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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versión impresa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.13 no.4 Coimbra dic. 2019

 

EDITORIAL

Notas sobre controvérsias em Medicina da Reprodução

Controversies in Reproductive Medicine - brief notes

Carlos Calhaz Jorge1

1 Editor associado da AOGP; Professor Catedrático de Obstetrícia e Ginecologia, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Director do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da
Reprodução, CHLN/ H. Sta. Maria, Lisboa


 

Na sequência de um Colóquio recentemente promovido pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, decidi dedicar este editorial ao tema, tanto mais que é uma área muito discutida na sociedade leiga mas dá origem a uma proporção muito reduzida de artigos publicados na Acta.

O âmbito do evento era tão abrangente quanto “PMA - Perspectivas técnicas, éticas, sociais e políticas”. Não é possível ter a pretensão de abordar aqui todas estas dimensões pelo que escolho as que me parecem poder ter mais interesse para os potenciais leitores.

1. A edição genética consiste na identificação de pequenos fragmentos de DNA do genoma que podem ser removidos, alterados ou insertos através do uso de técnicas conhecidas pela sigla CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats)/Cas9. Os estudos experimentais são muitos, mas o seu uso em seres humanos levanta muitas dúvidas, não só técnicas (há uma probabilidade significativa de consequências não desejadas na aplicação da metodologia), mas sobretudo éticas. Há meses foi conhecido que tinham nascido duas crianças após uso desta técnica por um cientista chinês com o objectivo (aparentemente conseguido) de que fossem imunes ao HIV. A tempestade, a nível mundial, subsequente a esse anúncio resultou num consenso inquestionado de que a aplicação em humanos não deve ter lugar antes de resolvidos muitos aspectos técnicos ainda nebulosos. De qualquer modo a discussão dos valores éticos e filosóficos subjacentes a um potencial uso futuro são de grande interesse - a dicotomia a favor (porque é cura para doenças) vs contra (trata-se de uma forma de eugenia) é uma simplificação abusiva mas que resume genericamente os pontos de vista extremos.

2. Outro tópico abordado foi o uso de transferência de fuso acromático para tratamento de doenças mitocondriais. Nessa situação, o núcleo de um ovócito da mãe é introduzido no citoplasma de um ovócito da dadora, ao qual se retirou o núcleo. É uma técnica extremamente complexa mas que permite evitar doenças muito graves (felizmente raras) pelo que intuitivamente seria de esperar que fosse considerada uma circunstância positiva. No entanto, muitas dúvidas têm sido levantadas, muitas vezes usando parangonas jornalísticas do tipo “uma criança nascida após esta técnica tem 3 progenitores". De facto, uma criança nessas circunstâncias tem o ADN nuclear dos originários dos gametas mas também um pequena proporção ADN mitocondrial da dadora do citoplasma ovocitário. Mas é isso relevante? Era preferível ter uma criança com uma doença mortal a curto prazo?

3. Um tema relacionado com as implicações éticas resultantes do desenvolvimento explosivo de testes genéticos diz respeito ao rastreio genético expandido de dadores de gametas. Na prática “expandido” significa que, em vez do rastreio clássico dirigido a alterações genéticas com prevalência considerada suficientemente elevada na população para justificar a identificação de portadores em heterozigotia e exclui-los do programa de doação, é possível aplicar testes usando uma bateria progressivamente crescente (actualmente mais de 700 genes) de rastreio “global”. Daqui resulta, obviamente, a possibilidade de encontrar muitos casos de heterozigotia em relação a uma diversidade enorme de genes. O aspecto positivo resultante é que se se aplicarem os mesmos testes aos candidatos a receptores é possível evitar usar dadores/as que iriam resultar em situações de homozigotia na criança. Mas, excluindo as doenças que se desejam evitar, e para além do que esta prática tenha que possa ser considerada eugenia, há enormes dúvidas quanto ao que de realmente útil resulta do conhecimento da situação de heterozigotia em numerosos genes cuja existência não se sabe que repercussões possa ter na saúde.

4. Na discussão sobre se a doação de gametas deve ser em anonimato ou em não-anonimato há valores abstractos de legitimidade indiscutível, mas muitas vezes é referida a potencial repercussão negativa para os indivíduos resultantes da doação da impossibilidade de conhecer a identidade do/a dador/a. Mas será que o conhecimento da origem genética é importante para o bem-estar dessas pessoas? Os dados publicados não parecem dar suporte a essa possibilidade, sendo que os estudos sobre a inserção familiar e social das pessoas nessas circunstâncias não mostram qualquer diferença.

5. Um tema de carácter mais técnico, também fonte de controvérsia, é a valoração da criopreservação planeada ou electiva de ovócitos, isto é, na ausência de doença (oncológica ou não) que constitua indicação aceite para essa técnica. Essa opção pode ser vista como um uso utilitário de uma técnica sobrevalorizada, como uma espécie de seguro reprodutivo, mas porque não como uma prevenção da infertilidade futura? É indiscutível que grande parte da infertilidade na nossa parte do mundo é essencialmente resultado de opções por parentalidade tardia, sobretudo no que respeita à idade feminina. Assim, a criopreservação de ovócitos em idades femininas mais precoces pode, conceptualmente, ser considerada no âmbito da prevenção da doença infertilidade, muito mais provável se a mulher optar por ter filhos depois dos 40 anos. As implicações práticas, nomeadamente para o financiamento público desta preservação planeada de ovócitos, prendem-se com o ainda pouco conhecimento das vantagens concretas para cada mulher e, indirectamente, para a sociedade. De facto, os dados actualmente existentes mostram que apenas menos de 10% das mulheres que criopreservaram ovócitos os usaram num intervalo de tempo de cerca de 10 anos.

6. Finalmente, uma referência a um âmbito diferente - a educação para a consciencialização em relação à fertilidade. Um pouco por todo o mundo ocidental se procura que as opções reprodutivas sejam informadas e tenham alicerces em conhecimentos claros das implicações das circunstâncias da vida sobre a reprodução. Muitas têm sido e são as campanhas que realçam a implicação negativa da idade feminina mais tardia e de alguns hábitos de vida (obesidade e tabagismo sobretudo). Constata-se que genericamente essas campanhas não parecem ter resultados visíveis no comportamento das populações, seja qual for o tipo de modelo de objectivação usado. Será necessário encontrar outras formas de educação sistemática quanto à reprodução.

Em conclusão, a espectacular evolução na área da procriação medicamente assistida trouxe benefícios inquestionáveis para os seus beneficiários (estima-se que tenham nascido já mais de 8 milhões de crianças resultantes destas terapêuticas), mas igualmente novos dilemas para os quais é necessário encontrar soluções baseadas em valores técnicos, mas sobretudo em valores humanos e humanistas.

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