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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.14 no.2 Coimbra jun. 2020

 

EDITORIAL

A formação em investigação leva a melhores investigadores, mas também melhores médicos e leitores com espírito crítico

Research training leads to better researchers, but also better doctors and critically minded readers

Ricardo Santos1

1 Assistente Hospitalar de Ginecologia e Obstetrícia no Hospital Senhora da Oliveira, Guimarães .Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Editor Associado da Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa


 

Se vi mais longe, foi por me apoiar nos ombros de gigantes.

Isaac Newton

A curiosidade move-nos. A constante procura do “saber mais” determinou a evolução na medicina, como em tantas outras áreas do conhecimento, com produção científica num ritmo verdadeiramente inalcançável mesmo para o mais ávido leitor médico.

Para investigar é preciso treino específico. A curiosidade e imaginação são características de bons investigadores, mas a formalidade dos processos, aliados à monotonia da sistematização e repetição de resultados, levam a uma constância de observações que nos permitem ter mais certezas e que outros confirmem, ou refutem, os nossos achados.

Boa investigação clínica assenta nesta base altamente formal, de aprender métodos e ferramentas. Na realidade, é como usar um ecógrafo. Qualquer interno aprende em pouco mais de 10 minutos como realizar uma biometria fetal e, ao longo do tempo, por repetição, aperfeiçoa esse gesto. Mas aprender a usar um ecógrafo pode ser muito mais que isso. O uso correto do ecógrafo assenta em princípios básicos de física, pelo que compreender a propagação de ultrassons, as técnicas de processamento de imagem, o efeito Doppler e as características das sondas e ajustes do equipamento permite-nos fazer muito melhor em menos tempo, ao aperfeiçoar a captura das imagens diagnósticas.

Pelo mesmo motivo estudamos a fisiopatologia e farmacologia: dominar o processo de doença permite otimizar a cura.

Os currículos de medicina têm habitualmente cadeiras dedicadas a investigação. No entanto, a maioria é ministrada nos primeiros anos, quando o interesse e perceção de utilidade é baixo. É difícil convencer um aluno do primeiro ano que distinguir uma média de uma mediana ser-lhe-á tão ou mais útil no seu futuro que estudar anatomia.

Assim, excelentes ideias, geniais mesmo, em clínicos experientes e altamente competentes podem ser travadas por receio de dificuldade na concretização, ou, pior, refutadas após conclusão por erros metodológicos básicos. Os muitas vezes apelidados “trabalhos” raras vezes começam com o escrutínio formal de um protocolo de investigação, que pode ser comparável a um artigo completo até aos resultados, e indispensável ainda antes de se colher um único dado: É aqui que se recolhem opiniões para melhoria dos procedimentos, se determinam dados recolhidos e métodos de recolha, se testam questionários, etc. É também este o documento a enviar para uma aprovação, por exemplo, de uma comissão de ética. Apenas depois a recolha de dados. A análise é, provavelmente, o que mais assusta o investigador (deveria ser, é dos passos mais críticos) e esta é uma caixa negra para tantos, vítima de um outsourcing para um elemento ou gabinete de estatística. Na realidade não precisamos de saber muita estatística, mas precisamos de saber o suficiente para ter dúvidas… Se deixarmos a análise para outros, não podemos analisar criticamente os resultados e não saberemos concretizar a melhor resposta à nossa pergunta de investigação. A análise estatística de dados beneficia de iteratividade, que só pode ser eficiente se soubermos o que pretendemos e como executar. Simultaneamente, não basta saber usar software. O SPSS, Stata, R, etc., são calculadoras complexas. Quando a pergunta não é boa, a resposta será necessariamente má (se tentar fazer a média da variável cor de cabelo terá um resultado!).

Um mestrado ou doutoramento com um bom programa curricular pode ser um bom ponto de partida para esta aprendizagem, mas não será certamente o único caminho e nem é o melhor para todos. Pequenos cursos de metodologia em investigação e de bioestatística serão interessantes, e mais aliciantes durante o internato do que em qualquer outra altura.

O currículo obrigatório/recomendado do internato tem vindo a adotar incentivos à produção científica, mas, a meu ver, ainda não é suficientemente reconhecida a qualidade em detrimento da quantidade. É claro que as recomendações dependem também do estado atual da produção científica na especialidade, pelo que se opta por uma fasquia alcançável pela maioria. Muitos serviços de formação não têm a massa crítica suficiente para envolverem novos elementos em projetos iniciados, pelo que a maioria dos projetos de investigação acabam por surgir de esforços, pelo menos inicialmente, individuais.

Este não é um problema unicamente da nossa especialidade, ou nacional, e a solução é semelhante: Formar em investigação clínica, envolver alunos e internos em projetos de investigação, valorizar verdadeiramente a investigação clínica, eventualmente como uma opção de carreira ao invés de um hobby 1.

Para ler um artigo não é indispensável ter conhecimentos profundos de estatística. Mas para o analisar criticamente, sem dúvida é necessário conhecer um pouco do processo que levou à sua produção. Assim sabemos que os níveis de evidência proporcionados por artigos com as mesmas conclusões poderão ser muito díspares. Este é o ponto muitas vezes descurado quando se pensa em formação em investigação: Não serve só para investigadores, e é muito importante para qualquer bom médico.

Esta revista pretende ser o nosso fórum de discussão. É o nosso dever incentivar à maior e melhor produção científica. Isso implica ensinar boas práticas aos internos, desde ética na procura e comunicação de resultados até ao ensino das ferramentas que facilitem o processo. Ao incentivar a aprendizagem e partilha destas ferramentas enriqueceremos os nossos serviços com mais do que bons clínicos: bons investigadores e bons médicos, sensatos e livres da opressão do sentimento de quem acha que já sabe. Só pensando que podemos sempre aprender evoluímos continuamente. Só tendo dúvidas podemos ter certezas.

É claro que investigação clínica (leia-se grandes ensaios clínicos) digna de menção internacional requer mais do que investigadores e médicos capazes, requer organização e dinheiro, mas isso ultrapassa o propósito deste texto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Mark AL, Kelch RP. Clinician Scientist Training Program. J Investig Med 2001;49:486.         [ Links ]

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