SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número3Acretismo placentar: quanto à necessidade de um centro de referência índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.12 no.3 Coimbra set. 2018

 

NORMAS DE ORIENTAÇÃO CLÍNICA/GUIDELINES

Estudo das situações de morte fetal após as 24 semanas

Evaluation of fetal death after 24 weeks

Fátima Serrano*, Mónica Centeno**, Carla Ramalho*** on behalf of the SPOMMF

* Assistente Hospitalar Graduada de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, Professora Auxiliar Convidada da NOVA MEDICAL SCHOOL/ Faculdade de Ciências Médicas Universidade Nova de Lisboa

** Assistente Hospitalar Graduada de Ginecologia e Obstetrícia, Serviço de Obstetrícia do Hospital Santa Maria/Centro Hospitalar de Lisboa Norte, Assistente convidada da Clínica Universitária de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Lisboa

***Assistente Hospitalar Graduada de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Hospitalar de S. João, Professora Auxiliar Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto


 

Esta norma de orientação clínica destina-se ao estudo de todas os casos de morte fetal após as 24 semanas ou, nos casos em que se desconheça a idade gestacional, de fetos cujo peso seja superior a 500 gramas.

INTRODUÇÃO

A perda fetal após as 24 semanas de gestação complica 1 em cada 200 gestações1,2. Embora pouco frequente é uma experiência avassaladora para os casais. A compreensão e identificação das causas e fatores associados, através da aplicação de protocolos de investigação atualizados, é importante para o processo de luto, para a avaliação do risco de recorrência e para a planificação de estratégias de prevenção numa futura gravidez.

ETIOLOGIA E FATORES ASSOCIADOS

Nos países desenvolvidos alguns fatores sociodemográficos, como os extremos de idade reprodutiva materna, a nuliparidade, a gravidez múltipla, o baixo nível socioeconómico, a raça negra, o tabagismo (>10 cigarros/dia) e o consumo de drogas ilícitas, estão associados a um aumento do risco de morte fetal (MF). A idade materna, a obesidade e o tabagismo são fatores de risco independentes para MF e, nestes casos, a modificação de estilos de vida pode ter um papel importante na redução do risco de recorrência2,4.

Vários fatores médicos têm sido associados à morte fetal. A frequência com que são descritos na literatura

é muito variável, devido às diferenças entre as populações estudadas, à idade gestacional em que ocorre e ao tipo de investigação efetuada. Classicamente, são agru pados em condições maternas, fetais e placentárias (Quadro I).

 

 

Condições maternas

Doenças maternas associadas a uma má perfusão uteroplacentária, como a hipertensão arterial (HTA), a diabetes mellitus e algumas vasculites, associam-se a um risco aumentado de MF. A doença hipertensiva é provavelmente a causa de MF mais importante e a melhor caracterizada no mundo ocidental. Enquanto em mulheres com HTA ligeira o risco é semelhante ao da população em geral, a pré-eclâmpsia e a eclâmpsia são responsáveis por cerca de 4-9% dos casos de MF 2,5. A diabetes mellitus confere um aumento do risco de MF, mais evidente em idades gestacionais mais tardias e com uma relação direta com um mau controlo metabólico 2,6. A colestase intra-hepática da gravidez associa-se a MF, não existindo, no entanto, uma relação clara entre o nível de ácidos biliares materno e o risco de MF 2,5. Algumas doenças autoimunes como o lúpus eritematosos sistémico e a síndrome de anticorpos antifosfolípidos (SAAF) encontram-se extensamente documentadas como associadas à morte fetal. Já o papel das trombofilias hereditárias (fator V de Leiden, protrombina GA20210 e deficiências dos anticoagulantes naturais) é menos claro e a maioria dos estudos preconiza a sua investigação apenas nas situações de MF associadas a restrição de crescimento fetal (RCF), pré-eclampsia precoce, descolamento prematuro de placenta normalmente inserida (DPPNI) e trombose placentária 2,7. Nos países desenvolvidos a infeção materna é responsável por 10 a 25% dos casos de MF (prevalência superior nos fetos pré-termo versus de termo). Os microrganismos mais frequentemente associados são o parvovírus B19, o citomegalovírus (CMV), a Listeria monocytogenes e o Treponema pallidum 2,8.

A utilização por rotina de imunoglobulina anti-D, na profilaxia da aloimunização anti-D, tem resultado numa notória redução da incidência da mesma na gravidez1. Contudo, é importante ter em consideração situações clínicas raras, mas que podem cursar com MF, como a aloimunização a antigénios não-D2.

Condições fetais

Restrição de crescimento fetal: A RCF é a segunda causa mais frequente de MF, sendo na maior parte dos casos originada por disfunção placentária. Estima-se que o risco de morte de um feto com restrição de crescimento é cerca de 3 a 7 vezes superior ao de um feto com crescimento normal 2,9,10 . Contudo, esta estimativa está provavelmente subestimada devido à interrupção da gravidez nas situações mais graves.

Malformações congénitas e anomalias cromossómicas/ genéticas fetais: Embora descritas como associadas a cerca de 20% das MF, com os avanços verificados no diagnóstico pré-natal, o número de fetos com malformações congénitas major que atingem a viabilidade tem vindo a diminuir2,9,10. Um cariótipo anormal pode ser encontrado em cerca de 10% das MF que ocorrem depois das 20 semanas, sendo as trissomias 21, 18 ou 13 e monosomia X, as aneuploidias mais frequentes2,9,10. Complicações da gravidez múltipla: A síndrome de transfusão feto-fetal, a sequência TRAP (Twin Reversed Arterial Perfusion), a maior prevalência de RCF, malformações e anomalias genéticas, e o enrolamento dos cordões na gravidez monoamniótica são alguns dos fatores predisponentes para MF nas gestações múltiplas2,10,11. Outras: A hemorragia feto-materna tem sido apontada como responsável por 4% das MF. A hidrópsia fetal não imune, arritmias fetais e a trombocitopenia fetal aloimune são também condições associadas a MF2,10,11.

Condições da placenta e anexos fetais

As anomalias do cordão umbilical, nomeadamente a inserção velamentosa, o enrolamento e oclusão do cordão e emergências obstétricas como o prolapso do cordão são responsáveis por cerca de 10% das MF10,12. A incidência de placenta prévia, vasa prévia e o DPPNI, tem vindo a aumentar nos últimos anos, associando-se também a MF. O mosaicismo confinado à placenta associa-se em 15-20% a RCF e MF2,10,12.

MF inexplicada

A morte fetal é uma situação complexa e muitos fatores podem contribuir para a sua patogénese, tornando o diagnóstico etiológico difícil. Por outro lado, algumas patologias podem estar associadas à MF sem, contudo, ser uma causa direta desta. Apesar dos esforços desenvolvidos para identificar os fatores etiológicos, uma percentagem significativa de casos (cerca 25-60%) continua ainda inexplicada11,13. Este conceito, importante para o registo dos óbitos, para o aconselhamento do casal e para a avaliação da qualidade, só pode ser aplicado aos casos em que, apesar de se ter efetuado exames clínico, laboratorial, fetopatológico e placentário exaustivos, não seja possível identificar uma causa.

INVESTIGAÇÃO

Uma história clínica e exame objetivo minuciosos, com caracterização dos fatores de risco e realização de exames direcionados, são essenciais na investigação da MF.

Ecografia

• Diagnóstico: ausência de batimentos cardíacos fetais (2 observadores)

• Apresentação fetal; índice de líquido amniótico; avaliação de anomalias fetais e placentárias

Exames laboratoriais

• Grupo ABO e Rh; pesquisa de aglutininas irregula res (teste de Coombs);

• Hemograma com plaquetas; Estudo coagulação: TP, aPTT e fibrinogénio;

• Avaliação bioquímica geral (glicemia, função renal, função hepática e PCR);

• Teste de Kleihauer-Betke;

• Exame direto e cultural de exsudado cervico-vaginal (bacteriológico, parasitológico e micológico) com pesquisa de Neisseria gonorrhoeae, Chlamydia trachomatis, Ureaplasma urealyticum, Mycoplasma hominis e Gardnerella vaginallis;

• Pesquisa de Streptococcus do grupo B no exsudado ano-vaginal;

• Hemocultura (pesquisa de aeróbios, incluindo Listeria monocytogenes, e anaeróbios);

• Urocultura.

Estudo do feto, placenta e anexos

• Cariótipo ou microarray-based Comparative Genomic Hybridization (a-CGH): amniocentese (considerar sobretudo se parto não iminente), biópsia de pele

ou sangue fetal e fragmento de placenta (Quadro II);

 

 

• Autópsia (não colocar o feto em formol nem congelar);

• Exame microbiológico da placenta: fragmento e zaragatoa da fibrina subcoriónica (Quadro II);

• Exame anatomopatológico da placenta (fixar a placenta em formol diluído a 10% imediatamente após a colheita para bacteriologia).

Em casos selecionados:

• Esfregaço de sangue periférico;

• Função tiroideia (TSH, T4 livre);

• Estudo serológico (VDRL, parvovírus B19, CMV, toxoplasmose e rubéola, HIV 1 e 2, VHB e VHC, se desconhecidos);

• Pesquisa de tóxicos na urina (se suspeita de abuso de drogas ou DPPNI).

ATUAÇÃO

Internamento

• O internamento deve ser programado para as primeiras 24h após o diagnóstico (ou, imediatamente, se sépsis materna, pré-eclâmpsia, descolamento de placenta, coagulação vascular disseminada ou rotura de membranas). Na ausência de doença materna o timing do parto não é crítico.

• Deve ser administrada imunoglobulina anti-D se grávida RhD negativa (o mais precocemente após o diagnóstico);

• Devem ser obtidos os consentimentos informados (para autópsia, estudo de drogas ilícitas, estudos genéticos) e preenchidas todas as requisições necessárias.

• Caso seja necessário induzir o trabalho de parto, os procedimentos são os habituais para a idade gestacional14

• A grávida deve permanecer num ambiente tranquilo e personalizado e deve ser disponibilizada analgesia epidural, assim como apoio psicológico. Apoiar os pais a ver o feto, se esse for o seu desejo. Deve respeitar-se as alterações de humor e não esquecer que o pai necessita de tanto apoio quanto a mãe.

• Preencher a certidão de óbito. Informar da necessidade de registo civil e da realização do funeral.

• Após o parto devem registar-se as alterações fenotípicas fetais, placentárias e dos anexos (fotografar se necessário);

• À data da alta deve ser instituída inibição do aleitamento e a puérpera ser referenciada à consulta de Puerpério (4-6 semanas pós-parto).

Consulta de Puerpério

Após a reavaliação da história clínica, dos exames realizados anteriormente (autópsia, exame histológico de placenta, estudo citogenético e outros), esta consulta reveste-se de especial importância pois, além de esclarecer o casal acerca dos resultados encontrados, é uma oportunidade para completar a investigação da MF.

• Se o rastreio da diabetes gestacional não tiver sido efetuado durante a gravidez ou se o feto for grande para a idade gestacional, solicitar PTGO (75 g de glicose) ou HbA1c.

• Se evidência de RCF, de patologia placentária ou se a causa da morte fetal permanecer desconhecida, pedir pesquisa de anticorpos antifosfolípidos (ac. anti-cardiolipina, anti-s2 glicoproteína-1 e anticoagulante lúpico);* se positivos, devem ser repetidos 12 semanas depois.

Em casos selecionados:

• Cariótipo parental (se aneuploidia fetal potencialmente herdada ou anomalias sugestivas de aneuploidia e falha na obtenção de cariótipo fetal).

• Mutações do gene da protrombina, fator V de Leiden, doseamento de antitrombina-III, proteínas C e S funcional (nas situações em que existe evidência de insuficiência placentária vasculopatia decidual, trombose ou enfartes placentários extensos)*

*Pelo menos 3 meses após o parto e na ausência de medicação com anticoagulantes ou contraceção hormonal.

  É também nesta consulta a altura ideal para efetuar alguns procedimentos:

• Classificar a causa de morte de acordo com a classificação de Wigglesworth modificada, como preconizado pela Direção Geral da Saúde;

• Ter atenção a sinais de depressão pós-parto;

• Recomendar a correção de fatores de risco modificáveis (obesidade, alcoolismo, tabagismo e consumo de drogas ilícitas);

• Agendar consultas específicas de acordo com os achados.

FUTURAS GESTAÇÕES

As mulheres que experimentam uma morte fetal, numa gravidez subsequente, para além de um risco aumentado de RCF, têm também um maior risco de perda fetal. Este último está relacionado com a idade gestacional e a causa da morte fetal anterior, sendo menor nas que têm filhos vivos. Para mulheres com uma morte fetal anterior de causa conhecida, o risco de recorrência é elevado, estimando-se que aumente 7 a 10 vezes após uma perda do 2º trimestre e 4 a 5 vezes quando a primeira perda ocorreu após as 28 semanas. Por outro lado, nas situações de perdas inexplicadas, o risco de recorrência é pouco claro12,13,15.

O dilema para a maior parte dos clínicos prende-se sobretudo com o tipo de vigilância obstétrica numa futura gravidez. Embora exista pouca evidência científica e algumas destas perdas se devam a fatores não recorrentes, a instituição de um programa de vigilância fetal frequente, com intervenção precoce ao primeiro sinal de compromisso fetal, é seguida pela maior parte dos obstetras. A decisão do momento do parto deve ser individualizada2,7,10,13,15. Alguns grupos recomendam na gravidez subsequente a programação do parto às 39 semanas13,15.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. GBD 2015 Child Mortality Collaborators. Global, regional, national, and selected subnational levels of stillbirths, neonatal, infant, and under-5 mortality, 1980-2015: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2015. Lancet 2016; 388:1575-1576.         [ Links ]

2. American College of Obstetricians and Gynecologists. Management of Stillbirth. ACOG Practice Bulletin 102. Vol 113, N3, 2009.

3. Fretts RC. Etiology and Prevention of Stillbirth. Am J Obstet Gynecol 2005; 193:1923-1935.         [ Links ]

4. Varner M, Silver R, Rowland Hogue C, et al. Association between stillbirth and illicit drug use and smoking during pregnancy. Obstet Gynecol 2014; 123: 113-125.         [ Links ]

5. Lawn JE, Blencowe H, Pattinson R, et al. Stillbirths: Where? When? Why? How to make the data count? Lancet 2011; 377:1448-1463.         [ Links ]

6. Little S, Zera C, Clapp M, et al. A Multi-State Analysis of Early-Term Delivery Trends and the Association With Term Stillbirth. Obstet Gynecol 2015; 126:1138-1145.         [ Links ]

7. ACOG Practice Bulletin No. 138: Inherited thrombophilias in pregnancy. Obstet Gynecol. 2013;122(3):706-717.         [ Links ]

8. Goldenberg R, McClure E, Saleem S, et al Infection-related stillbirths. Lancet 2010; 375:1482-1490.         [ Links ]

9. Groen H, Bouman K, Pierini A, et al. Stillbirth and neonatal mortality in pregnancies complicated by major congenital anomalies: Findings from a large European cohort. Prenat Diagn 2017; 37:1100-1111.         [ Links ]

10. Stillbirth Collaborative Research Network Writing Group. Causes of death among stillbirths. JAMA 2011; 306:2459-2468.         [ Links ]

11. Reddy U, Goldenberg R, Silver R, et al. Stillbirth Classification Developing an International Consensus for Research: Executive Summary of a National Institute of Child Health and Human Development Workshop. Obstet Gynecol 2009; 114:901-914.         [ Links ]

12. Royal College of Obstetricians and Gynecologists. Late intrauterine fetal death and stillbirth. Green-top guideline No. 55. 2010.

13. McPherson E. Recurrence of stillbirth and second trimester pregnancy loss. Am J Med Genet A 2016;170:1174-1180.         [ Links ]

14. Bombas T, Branco M, Franco S, et al. Recomendações clínicas na interrupção médica de gravidez no 2.º e 3.º trimestre e na morte fetal. Acta Obstet Ginecol Port 2017;11:132-143.         [ Links ]

15. Lamont K, Scott N, Jones G, et al. Risk of recurrent stillbirth: systematic review and meta-analysis. BMJ 2015; 24;350: h3080.         [ Links ]

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons