do gueto" dar voz a quem não a tem e – dado fundamental – pôr a câmara na mão de alguns senhores dessas vozes tornados "realizadores da poeira", isso é feito através da importação de uma subcultura exterior. Não se trata de retratar a vida no bairro e dar voz aos seus habitantes mas de adaptar e projectar dentro dele o modelo do filme de acção norte-americano, importando com ele também o modo tipificado de representação do gueto dos EUA, fechando, porém, as câmaras à realidade social quotidiana específica do musseque em Luanda.

Se a quase totalidade dos pioneiros não teve educação formal em escolas de cinema – alguns formaram-se em cinema posteriormente ao início da actividade cinematográfica –, a integração na luta pela libertação do colonialismo português deu-lhes um enquadramento ideológico e formação cultural significativa. Quanto ao início do movimento dos "realizadores da poeira" integra-se na globalização, pautada, nos seus aspectos positivos, pela democratização do acesso à tecnologia e a uma cultura mediática e à possibilidade de hoje todos os indivíduos serem potenciais criadores. Um Festival do Minuto, promovido, em 2004, pela Alliance Française em Luanda, foi a raiz do "cinema do gueto". Henrique Narciso, conhecido como Dito, venceu este concurso com um filme em que foi assistido pelo irmão, Tonton (Manuel Narciso). Ganhou como prémio a frequência de uma oficina de formação, em França, além de um estágio como realizador. Após o regresso, Dito passou o conhecimento a outros. Tanto Dito, que já tinha trabalhado na TPA como operador de câmara, como Tonton assumem a influência da linguagem da televisão no seu trabalho - o pai é funcionário da TPA – além da dos filmes de acção protagonizados por Jackie Chan e Arnold Schwarzenegger, que nunca deixaram de chegar a Angola, não obstante os problemas que afectam a distribuição cinematográfica.

A presença de armas nos filmes realizados em Angola é uma constante tanto nos filmes de libertação e afirmação da identidade angolana como nos filmes daqueles que cresceram após a independência, num quotidiano marcado pela guerra civil e denotando uma luta constante. É um facto que as armas abundam em Angola. Mawette Paciência, outros dos "realizadores da poeira" afirmou isso a Lévin e Guerra, face à constatação que o movimento a que pertence realiza filmes violentos (2015: 81).

Cineastas históricos como Miguel Hurst procuram distinguir o modo amador de fazer filmes, pela "geração da poeira", daquela, profissional e integrada numa estética, dos pioneiros. Hurst, em entrevista para o documentário de Guerra, diz:

É óbvio que depois de um tempo de colonização só os intelectuais é que tinham acesso a qualquer coisa que pudesse se parecer com uma expressão cinematográfica. Não era o povo, coitadito, que tinha acabado de chegar à cidade, e que ainda nem sabia bem o que que era um elevador. Como é que ia saber o que que é uma máquina de filmar, uma película, um zoom, etc? Obviamente que não. Passaram-se anos. O acesso à tecnologia, à televisão, etc., fez com que isto modulasse algumas mentes. A maior parte dos sobreviventes são homens que já mexeram em câmaras, são homens que vêm de um mundo audiovisual, recente sim, mas do mundo audiovisual. Portanto, não é só porque eu tenho uma mini Sony HD e que faço duas filmagens e tenho um filme. Não. É gente que percebe algo da linguagem e que só e, desde que eles queiram e que tenham a disponibilidade e a humildade suficiente, pode aprender e fazer melhor. (Miguel Hurst, 2011)

Mawette Paciência, um dos "realizadores da poeira" mais destacados questiona, porém, a importância do cinema feito em Angola por profissionais.

[…] Qual é a história do cinema angolano? O cinema angolano não tem história. […] Nós conhecemos o cinema nigeriano. […] Hoje, se nos sentamos para assistir aos filmes, conseguimos identificar filmes americanos, conseguimos identificar filmes africanos, conseguimos identificar filmes indianos... […] Agora Angola, qual é o padrão do cinema angolano? […] Nós vamos humildemente aprender com aquilo que a gente sabe que os mais velhos fizeram, mas desculpa-me lá, eles nem sequer têm uma história no cinema e querem vir a nos obrigar a fazer história. Querem vir a nos obrigar a fazer filmes ao critério deles. […] Nós estamos a começar uma história. Então os mais velhos devem deixar-nos a fazer a nossa história (…). (Mawete Paciência, 2011).

Paciência aponta a falta de uma história do cinema angolano. Talvez essa crítica devesse ser direcionada especificamente à falta de projecção e visibilidade interna dos filmes feitos em Angola. É certeira não tanto quanto à inexistência de uma história da produção de filmes em Angola mas quanto à existência de uma cinematografia angolana. Conforme propôs Jean-Michel Frodon em La projection nacionale. Cinéma et nation (1997) as cinematografias nacionais são um modo de projecção cultural de um país. Dada a falta continuada de apoios do Estado ao cinema e a falência do circuito de distribuição a que acresce a transfiguração dos cinemas em espaços de outra natureza, não se pode afirmar a existência de uma cinematografia angolana.

Assinale-se que, a partir de 2008, o IACAM organizou a primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Luanda (FIC-Luanda), pretendendo com isso incentivar e divulgar a produção de filmes angolanos, incrementar a produção cinematográfica e audiovisual nacional e fomentar a criação de parcerias e acordos de co-produção. O festival foi mantido até 2013, inclusive, tendo a sua sétima edição sido cancelada porque a data da sua realização seria muito próxima àquela para a realização do segundo Festival Nacional de Cultura (FENACULT).

Em Abril de 2013, alguns "cineastas da poeira", Henrique Narciso, Bijú Garizim, Francisco Cáfua, Mawete Paciência e Tonton, organizaram, com o patrocínio de uma empresa, a Chamavo, a mostra cinematográfica "Vamos recordar e reviver o cinema angolano".

Com financiamento português e realização de Jorge António, A ilha dos cães  adaptou para o cinema a obra Os Senhores do Areal, do escritor angolano Henrique Abranches, contribuindo para manter vivo, de algum modo, o projecto de cinematografia angolana. O seu protagonista, Pedro Mbala, queria estar em Luanda, ganhando dinheiro e gozando a vida. Uma empresa, a Constaleiro mandou-o, porém, ir até à Ilha dos Cães – fortaleza que foi prisão dos inimigos do regime - onde a construção de um resort está atrasada devido a acontecimentos estranhos. Assumido como um filme de série B, esta é uma alegoria sobre o passado num o presente em que continua por fazer o exorcismo do colonialismo.

Angola, nos trilhos da independência, e a actividade da Geração 80, não bastou para mudar a relação do Estado com o cinema feito em Angola, através de uma reavaliação das possibilidades que os filmes integram no reequacionar do presente através do memorialismo filmado que viabilize uma projecção do futuro. Porém, a "resistência" dos autores que têm como referência os pioneiros, o trabalho dos realizadores na diáspora, as co-produções mas também um desejo de participar na produção de imagens, nascido na periferia e marcado profundamente pela linguagem audiovisual – central, assuma-se, no que se refere à produção de filmes em Angola, sustentam uma vontade de continuar a imaginar cinematograficamente Angola.

 

Referências bibliográficas

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Pfaff, F. (1988). From twenty-five black African filmmakers: a critical study, with filmography and bio-bibliography. Connecticut: Greenwood Press.

 

 

Submitted: 19th December 2018

Accepted: 19th July 2019

 

How to quote this article:

Piçarra, M. C. (2020). Imaginar Angola: o nascimento de uma nação no cinema. Observatorio, 14(1), 65-78.

 

 

Note

[1] Monangambé (1968), também da autora que adaptou para o efeito O fato completo de Lucas Matesso, de Luandino Vieira, foi filmado com apoio do Departamento de Orientação e Informação da Frente de Libertação Nacional e do Exército Nacional Popular.

[2] Produção da Luanda Cine de Roma e do Departamento de informação e propaganda do MPLA, em que colaboraram militantes do MPLA da terceira região político-militar além de pioneiros do campo de Ngangula. A narração, em italiano, é feita pela protagonista que, neste documentário ficcional, é uma jornalista que entra clandestinamente em Angola para reportar o movimento de luta pela independência. Alerta-se que o filme não tem ambição histórica. Mostra antes as dificuldades de progressão no terreno e a necessidade dos clandestinos permanecerem escondidos enquanto a Força Aérea portuguesa patrulha, procurando documentar a dureza e perigos da longa caminhada até ao acampamento.

[3] Em 1975 constituíra-se a Angola-Ano Zero, financiada pelo Instituto Português de Cinema. Dela fizeram parte os irmãos Francisco, Carlos e Vítor Henriques, Ana Silva, Viriato Coelho, Isabel Pereira de Almeida e Sebastião Salgado. Após a independência, entregaram o equipamento e material filmado ao novo governo e integraram-se na TPA.

[4] Em França e nos pós-Maio de 68, o grupo Medvedkine uniu operários a cineastas numa tentativa de documentar cinematograficamente as condições de trabalho em fábricas francesas (como a Rhodia em Besançon, a fábrica da Peugeot em Sochaux).

[5] Bonfanti, colaborador habitual de Godard, Chris Marker, Jean Rouch, é considerado o "pai" do som no "cinema directo" francês.

[6] Acessível em linha em http://www.cinearchives.org/Catalogue-d-exploitation-494-313-0-0.html.

[7]  José Mateus Vieira da Graça, nascido em Lisboa em 1935, muda-se para Angola durante a infância. O seu nome artístico é Luandino Vieira, numa homenagem a Luanda, onde foi preso e condenado a 14 anos de prisão pela sua militância política e participação na luta pela independência de Angola após o que foi transferido para o Tarrafal.

[8] Este último só pôde ser apresentado onze anos depois, devido ao conflito entre o líder do grupo musical homónimo e o MPLA.

[9] Também desta série quase todos os títulos estão "desaparecidos". Pude visionar Ondyelwa - festa do boi sagrado, O kimbanda Kambia e Kambia.

[10] Com 360 minutos, foi apresentada integralmente em Nantes, na edição de 1980 do Festival des Trois Continents. Na página em linha do festival ( http://www.3continents.com/fr/film/present-angolais/) é possível confirmar esta informação segundo a qual, na rubrica "cinema directo", foram mostrados integralmente os 360 minutos da série. A Huíla e os mumuílas, Pedra sozinha não sustém panela, O kimbanda Kambia, Makumukas e Kimbanda foram mostrados, em Fevereiro de 1981, no XI Fórum Internacional do Novo Cinema no Festival de Berlim

[11] Entrevista em linha disponível em http://www.david-golias.com/entrevista-a-zeze-gamboa/. Retirado em 30 de Novembro de 2018.

[12] São sobretudo os centros culturais que projectam cinema, enquanto prossegue a destruição, ou a conversão para outras actividades, dos espaços originalmente destinados a mostrar filmes.

[13] Não há estatísticas relativas a esta produção de "cinema da poeira". Em Angola, porém, é reconhecida a sua popularidade, de tal modo que os realizadores conhecidos, e integrados na outra linha de produção cinematográfica surgida na sequência da independência de Angola, a ela aludem, de modo crítico.

[14] Ainda por concluir à data da escrita deste capítulo, em Novembro de 2018.

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