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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.14 no.2 Coimbra jun. 2020

 

ARTIGO DE OPINIÃO/OPINION ARTICLE

O impacto da pandemia da COVID-19 na PMA. Estratégias para uma abordagem individualizada na retoma dos tratamentos

The COVID-19 pandemic impact on ART. Proposal for individualized clinical management on resume of treatments

Pedro Xavier1

1 Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução. Subespecialista em Medicina da Reprodução pela Ordem dos Médicos.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

ABSTRACT

As in many areas of medicine, also in reproductive medicine and especially in assisted reproductive treatments (ART), the impact of the COVID-19 pandemic has been significant. The context that led to the suspension of ART and some clinical options for restarting the activity is presented.

Keywords: ART; COVID-19 pandemic.


 

Introdução

O ano de 2020 acordou com um contexto de saúde pública que poucos imaginavam vir a ter o impacto sanitário, económico e social que hoje se lhe reconhece. A Pandemia da COVID-19, infeção provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, afetou todo o planeta com tal magnitude que levou muitos governos a decretar o “literal encerramento” dos respetivos países. Se estas medidas foram importantes para conter a disseminação da pandemia, não é menos verdade que tiveram um efeito devastador sobre os diferentes setores da atividade. A área da saúde foi particularmente afetada, uma vez que, para além de ter mobilizado todos os seus recursos para o combate à pandemia, teve de suspender quase toda a sua atividade programada, nomeadamente de consultas, exames, tratamentos e cirurgias.

A suspensão da PMA

A medicina da reprodução, como seria de esperar, não foi uma exceção à opção de suspender a atividade clínica programada, nomeadamente os tratamentos de procriação medicamente assistida (PMA). No dia 2 de março de 2020 foi identificado o primeiro caso em Portugal e duas semanas depois, com 331 casos identificados e uma morte registada, a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR) emitiu um comunicado (16 de março de 2020), com um conjunto de recomendações dirigidas aos Centros nacionais de PMA1,2. As recomendações foram especificamente quatro: 1) Não iniciar qualquer tratamento de fertilidade, com ou sem recurso a técnicas de PMA (exceção para a criopreservação de gâmetas ou embriões em contexto de doença oncológica, cujo caráter pode ser inadiável); 2) Concluir todos os ciclos de FIV/ICSI já iniciados que estivessem na sua fase final de tratamento; 3) Diferir as transferências de embriões; 4) Cancelar todos os outros tratamentos de fertilidade já iniciados, envolvendo ou não o recurso a técnicas de PMA. Na base dessas recomendações estiveram duas preocupações. Por um lado, a escassa informação sobre o impacto da infeção pelo SARS-CoV-2 sobre os embriões e gâmetas, bem como sobre a grávida e o feto. Por outro, e não menos importante, a necessidade de cumprimento do distanciamento social, solicitado pelas entidades oficiais a todos os cidadãos, com o objetivo de diminuir o número de novos casos e, por consequência, evitar que o Sistema Nacional de Saúde pudesse entrar em colapso. Nessa mesma altura recomendações semelhantes foram emitidas a nível nacional pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e pela Secção da Subespecialidade em Medicina da Reprodução da Ordem dos Médicos e a nível internacional pela ESHRE e ASRM. Os Centros de PMA acabaram por suspender quase na totalidade a sua atividade clínica, a grande maioria por decisão dos seus diretores e, no caso de alguns Centros públicos, por decisão dos conselhos de administração dos hospitais onde se inseriam. Na quase totalidade dos Centros a exceção a esta suspensão residiu na preservação da fertilidade em pacientes de ambos os géneros, com doença oncológica ou com patologias que implicassem a utilização de quimioterápicos.

O impacto da covid-19 na reprodução humana

Tratando-se de um novo vírus é inevitável que são muito mais as dúvidas do que as certezas. No entanto, tem sido possível acumular alguma evidência científica que vai permitindo construir uma ideia mais consistente sobre a fisiopatologia da infeção. O SARS-CoV-2, ao contrário de outros vírus, necessita da presença de um recetor específico para poder entrar nas células. Trata-se do recetor da enzima de conversão da angiotensina 2 (ACE2), com uma forte expressão no epitélio alveolar e no endotélio arterial e venoso. No entanto, este recetor não foi identificado nos espermatozoides ou nos ovócitos. Sendo assim, parece muito improvável que o vírus seja capaz de infetar os gâmetas em pacientes com COVID-193. Todavia, num estudo efetuado a 38 doentes hospitalizados no hospital de Shangqui na China, foi identificada a presença do vírus no líquido seminal de 6 (16%) desses doentes4. Este estudo, contrariamente a outros, onde não tinha sido possível identificar o vírus em amostras de sémen, levantou algumas reservas devido à pequena dimensão da sua amostra e à metodologia aplicada, nomeadamente no que se refere às colheitas de sémen efetuadas em doentes sintomáticos e internados em hospitais vocacionados para o combate à pandemia. Não deixa, contudo, de ser um importante alerta para a possibilidade da presença do vírus nas amostras de sémen e, por esse motivo, para a possível transmissão por via sexual. O nível de conhecimento atual relativamente à expressão do recetor ACE2 em embriões humanos é ainda escasso, motivo pelo qual é prematuro fazer considerações a respeito da possibilidade de contaminação dos embriões humanos. Relativamente à transmissão vertical, embora muito pouco provável, parece não poder ser totalmente excluída, uma vez que em duas situações foi possível identificar anticorpos IgM anti-SARS-CoV-2 (que não atravessam a placenta), no soro de dois recém-nascidos imediatamente após o parto5. No entanto, a experiência generalizada, incluindo a portuguesa, é a de que os recém-nascidos de grávidas infetadas têm um bom prognóstico e a sua condição de saúde não difere grandemente dos nascidos de grávidas não infetadas.

Ao contrário do que acontece com outras infeções virais, nomeadamente pelo vírus da “gripe sazonal”, as grávidas não parecem ser mais suscetíveis à infeção COVID-19 do que a restante população. No entanto, atendendo à imunossupressão fisiológica da gravidez, é de considerar que possam merecer um cuidado especial. No que diz respeito à gravidez, um estudo de Lian Chen analisou a evolução da gestação de 118 grávidas infetadas pelo SARS-CoV-2 que passaram pelo internamento num hospital de Wuhan, entre dezembro de 2019 e março de 20206. Destas, 111 (93%) tiveram apenas sintomas ligeiros, 68 (58%) tiveram o seu parto durante esse período de tempo, 14 (21%) dos quais foram pré-termo. Importa referir que destes 14 partos pré-termo, 8 foram iatrogénicos (motivados pela condição de saúde materna), pelo que o parto pré-termo ocorreu espontaneamente em apenas em 6 casos (9%). A taxa de abortamento foi de 8% e não se registaram casos de infeção fetal ou mortalidade neonatal. Estes dados apontam para uma evolução relativamente favorável da gravidez na COVID-19, embora se tenha observado de forma consistente um elevado número de cesarianas, muitas das quais motivadas pelo estado de saúde materna.

O impacto da covid-19 na PMA

Os Centros de PMA estão naturalmente confrontados com os diferentes tipos de desafios levantados pela pandemia. Por um lado, têm a necessidade de implementar medidas de segurança dentro das suas instalações que permitam diminuir o risco de contaminações, tanto das suas equipas de profissionais como dos seus pacientes. Seguramente que a complexidade do problema será maior numa instituição pública, inserida num hospital vocacionado para o combate à COVID-19, do que numa instituição privada, inserida noutro tipo de espaço. Por outro lado, e não menos desafiante para os Centros, é a escolha da melhor estratégia para realizar os tratamentos de PMA com o nível de segurança e confiança que sempre os caracterizou. A identificação dos pacientes infetados, nomeadamente dos assintomáticos, é um dos maiores quebra-cabeças. Não parece oferecer dúvida que a utilização do questionário epidemiológico em todas as consultas, e ao longo de todo o tratamento, é de grande utilidade para detetar os casos suspeitos. Já mais discutível será a decisão de realizar testes de deteção da infeção em doentes assintomáticos e com questionários epidemiológicos negativos. De qualquer modo, a decisão mais consensual deverá ser, sempre que possível, suspender o tratamento no caso de infeção documentada. Apesar de todas estas dificuldades e desafios, e com base na evidência acumulada e já atrás referida, parece muito improvável que o vírus seja capaz de infetar os gâmetas em pacientes com COVID-19, ou de contaminar estas células em laboratórios de PMA. As técnicas de diluição utilizadas na preparação dos espermatozoides para os diferentes tratamentos de PMA serão muito provavelmente suficientes para impedir essa contaminação, mesmo no caso de se vir a confirmar a presença do vírus no líquido seminal. Relativamente aos embriões a informação é mais escassa, assim como são ainda preliminares os resultados que avaliam a frequência e o impacto de uma possível identificação do vírus nos meios de cultura ou nos sistemas de criopreservação. No entanto, atendendo ao rigor das normas de atuação e vigilância dos laboratórios de PMA relativamente a outros agentes infeciosos, é de prever que os casos de contaminação laboratorial pelo SARS-Cov-2 sejam altamente improváveis.

Retoma da atividade. Estratégia para uma abordagem individualizada

A pandemia em Portugal teve um curso menos grave do que noutros países europeus, nomeadamente em Espanha e Itália. Essa evolução mais favorável tem sido atribuída, em grande parte, ao cumprimento das regras de distanciamento social. Dessa forma, o Sistema Nacional de Saúde tem sido capaz de dar reposta aos casos mais graves, sem sinais de risco de colapso no seu atendimento. Face a esta evolução e à informação científica acumulada, a SPMR, no dia 23 de abril de 2020, emitiu um novo comunicado a recomendar a retoma progressiva da atividade em PMA pelos Centros nacionais, com a adoção dos respetivos planos de contingência2. Admite-se que essa retoma possa ter ritmos diferentes no setor privado e no público. Se no primeiro caso se pode admitir que a generalidade dos profissionais de saúde e a própria estrutura do Centro, não foram mobilizadas para o combate à COVID-19, no segundo a situação é bem diferente e pode implicar um reinício de atividade mais lenta, com o previsível agravamento das já longas listas de espera.

Uma das preocupações da SPMR e de todos os profissionais da área da medicina da reprodução é, sem dúvida, o impacto do adiamento dos tratamentos de PMA nas doentes de pior prognóstico, nomeadamente com idades mais avançadas e com baixa reserva ovárica. Este grupo de doentes, que pode representar cerca de 30% a 40% do total, tende a ter um declínio muito rápido da sua fertilidade e serão as que merecerão uma atenção especial dos Centros que retomem a sua atividade de forma mais lenta. Essa foi a preocupação de um grupo de especialistas em medicina da reprodução de diferentes países, incluindo Portugal, quando publicaram um conjunto de propostas de abordagem individualizada das doentes na retoma da atividade da PMA7. Segundo estes autores, estimativas apontam para uma probabilidade da ordem dos 50% de, numa mulher com 35 anos, ser possível obter um embrião euploide num tratamento de PMA. O ritmo de diminuição anual dessa probabilidade varia com a idade, mas rondará os 6,7, 8,2, 9,8, 11,6, 13,6 e 15,7% respetivamente aos 35, 36, 37, 38, 39 e 40 anos. Também a “ART calculator” criada pelo grupo POSEIDON em 2015, prevê que, para a obtenção de um embrião euploide sejam necessários 13, 16 e 19 ovócitos, respetivamente aos 38, 39 e 40 anos. Estes dados revelam, de forma muito clara, o impacto que o adiamento dos tratamentos de PMA pode ter neste grupo de doentes, nomeadamente no grupo 2 da estratificação POSEIDON (mulheres com idade superior a 35 anos e com uma resposta sub-ótima num ciclo anterior, apesar de uma reserva ovárica normal), mas ainda mais grave no grupo 4 (mulheres com idade superior a 35 anos e com uma baixa reserva ovárica). O grupo 3 (mulheres com menos de 35 anos e baixa reserva ovárica), pelo risco de insuficiência ovárica prematura, deve também merecer uma atenção especial. Na proposta apresentada por Alviggi e Col., para além da preservação da fertilidade, a prioridade na retoma da atividade da PMA deve ser dada a estes três grupos de pacientes, ou seja, mulheres com mais de 35 anos, independentemente da reserva ovárica, e mulheres com menos de 35 anos com baixa reserva ovárica.

Conclusões

A infertilidade foi considerada em 1992 pela OMS como um problema de saúde pública, no qual a idade da mulher tem um valor prognóstico muito significativo. A conjugação da preocupação em não adiar os tratamentos de fertilidade e, para dessa forma não agravar ainda mais o prognóstico de muitas dessas pacientes, com a necessidade manter a segurança dos tratamentos de PMA, num contexto de pandemia pela COVID-19 é talvez o maior desafio que os especialistas em reprodução enfrentam neste século.

 

BIBLIOGRAFIA

1. Direção Geral da Saúde (https://covid19.min-saude.pt/ ).         [ Links ]

2. Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (https://www.spmr.pt/ )        [ Links ]

3. RCOG. Coronavirus (COVID-19) Infection in Pregnancy. Information for healthcare professionals Version 8: Published Friday 17 April 2020.         [ Links ]

4. Li, D., et al. Clinical Characteristics and Results of Semen Tests Among Men With Coronavirus Disease. JAMA Netw Open, 2019. 3(5):e208292.         [ Links ]

5. Zeng, H., et al. Antibodies in Infants Born to Mothers With COVID-19 Pneumonia. JAMA, 2019. 323(18):1848-9.         [ Links ]

6. Chen, L., et al. Clinical Characteristics of Pregnant Women with Covid-19 in Wuhan, China. N Engl J Med, 2020. C2009226.         [ Links ]

7. Alviggi, C., et al. COVID-19 and assisted reproductive technology services: repercussions for patients and proposal for individualized clinical management. Reprod Biol Endocrinol, 2020. 18(45).

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Pedro Xavier

E-mail: pedroxavier444@gmail.com

 

Recebido em: 01/06/2020. Aceite para publicação:02/06/2020

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